“Existe fome no Brasil? ‘Somados Bolsa Família, BPC [Benefício de Prestação Continuada] e Aposentadoria Rural, há uma massa de R$ 200 bilhões que vão para o bolso dos mais pobres todo ano. Logo, se você entender a fome como sistêmica e endêmica, o Brasil não a tem'”, disse o presidente Jair Bolsonaro, em sua conta do Twitter, fazendo menção a uma fala de Osmar Terra, atual ministro da Cidadania.
A declaração de Bolsonaro, feita nesta segunda (5), marca a segunda vez no intervalo de um mês em que o presidente comenta a situação da fome no Brasil. Durante um encontro com jornalistas estrangeiros no dia 19 de julho, o Bolsonaro afirmou que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. Depois, recuou, dizendo que “alguns [brasileiros] passam fome”.
O conceito de “fome endêmica”, a que Bolsonaro recorre em seu tweet mais recente, foi introduzido por Josué de Castro, médico, escritor e ativista contra a fome no Brasil morto em 1974. Em sua obra Geografia da Fome (1948), Castro traça o primeiro mapa da fome no país e estabelece uma série de nomenclaturas para orientar estudos na área. Segundo o autor, pode-se chamar de área de fome endêmica, “uma determinada área geográfica em que pelo menos metade da população apresenta nítidas manifestações de carências nutricionais permanentes”.
Para dizer que todo o país atravessa um cenário de fome endêmica, segundo Castro, mais de 100 milhões de brasileiros precisariam estar privados do acesso adequado a alimentos. Não é, de fato, o que o Brasil registra hoje. Segundo o relatório O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo, divulgado recentemente pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) a parcela de brasileiros desnutridos caiu de 4,6% da população total entre 2004-2006 para um índice menor que 2,5% entre 2016 e 2018. Entre 2004 e 2006, estima-se que 8,6 milhões de brasileiros passavam fome. Se o número de desnutridos está, hoje, na casa dos 5 milhões, a queda foi de 42%.
No Brasil, a diminuição no número de famintos aconteceu de forma mais acentuada no período de 2004 a 2014 – quando 26.5 milhões de pessoas deixaram a pobreza. 2014, aliás, é tido como um marco, já que representa o ano em que o país saiu do Mapa da Fome elaborado pela FAO.
O grande problema é que não é preciso entender a fome “como sistêmica ou endêmica”, como destaca Bolsonaro em seu tweet, para que ela continue existindo. Como dito acima, os dados do último levantamento da FAO, permitem estimar que cerca de 5 milhões de brasileiros ainda sofrem com a escassez de alimentos.
E apesar de a queda de 42% ser considerável (e o total de desnutridos ser menor do que no começo do milênio), não registramos avanços significativos nesse quesito desde 2010.
Essa estagnação apareceu no Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e Caribe, outro relatório da ONU, divulgado em novembro de 2018. O documento indicou, inclusive, que a quantidade de pessoas famintas no Brasil fez o caminho inverso – aumentando ligeiramente nos últimos anos.
Entre 2015 e 2017, o número de brasileiros desnutridos era de 5,2 milhões. Entre os períodos de 2014 a 2016 e 2013 a 2015, o total calculado era de 5,1 milhões. E dois anos antes, de 5 milhões. O índice mais baixo permanece sendo o de 2010, quando cerca de 4,9 milhões de Brasileiros passavam fome.
Há exemplos de países vizinhos de América Latina que, no mesmo período, apresentaram resultados bem mais relevantes. Na Colômbia, onde 5 milhões de pessoas passavam fome em 2010, o total chegou a 3,2 milhões em 2017 – uma queda de 36%. No caso do México, que foi de 5,5 milhões para 4,8 milhões de famintos, a diminuição foi de quase 13%. Mesmo o Peru, que teve uma diminuição menos relevante, o número de desnutridos foi de 3 milhões para 2,8 milhões – quase 7% de queda.
Como disse José Graziano, engenheiro agrônomo que foi ex-diretor da ONU, em entrevista ao Estadão, “não se combate a fome dizendo que ela não existe”. Ou seja, mesmo que os dados não sejam agradáveis, ignorar a demanda dos brasileiros por alimentação de qualidade (como parece estarmos fazendo há um tempo) não vão erradicar o problema – pelo contrário.
Por que ainda não dá para afirmar que não existe fome no Brasil Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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