segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Medir a temperatura para detectar o coronavírus é eficaz?

Aquele termômetro digital com sensor infravermelho — que mede a temperatura de alguém ao ser apontado contra a sua testa — virou equipamento de trabalho comum dos seguranças que controlam a entrada de parques, mercados, lojas, escritórios etc. Com a reabertura do comércio e a flexibilização da quarentena, ele vem sendo usado como um instrumento para detectar indivíduos com coronavírus (Sars-CoV-2) que seguem circulando por aí. Mas essa é uma estratégia eficiente para frear a transmissão?

Especialistas e estudos consultados pela reportagem indicam que não. “Existe uma grande possibilidade de pessoas assintomáticas, pré-sintomáticas ou mesmo com outros sintomas, mas sem febre, entrarem no estabelecimento e o contaminarem”, destaca Sylvia Lemos Hinrichsen, infectologista consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

O método se baseia na experiência com epidemias anteriores, que foram disparadas por parentes do Sars-CoV-2. Entretanto, no caso do novo coronavírus, a febre não parece ser um sintoma tão importante assim. “Estudos já demonstraram que a temperatura acima de 38°C aparece em menos de metade das pessoas com Covid-19”, explica o infectologista Leonardo Weissmann, também da SBI.

Até pode ser que um episódio da doença seja descoberto na fila do mercado, servindo de motivo para uma visita ao médico. “Mas, de modo geral, isso não tem acontecido nos outros países. Os estudos mostram que poucos casos são flagrados desse jeito”, diz Sylvia.

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Tanto que, por ora, não existe uma orientação oficial sobre essa medida em órgãos como o Ministério da Saúde. Em nota técnica, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não recomenda que o termômetro seja usado como parâmetro único de triagem de viajantes que chegam ao país.

A medição de temperatura já fracassou no passado

O pneumologista Gustavo Prado, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, lembra que essa tática em massa falhou com outras doenças. “Há mais de uma década, vários aeroportos adotaram essa estratégia contra o vírus H1N1 da gripe. A grande maioria casos nos viajantes internacionais não foi acusada pelo termômetro”, aponta.

Situação semelhante ocorreu com o ebola. “Alguns países passaram a medir a temperatura de todos os passageiros oriundos da África, mas nenhum caso fora do continente foi detectado dessa maneira”, destaca Prado.

O número do termômetro pode ser impreciso

Além do alto índice de pacientes que carregam o coronavírus sem apresentar febre, há uma segunda limitação do método. O termômetro infravermelho precisa de condições específicas para executar seu trabalho com acurácia.

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“A temperatura superficial da testa não reflete muito bem a temperatura central”, aponta Prado. Se você passou um produto cosmético ou estava no ar condicionado, por exemplo, ela tende a ficar mais baixa. Por outro lado, ao correr ou pegar bastante sol, pode subir um pouquinho.

“Fora que o indivíduo pode ter tomado um medicamento anti-inflamatório, analgésico ou mesmo antitérmico, que abaixam a temperatura”, completa o pneumologista. Ou seja, se a pessoa estiver infectada, mas tratando uma dor de dente ou de joelho, correria um risco ainda maior de passar despercebida pela triagem. Hora do dia e idade são outros fatores que influenciam nos valores apontados pelo termômetro.

Por último, o dispositivo em si deve ser manuseado com perícia, seguindo as orientações do fabricante. Quanto mais distante o equipamento fica da testa, maior o risco de erro. Ah, é necessário que a lente ou o sensor estejam perpendiculares ao alvo — e devidamente limpos.

Termômetro infravermelho não afeta a glândula pineal

Ele pode até não ser a coisa mais importante para conter a Covid-19. Mas também não faz mal.

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Recentemente, um boato nas redes sociais alegava que usar o termômetro infravermelho afetaria a glândula pineal, estrutura do cérebro responsável por secretar a melatonina, também chamada de hormônio do sono. Segundo essa notícia falsa, o cérebro todo estaria em risco.

Fique tranquilo: o laser do termômetro digital sequer penetra tão profundamente no corpo. “Trata-se de mais uma informação falsa. Por causa desse receio, há quem peça para que a temperatura seja verificada pelo pulso, o que também está errado”, elucida Weissmann.

Como poderia ser feita uma triagem adequada contra o coronavírus?

Estamos navegando por mares ainda desconhecidos, porém um rastreamento ideal provavelmente envolverá um conjunto de estratégias. Isso porque a Covid-19 se manifesta de maneira diferentes entre as pessoas — apostar em só um parâmetro (temperatura, oxigenação do sangue, presença de tosse…) sempre envolverá um risco.

Uma possibilidade é aplicar questionários sobre alguns sintomas comuns, além da febre: tosse, dificuldade para respirar, dor no corpo, dor de garganta, diarreia, perda de paladar ou olfato, contato com casos suspeitos ou confirmados. Aliás, indivíduos com quadros assim sequer deveriam se expor, a não ser que seja para ir ao hospital ou para uma consulta.

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Mais do que tudo, deve-se apostar em comunicação bem-feita e fiscalização das medidas de prevenção reconhecidas pela ciência: lavar as mãos com frequência, disponibilizar álcool em gel, limitar a circulação, proibir aglomerações, respeitar o distanciamento social e tornar obrigatório o uso de máscaras.

Resumo da ópera: não pense que, só porque um estabelecimento faz a checagem de temperatura na porta, o ambiente interno está livre de Covid-19. Em conjunto com os protocolos já consagrados de prevenção da transmissão, o termômetro pode ter uma utilidade marginal — nada além disso. “Ele talvez iniba as pessoas a saírem de casa se estiverem sentindo algo”, conclui Weismann.


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