sobrenome forte, sonoro, incomum, de origem indiana. A cabeça raspada, que às vezes insiste em reluzir debaixo das lâmpadas nos estúdios de TV que ele passou a frequentar cada vez mais. A voz pausada, quase solene, professoral. Sem dúvida, Leandro Karnal não tinha mesmo como deixar de ser um personagem midiático da filosofia.
Nos últimos anos, esse doutor em história social pela USP e professor de história na Unicamp transita por uma área muito maior do que as salas de aula e os corredores de faculdade que ainda gosta de habitar. Um dos mais bem-sucedidos intelectuais brasileiros a ocupar o espaço público nessas recentes temporadas, ele ainda preserva a postura de professor sério, que esconde uma estrela pop.
Porque Karnal sabe que cada vez que abandonar essa impressão de alguém elegantemente comedido, suas incursões pelo humor nos palcos das palestras terão um forte impacto. Quando está no centro das atenções, ele consegue comparar políticos corruptos do mundo real a vilões dos livros de Harry Potter, fazer piadas com bom jogo de cintura e contar memórias engraçadas de sua família no Rio Grande do Sul.
Ele atribui sua habilidade com as palavras aos estudos de literatura retórica, citando de Cícero ao Padre Vieira. Mas admite que a prática é o grande instrumento na hora de entreter uma plateia. “Prática ajuda. Existe uma relação de desejo entre o orador e seu público, e ela deve ser recíproca. Sou um professor, sempre quero que os alunos entendam. Para isso, humor, sínteses, imagens, gestos e gradação de voz ajudam. Meu objetivo maior é a compreensão. Meu objeto é o público, e o que eu falo e escrevo é um signo aberto, acessível ao maior número possível de pessoas interessadas.”
Se os episódios familiares engraçados são verídicos ou não, isso é difícil de saber, mas são eficazes nessa proposta de misturar humor com discussões que passam por temas pesados em diferentes áreas do conhecimento. Para quem é uma mistura de intelectual com celebridade, é curioso que ele rejeite com veemência esses dois adjetivos.
Lidar com a notoriedade da pessoa pública ainda é para ele a pior parte. “Não quero discípulos, quero ter gente que se inquiete comigo e pessoas que pensem, formulem seus conceitos e busquem embasamento para eles.” Karnal entende que a experiência de um admirador o encontrar na rua pode ter uma importância brutal para o fã. No entanto, para Karnal pode ser a centésima experiência do tipo em um único dia. “Há aquele que gosta do que falo ou escrevo e sorri para mim, discreto. Há o que quer a foto apenas. Há o que imagina que sou seu amigo há tempos. Há corporalidades variadas: algumas pessoas agarram muito, interagem não de forma calvinista, porém kamasútrica. E há os invasivos, que interrompem jantares familiares ou até o momento no banheiro.”
Pelo menos mais dois rótulos também oferecem grande incômodo para ele: esquerda e direita. Entre seus seguidores, essa posição equidistante das orientações extremas da política provocam dois tipos de reações. Há quem entenda a postura de Karnal de forma mercadológica. Um discurso moderado tende a alcançar um público maior. Rejeitando a polarização, ele defende que a escolha simples entre esquerda e direita empobrece o debate político brasileiro.
“O centro é a posição dominante sempre. Os extremos são excepcionais. Só situações específicas levam ao poder a extrema-direita ou a extrema-esquerda. Não se trata de deficiência ou de falta de conhecimento, pois o sujeito de extrema-direita não é menos consciente do que o centrista. Trata-se do papel que a maioria dá à política. O foco das pessoas está na família, na carreira, no consumo e na sua individualidade. O centro atinge mais a esses valores do que os extremos.”
Ele afirma que sua decepção com partidos de qualquer orientação tem origem nos mesmos problemas, sob qualquer bandeira partidária: “infrações éticas, incompetência administrativa e jogos de poder nos quais os interesses pessoais se sobrepõem aos da nação”.
“Os grandes partidos que gerenciam o poder no Brasil não têm base ideológica alguma, não têm um programa, não têm uma unidade. Nós não temos no Brasil, e provavelmente nunca tivemos em larga escala, o sentido aristotélico da política, as discussões sobre formas e administração. No Brasil temos escassez de estadistas, ou seja, administradores que pensem para daqui a 50, 100 anos.”
Karnal tem mais elementos para criticar os partidos. “Não temos na política brasileira uma discussão realmente intelectual, nós temos meras discussões políticas preconizadas por Maquiavel, no sentido de disputa de poder, divisão de poder. Brasileiros pouco sabem sobre partidos, porque no fundo acreditam que a autonomia dos políticos é maior que a fidelidade a qualquer conteúdo programático dos partidos. Hoje, provavelmente, somente os partidos pequenos de extrema-esquerda têm alguma coerência partidária.”
Discussão sobre política, principalmente política partidária, não é a praia de Karnal. No repertório de assuntos de suas palestras, a questão de alcançar a felicidade é um pedido constante das plateias.
Quem espera fórmulas do filósofo se decepciona. “A felicidade neste mundo não era o foco nas civilizações anteriores. Como nós a entendemos, hoje, felicidade é um grande projeto de classe média. O objetivo é uma vida íntegra, plena, com saúde, estrutura familiar, bem-sucedida financeiramente e repleta de controles e regras. Isso marca todo o aconselhamento sobre o assunto que você encontrar nas redes.”
Para Karnal, “felicidade é conservar energias para coisas que valem a pena.” Ele consegue também provocar seus seguidores com frases como esta: “A felicidade engorda, enquanto a tristeza faz você se movimentar.”
A intensa exposição de sua imagem na TV e na internet aumenta a força de Karnal nas prateleiras das livrarias. Embora esteja consagrado como um divulgador de questões filosóficas para o grande público, há uma força enorme em seus trabalhos recentes que resgatam a figura do historiador.
Em 2017, ele fez uma parceria com o doutor em história cultural Luiz Estevam Fernandes no livro Santos Fortes: Raízes do Sagrado no Brasil. Os dois recorrem a biografias e descrevem hábitos religiosos que traçam um retrato do cotidiano da fé no País. Percorrem dos santos populares, como Santo Antônio, São Jorge e São João, até aqueles que chamam de “santos fora do altar”, como Padre Cícero.
Em O Mundo Como Eu Vejo, lançado em 2018, há um trecho em que Karnal resume sua ligação com aqueles que leem seus livros. “O leitor é um bom julgador quando se alegra e quando se irrita. Ele existe como conceito e como comunicação real. Tenho quem me ame por princípio e, claro, desenvolvi haters sistemáticos. A rigor, ambos me procuram e analisam. Um dos aprendizados da grande mídia é que a responsabilidade do autor sobre o texto é vaga. Solto ao ar, como pluma de cinco mil toques, o texto desperta tudo ao sabor de um vento subjetivo. É um gesto de humildade do autor não querer dominar ou dirigir a hermenêutica do leitor. Ela pertence ao imponderável e ao subjetivo. Mais uma vez recorro ao meu estimado leitor e à minha querida leitora: discordem, concluam, concordem ou lamentem, mas sempre leiam e formem sua própria peça multifacetada da aventura do saber. A magia do conhecimento é maior do que todos nós.”
PARA SABER MAIS: O Dilema do Porco Espinho: Como Encarar a Solidão, de Leandro Karnal
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Leandro Karnal – O historiador convertido em guru da filosofia pop Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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