O médico Gregory Poland dedicou sua vida ao estudo das vacinas. Ele foi um dos fundadores de uma área de pesquisa chamada “vacinômica”, que se dedica ao desenvolvimento de imunizantes individualizados de acordo com as características de cada pessoa — isso evitaria, por exemplo, reações adversas ou uma baixa resposta do sistema imune que podem ocorrer em alguns casos particulares.
Além do trabalho nas bancadas de laboratórios, Poland também é professor na Clínica Mayo, na cidade de Rochester, nos Estados Unidos. E, durante o ano de 2007, atuou como conselheiro do presidente americano George W. Bush em questões relacionadas à saúde.
Em julho de 2020, o especialista reservou um tempinho para conversar com jornalistas da América Latina. E VEJA SAÚDE teve a oportunidade de entrevistá-lo com exclusividade pelo Brasil. Como a conversa rendeu um vasto material, resolvemos dividir o conteúdo em três partes.
Hoje (10 de agosto), divulgamos o primeiro capítulo, que tem como tema principal as vacinas contra o coronavírus. Afinal, quando teremos um imunizante contra a doença?
Amanhã, na segunda parte da entrevista, Poland nos explica mais se a infecção por coronavírus gera proteção contra novos casos e dá as perspectivas do tratamento. Na quarta-feira, falaremos mais sobre desigualdade no acesso à saúde, as novas descobertas sobre a doença e as recomendações básicas para se proteger.
Recado importante: a entrevista foi realizada por videochamada e contou com a participação de jornalistas de vários países da América Latina. Portanto, as perguntas abaixo foram feitas por diferentes profissionais de imprensa.
Como você avalia o progresso das pesquisas que pretendem desenvolver uma vacina contra a Covid-19?
Gregory Poland: nas últimas semanas, tínhamos mais de uma centena de candidatas à vacina na fase pré-clínica, uma das primeiras etapas antes dos testes em seres humanos. E possuímos três ou quatro num caminho mais adiantado, chegando aos últimos estágios antes da aprovação. Isso é incrível e histórico. Uma vacina nunca foi testada com essa rapidez toda. Sabemos, portanto, que podemos ter algo no futuro.
Mas, antes disso, precisamos testar esses imunizantes para conferir se eles são realmente seguros e se sua proteção dura por um tempo prolongado. Esse é um enorme desafio: como avaliar uma vacina enquanto a pandemia está em andamento? A ciência está fazendo um ótimo trabalho, mas não devemos pular processos ou etapas.
A vacina é a única chance de controlar a pandemia?
Sim, essa é a única maneira que temos para atingir a imunidade de rebanho. O problema é que não teremos um imunizante disponível no curto prazo. Outra opção que vem sendo trabalhada é tratar a doença no início, antes que ela se agrave e cause problemas. Mas daí vem outro desafio, que é o de detectar o quadro no início, antes de os sintomas piorarem. Também não temos como fazer isso no atual momento.
Quais são os principais desafios em desenvolver uma vacina no atual contexto?
O primeiro e mais importante deles é saber se as candidatas em desenvolvimento suscitam uma resposta efetiva de nosso sistema imune. O simples fato de produzir anticorpos, a princípio, não significa muita coisa. Será que os imunizantes levam à produção dos anticorpos específicos que vão combater o coronavírus? Ainda não sabemos também se a futura vacina precisará ser repetida a cada ano ou de tempos em tempos. Provavelmente, na próxima rodada de estudos, vamos ter certeza sobre a eficácia das doses e os possíveis efeitos colaterais.
E como é essa pressão para encontrar uma vacina em tão pouco tempo?
É realmente enorme, tanto em relação aos médicos quanto aos cientistas. Até porque nós estamos na linha de frente e vemos como a doença afeta a vida das pessoas e de suas famílias. Portanto, procuramos desesperadamente algo que seja seguro e efetivo. Mas precisamos levar em conta as conquistas que fizemos: nunca, na história da humanidade, uma vacina já estava sendo testada 21 semanas depois de instalada a pandemia. E não custa reforçar: a rapidez não nos permite tomar atalhos e caminhos fáceis. Precisamos garantir a segurança e a eficácia das doses antes de mais nada.
As vacinas contra a tuberculose ou contra o sarampo podem fornecer algum tipo de proteção cruzada contra a Covid-19?
Essa foi uma observação muito curiosa de alguns estudos, mas que segue cercada de controvérsias. Essas pesquisas olharam para o passado e viram que, nos indivíduos que tomaram essas vacinas (a BCG e a tríplice viral, respectivamente), a mortalidade por Covid-19 era menor no presente. Mas é preciso tomar muito cuidado e não enxergar uma relação de causa e efeito aqui. Não se sabe ao certo, mas acredito ser seguro afirmar que não precisamos dar doses extras desses imunizantes agora para as pessoas.
É possível especular quando a vacina estará disponível na América Latina?
A expectativa é que tenhamos uma vacina nos Estados Unidos em meados de março ou abril de 2021. Agora, quando estará disponível em outros países, não tenho a menor ideia. Mas tenho a sensação que será muito depois dessa data.
Uma das grandes discussões sobre a vacina, quando ela estiver disponível, é o acesso às doses. Quem vai receber primeiro?
Isso será definido por critérios econômicos e políticos. Logicamente, os países que investiram recursos e financiaram a ciência na busca por uma vacina contra o coronavírus vão se sair melhor. Aqueles que não deram verbas para a pesquisa vão ter que esperar e comprar as doses com recursos próprios ou esperar a assistência da Organização Mundial da Saúde ou de outras entidades. Mas esse será um desafio enorme: se pensarmos em quantas pessoas vivem hoje no globo, isso significa que precisaremos de bilhões de doses. E haverá uma enorme dificuldade para disponibilizá-las de forma imediata.
E como garantir o acesso às futuras vacinas?
Entre os especialistas, não existe concordância sobre os critérios de quem devem ser os primeiros a receber a vacina. Essa é uma coisa que precisará ser discutida. Se a gente tivesse um imunizante pronto agora, eu imagino que vai demorar um ano para que ele chegue efetivamente nos países mais pobres. Claro, o interesse é que todos tenham acesso. Mas pense na logística envolvida nisso: falamos de bilhões de pessoas vulneráveis e não temos nem ampolas ou agulhas suficientes para dar conta dessa demanda. O produto precisa ser fabricado e distribuído com uma velocidade recorde. Isso nunca foi tentado na história da humanidade e ninguém sabe ao certo como fazer.
Você é um dos criadores de um campo de pesquisa chamado “vacinômica”. Pode explicar um pouco melhor o que isso significa?
O que faço no meu laboratório é olhar para a genética de diferentes seres humanos para tentar entender por que alguns respondem bem a uma vacina e outros não. Destrinchamos e aprendemos todos os detalhes sobre a imunologia, a genética e a produção de proteínas no organismo. A partir disso, tentamos criar padrões e respostas do que prediz uma boa resposta, uma má resposta e um evento adverso a um imunizante. Com todas essas informações em mãos, utilizamos a engenharia reversa para criar novas vacinas, que sejam mais efetivas para grupos específicos de pessoas. No caso do sarampo, por exemplo, 5% das pessoas que tomam as doses preconizadas não produzem os anticorpos desejados. Investigamos porque isso acontece e como podemos reverter esse processo de modo a proteger mais gente.
Entrevista: quando teremos uma vacina contra a Covid-19? Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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