O milho é, acima de tudo, um alimento versátil. Ele não é apenas estrela das festas juninas, sob a forma de bolo de fubá, canjica e curau. Está nas pamonhas anunciadas por alto-falantes de carros nas ruas da cidade e comercializadas nos ranchos à beira das rodovias. Está na espiga cozida ou assada à venda nas praias. Está nas pipocas dos cinemas. E, como grão, farinha, xarope ou óleo, entra na composição de centenas de alimentos industrializados.
Essa onipresença não acontece à toa: o milho é o cereal mais cultivado no mundo. Além do tipo amarelo tradicional, há as versões branca, rosa, preta, rajada, mais dura, mais mole, doce, com espigas longas ou pequenas. Apesar dessa diversidade de apresentações, o alimento tem participado pouco do dia a dia do brasileiro. Uma pena, já que oferece uma bela combinação de nutrientes. E uma ironia, pois já foi a base da alimentação de boa parte do país.
Os grãos são nativos de ilhas do México, onde cresce o teosinto, um tipo de milho selvagem que lembra uma touceira de cana — a raiz que sobra no solo depois de ela ser cortada. São envolvidos, um a um, por uma palha dura, difícil de tirar.
Entre 7 e 9 mil anos atrás, começou sua domesticação, ou seja, a seleção das espécies para obter as características mais desejadas. Dali, o milho se expandiu para as Américas. Durante muito tempo, acreditou-se que ele saiu do México completamente transformado. Mas uma investigação publicada na revista Science revela que o alimento chegou à Amazônia semidomesticado.
O trabalho, feito pelo engenheiro agrônomo Fábio Freitas, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em parceria com o geneticista de plantas britânico Robin Allaby, comparou amostras de milho atuais e pré-colombianas. Concluiu-se, então, que os estágios finais de domesticação ocorreram em mais de um lugar.
“Os índios da Amazônia tinham experiência em manejar plantas, pois já cultivavam feijão, abóbora e mandioca”, explica Freitas.
A difusão do milho aconteceu por diversos grupos étnicos. Os guaranis, que se referiam a ele como abati, transportaram-no da Amazônia para o Sudeste por volta do ano 1000. E os colonizadores o conheceram na América, ao travar contato com a população local.
Em seu diário de bordo, em 5 de novembro de 1492, Cristóvão Colombo registrou ter experimentado um grão desconhecido, “muito saboroso cozido ao forno ou reduzido a farinha”. Na volta para a Europa, levou as sementes, e o alimento acabou conquistando o mundo graças à capacidade de se adaptar a vários ambientes, desde os muito frios até os mais quentes, secos ou úmidos, de baixas ou altas atitudes.
Os cronistas coloniais que andavam pela costa brasileira, onde reinava a mandioca, não citavam o cereal porque ele se expandiu no interior. No século 16, quem mencionou o alimento foi o conquistador espanhol Alvar Núñes Cabeza de Vaca, durante viagem de Florianópolis ao Paraguai, conta o sociólogo Carlos Alberto Dória, que escreveu com o gastrônomo Marcelo Corrêa Bastos o livro A Culinária Caipira da Paulistânia (Três Estrelas). Essa área, a Paulistânia, é um vasto território que, além do interior de São Paulo, avança de Santa Catarina a Minas Gerais, estendendo-se pelo Centro-Oeste e parte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.
Segundo a historiadora Rafaella Basso, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a região tinha características que favoreceram a expansão do milho: estava longe dos mercados litorâneos; usava mão de obra indígena (as tribos tinham o cereal como alimento básico); e era ponto inicial de expedições sertanistas, as bandeiras, que elegeram o alimento como o mais adequado a essa vida em movimento.
Ela lembra ainda que as primeiras colheitas ocorriam apenas três meses após a semeadura, enquanto a mandioca levava um ano para dar as primeiras ramas. “Além de apresentar maior produtividade, o milho era fácil de guardar e transportar”, acrescenta.
Antes das expedições, colonos viajavam para fazer roças de milho e garantir a alimentação das pessoas — e esses locais deram origem a povoados. O ciclo do ouro em Minas Gerais, no século 18, também concorreu para a popularização do alimento. A mão de obra africana, que estava na base da economia, já conhecia o cereal, o que facilitou sua aceitação. E assim o milho foi se tornando elemento central da culinária caipira, que ocupava uma área maior do que a Amazônia, de acordo com Dória.
A desvalorização do milho
Apesar de toda essa relevância, ele não grudou na nossa memória como representante da cozinha brasileira — nem sequer da culinária paulista. No máximo é associado a alguns pratos mineiros e a festa junina. Assim, acabou sumindo da rotina e da alta gastronomia.
Rafaella atribui o fato a uma carga simbólica pejorativa: o milho estava relacionado a indígenas, escravos africanos e ração para animais. “É um alimento útil, de encher barriga, a que todo mundo tinha acesso, o que o desvalorizava”, analisa.
A partir dos anos 1950, essa imagem piorou. É que o milho se tornou uma commodity, ou seja, uma mercadoria de baixo valor agregado que é usada como matéria-prima pela indústria. Diferentemente da mandioca, cuja produção é associada à agricultura familiar — daí por que é celebrada pelos grandes chefs.
Para Dória, a culinária caipira que se desenvolveu na Paulistânia foi deixada de lado devido ao fato de essa sociedade e essa cultura serem vistas como rurais e atrasadas. “Sua cozinha foi como que soterrada pela comida industrializada, pelos hábitos dos imigrantes europeus e pelo solene desprezo que o Brasil moderno devota ao seu passado indígena”, avalia.
Assim, o milho ficou restrito às pequenas propriedades rurais, voltadas a atividades de subsistência, como explica a pesquisadora Cristina Fachini, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e uma das criadoras do Roteiro do Milho, um percurso turístico e gastronômico composto de oito cidades do sudoeste paulista (Itapeva, Ribeirão Branco, Apiaí, Ribeirão Grande, Guapiara, Capão Bonito, Itapetininga e São Miguel Arcanjo), que estiveram na rota dos tropeiros e onde o milho se manteve na mesa cotidiana. Seu objetivo é resgatar e enaltecer o cereal.
Um perfil único de nutrientes e benefícios
O curioso é que, embora tenha perdido espaço na nossa cozinha habitual, o milho representa cerca de 40% de toda a safra nacional de grãos. O Brasil é o terceiro maior produtor mundial, só atrás da China e dos Estados Unidos. Aqui, seu cultivo perde apenas para o da soja. A maior parte se destina à ração animal e à indústria.
Mas, a julgar pelos nutrientes embalados na palha, é uma injustiça esse símbolo da cozinha caipira ter perdido lugar no cardápio. “O milho é fonte saudável de energia porque possui carboidrato complexo, absorvido lentamente na corrente sanguínea. Isso evita picos de açúcar e faz o corpo gastar mais calorias para aproveitá-lo”, elogia a médica Marcella Garcez Duarte, da Associação Brasileira de Nutrologia.
O alimento também reúne proteína. Inclusive, se for combinado com uma leguminosa, como feijão ou lentilha, fornece todos os aminoácidos essenciais de que o corpo precisa para formar músculos, cabelos, unhas, hormônios e anticorpos. Traz um pouco de gordura, mas do tipo benéfico, o suficiente para transportar sua vitamina E, bem-vinda ao coração, por exemplo.
Ainda vem com fibras, que estimulam o trabalho do intestino, melhoram o controle do colesterol e do açúcar no sangue e dão saciedade. “Ele pode inclusive fazer parte de uma dieta de emagrecimento. Basta que ocupe o lugar de outras fontes de carboidrato, como arroz, batata e massas”, diz Marcella.
Isso vale também para a pipoca preparada na panela. Para ter ideia, 100 gramas do cereal permitem fazer um pote cheio, com 150 calorias e fibras suficientes para matar a fome. Só não vale abusar do óleo nem do sal.
O milho concentra ainda vitaminas do complexo B, como a B1, que é essencial para o bom humor, além de minerais, a exemplo de magnésio, potássio, fósforo e cobre, que participam de várias funções no organismo — incluindo o controle da pressão arterial. Um grande atrativo é a presença de antioxidantes, capazes de deter os radicais livres, moléculas instáveis que agridem as células e favorecem doenças.
O destaque do grupo são os carotenoides, mais especificamente betacaroteno, luteína e zeaxantina — eles que colorem os grãos de amarelo, laranja e vermelho. “Quanto mais intensa a cor, maior o teor desses ingredientes”, ressalta Marcella. Um combo de respeito.
Não por acaso, cientistas da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, descobriram, em estudo divulgado ano passado, que a seleção de fitoquímicos e nutrientes do milho está associada a um menor risco de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e obesidade, especialmente quando ele integra uma dieta rica em frutas e verduras.
O grão ainda melhora a saúde digestiva. Por não conter glúten, é ótima pedida para quem tem doença celíaca ou é intolerante a essa proteína, comum no trigo, na cevada e no centeio.
E se for transgênico?
Uma preocupação ronda alguns consumidores: essa história de o cereal ter sido modificado geneticamente. Segundo o Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB), o primeiro milho transgênico recebeu aprovação em 2007 — assim como outras culturas, ele passou por alterações para resistir a pragas e defensivos agrícolas.
De acordo com o Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações em Agrobiotecnologia, em 2016 foram plantados 5,3 milhões de hectares de milho geneticamente modificado. O número representa 88% do total semeado nas duas safras (verão e inverno).
Acontece que 73% das pessoas acreditam que os alimentos transgênicos fazem mal à saúde, segundo pesquisa encomendada pelo Instituto Questão de Ciência ao Datafolha com 2 mil brasileiros de todas as regiões.
Segundo os estudos, o temor não se justifica. Um levantamento feito pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos em 2016 localizou mais de 1,5 mil trabalhos apontando que o consumo de transgênicos não tem efeito negativo na saúde.
Outra revisão, publicada na prestigiosa revista Nature e focada exclusivamente no milho, concluiu, depois de analisar dados reunidos ao longo de 21 anos, que a manipulação genética ainda evita a contaminação do cereal. “Os resultados apoiam o cultivo de milho transgênico, principalmente devido à maior qualidade dos grãos e à redução da exposição humana às micotoxinas”, defende o artigo.
Para Freitas, da Embrapa, a manipulação genética é apenas uma ferramenta utilizada pela agricultura e também pela medicina. “A maior parte da insulina para tratar o diabetes produzida hoje é por transgenia”, argumenta. “Seu corpo vai digerir uma planta transgênica da mesma forma que as outras”, completa.
Marcella considera difícil privar-se desses alimentos. “Comemos transgênicos sem saber, sobretudo porque não cultivamos nossa própria comida. E, ainda que a plantemos, as sementes são submetidas a processos de melhoramento para produção em larga escala”, observa.
O problema, para a médica, é que algumas perguntas permanecem sem resposta. “Ainda não sabemos se os genes modificados podem interagir com as bactérias que vivem em nosso intestino e causar doenças”, exemplifica. “Então, prefiro escolher o não transgênico quando tenho essa opção. Mas, hoje, nem sempre essa escolha é possível”, diz.
Quem optar pela versão orgânica deve procurar a certificação e ser mais rigoroso na higiene, alerta a nutróloga. “Esses produtos não trazem toxinas, mas podem ter parasitas”, avisa. Ponderações feitas, não há por que manter o milho nas sombras. O cereal amarelinho nasceu para brilhar.
Receitas tradicionais, diretamente do Roteiro do Milho
Pamonha na chapa: rale 10 espigas de milho, tempere com 1 colher (sopa) de açúcar, 1 colher (chá) de sal, salsa e cebolinha. Leve à chapa ou à frigideira com pouco óleo e espalhe até ficar com espessura fina. Doure dos dois lados. Recheie como tapioca.
Viradinho: aqueça 1 colher (sopa) de óleo, jogue 2 ovos e 1 pitada de sal e mexa por 3 minutos. Junte 1 xícara de farinha de milho e misture. Na versão doce, troque o ovo por 3 bananas picadas e o sal por 4 colheres (sopa) de açúcar mascavo ou demerara.
Bolo salgado: misture 3 xícaras de fubá, 1 xícara de farinha de trigo, 1 colher (chá) de sal e 1 colher (sopa) de fermento. Adicione 3 ovos e 1 xícara de óleo e mexa bem. Aos poucos, junte 1/2 xícara de água. Ponha na fôrma e, antes de assar, adicione queijo em cubos.
A pipoca perfeita: se tem uma receita à base de milho que nunca ficou em baixa foi a pipoca. Ela é exaltada por ser boa fonte de energia e fibras. Só evite as já embaladas para micro-ondas, porque trazem sal demais e gordura parcialmente modificada (o pior tipo para a saúde). “É melhor estourar o grão na pipoqueira sem gordura ou na panela com um pouco de óleo. Já no micro-ondas, dá para fazer com água. Há recipientes de silicone próprios para isso”, indica Marcella.
A conserva de milho
Embora ganhe em praticidade, o milho enlatado perde para o natural pelo maior teor de sódio, cujo abuso eleva a pressão — se for comprar, opte pela lata com menor dose.
Mas, para a nutróloga Marcella Duarte, o maior senão é a perda de antioxidantes. Então, sempre que possível, prefira o alimento na espiga e cozinhe no vapor para preservar nutrientes.
A farinha
Na forma de flocos ou de fubá, ela é obrigatória na culinária caipira. “A farinha era a comida do bandeirante: durável, de fácil transporte e capaz de engrossar qualquer caldo”, diz a pesquisadora Cristina Fachini.
A introdução do monjolo pelos portugueses, substituindo o pilão dos indígenas, expandiu a produção. Mas ela perde fibras e proteínas — oferta mais energia mesmo.
A biografia do milho: um alimento versátil, saudável (e negligenciado) Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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