O que seria da quarentena sem a música? O repórter que vos fala anda trabalhando ao som de Iggy Pop todos os dias – é o único jeito de fazer o home office render. É de se imaginar que as pessoas que estão cumprindo o distanciamento social busquem músicas animadas no Spotify para não se entregar de vez à melancolia doméstica. Mas não é bem assim.
Há quem queira consumir conteúdo sobre a desgraça em vez de afastar a cabeça dela. Por exemplo: a série de documentários Pandemia, da Netflix, foi produzida antes da covid-19 e foca no vírus da gripe. Mesmo assim, sua audiência disparou para o top 10 do serviço de streaming após o coronavírus começar sua cruzada microscópica. A finalidade não é apenas se informar: vírus e bactérias, como os serial killers de dramas policiais, geram fascínio sobre nós.
Algo parecido está rolando no Spotify. Alguns sons deprê que foram hits nas décadas passadas voltaram às caixas de som. A revista Rolling Stone americana analisou dados gerados pelo Spotify, o Deezer e outros serviços usados para consumir música em busca de picos inesperados entre 12 de março e 23 abril. E encontrou o equivalente musical de assistir Pandemia em plena Pandemia.
O clássico “It’s the end of the world as we know it (and I feel fine)”, do REM, foi reproduzida 5,6 milhões de vezes no período analisado, um aumento de 110%. O título da canção se traduz por algo como “É o fim do mundo como conhecemos (e eu me sinto bem)”. De fato, o deboche começa logo no primeiro verso, que comemora um terremoto. Depois, Michael Stipe comenta o problema malthusiano da superpopulação, mencionando brevemente jornalistas desesperados. E pensar que em 1988, quando a música foi lançada, a Terra tinha “apenas” 5 bilhões de habitantes.
Em “Don’t stand so close to me” (“Não fique tão perto de mim”), do Police, Sting canta sobre um relacionamento um tanto suspeito entre um professor e sua aluna. A música tem uma melodia razoavelmente feliz, mas o conteúdo é uma versão pós-punk da Lolita de Vladmir Nabokov. O aumento de 81% nos streams, porém, indica que os ouvintes de 2020 estão interessados no título – que não precisa se referir a um quarentão tarado, é claro. Pode perfeitamente representar o que você diz à sua avó idosa para evitar que ela te abrace em pleno coronavírus.
Se você não anda no melhor dos estados de espírito, é uma péssima ideia ouvir Joy Division – uma banda tão melancólica que acabou com o suicídio do vocalista Ian Curtis em 1980. Muita gente não seguiu o conselho: “Isolation” (“Isolamento”), canção de título autoexplicativo, viu suas reproduções aumentarem 112%. “Mãe, eu tentei, acredite em mim. Estou fazendo o melhor que posso. Eu tenho vergonha das coisas pelas quais passei. Tenho vergonha da pessoa que eu sou.”
Nem tudo são lágrimas, é claro. “Rise up” (“Levante-se”) de Adria Ray bateu 13 milhões de streams no período analisado, um aumento de 307% para o hit de cinco anos atrás. “Tudo que precisamos é esperança, e para isso temos um ao outro”, afirma a cantora em um tom de quem não desiste raro nesta lista. Há porém, quem não considere que um outro qualquer baste, e esteja em busca de um herói: “Hero”, de Mariah Carrey, está com 1,7 milhão de streams. Avisamos, porém, que os versos não falam de vacinas?
Importante mesmo, nessas horas, é o colo de mãe: a deliciosa “O-o-h child”, gravada em 1971 pelo grupo soul The Five Stairsteps como um hino de esperança para o movimento por direitos civis nos EUA, foi ressignificada em tempos de covid: “Um dia nós andaremos em belos raios de Sol, um dia, quando o mundo for muito mais brilhante.” Foi um aumento de 72% nas vendas – e a Rolling Stone nem considerou os covers de Nina Simone e Hall & Oates, ainda mais famosos que a versão original.
A pandemia está sendo usada pelos cinéfilos para pôr em dia aquela enorme lista de clássicos cult que eles precisam assistir para fazer comentários inteligentes por cima de um copo de uísque (ou um litrão de cerveja ligeiramente mais hipster). Um deles sem dúvida é Donnie Darko, cujo roteiro mais lembra uma pintura de Dali, e cuja trilha sonora eternizou a canção “Mad world” (“Mundo louco”), do Tears for Fears – cujas vendas unitárias dobraram durante a pandemia.
Poucas canções são tão caseiras quanto “So far away” (“Tão distante”) da diva soft rock Carole King – cujo álbum mais célebre, Tapestry (1971), tem na capa uma foto da compositora com calças boca de sino, sentada na janela de casa com um gato. Uma imagem que cai super bem com os versos “Seria ótimo ver seu rosto na minha porta, não ajuda saber que você está tão distante”. E ajuda a explicar porque a popularidade da faixa aumentou 74%. Ah, o crush. Essa coisa que existe em uma casa – e você, em outra.
8 músicas das antigas que bombaram no streaming por causa da quarentena Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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