quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Faça uma pausa hoje para não pifar amanhã

Será que o tempo anda passando mais depressa? A questão, que já atormentou físicos, filósofos e muitos outros mortais, foi o ponto de partida da jornalista Izabella Camargo para discutir nossa relação com as horas, os minutos e os segundos — relação profundamente afetada pela era digital. Para essa autêntica DR, ela entrevistou pessoas das mais diversas áreas do conhecimento e mesclou um conjunto de reflexões e vivências com seus próprios aprendizados diante da síndrome do burnout.

O resultado está nas páginas (ou na tela) do seu primeiro livro, Dá um Tempo!, recém-lançado pelo selo Principium da Editora Globo (clique aqui para ver e comprar). Foram quatro anos de pesquisas e conversas, com um burnout no meio do caminho e uma pandemia no desfecho da jornada. Izabella dá voz a historiadores, filósofos, psicólogos, médicos, físicos, executivos, artistas e religiosos. O panteão de impressões, pensatas e conselhos abriga desde Mario Sergio Cortella e Leandro Karnal até Fernanda Montenegro e Frei Betto.

A jornalista vai das angústias compartilhadas pelo dramaturgo romano Plauto, do século 3 antes de Cristo, à visão sobre o momento do presidente do Google no Brasil. E não deixa de contemplar e problematizar as consequências de uma rotina acelerada e marcada pela corrida contra o relógio — cujo saldo pode envolver ansiedade, depressão, entre outras mazelas à saúde.

Nesta entrevista, Izabella revela o caminho de construção do livro, reflete sobre nossa percepção e aflição diante do tempo, avalia os efeitos da tecnologia, do trabalho e da Covid-19 nesse contexto e nos convida a desacelerar e pausar um pouco hoje para não pifar amanhã.

VEJA SAÚDE: O processo de elaboração do livro parte de uma inquietação sua e de tantas outras pessoas, passa por um burnout e se consolida em meio a uma pandemia. Como foi essa história?

Foram quatro anos de pesquisa, mais vivências e muitos imprevistos, com um epílogo que eu só tive tempo de escrever por causa da pandemia. Quando tive a intenção de escrever esse livro lá em 2017, o objetivo era juntar um punhado de informações para responder à pergunta: será que o tempo está passando mais depressa ou não? Eu ouvia muito essa pergunta e, naquela época, saíram algumas notícias e teorias meio confusas que me fizeram buscar respostas para saber se o tempo natural estava passando mais rápido ou nós que estávamos passando mais rápido pelo tempo. Eu comecei esse percurso ouvindo físicos e cosmólogos, mas, percebendo também que as pessoas andavam cada vez mais estressadas e doentes por causa disso, tive a ideia de expandir, escutar outros especialistas e abordar outras visões e aspectos sobre o tempo.

Porque a gente fala do tempo o tempo inteiro, mas não para pra pensar nisso e no nosso tempo de verdade. Só para pra pensar a respeito quanto tem uma perda, é dispensado do trabalho ou precisa de um pedido de licença médica. Só quando seu tempo é subtraído violentamente que você para pra pensar nele. Com isso em mente, minha ideia foi propor uma reflexão para as pessoas não adoecerem nestes tempos mais velozes. Nesses quatro anos, além de eu ter entrevistado pessoas fantásticas, também vivi na pele o burnout, que, como a própria história mostra, não é um problema novo, mas que aumentou muito nos últimos tempos.

Foi assim que me senti confortável e segura para expor conhecimentos dos quais fui só um instrumento e trazer junto a eles a minha experiência. Então posso falar: se a gente não fizer uma pausa voluntária em nossa rotina, terá que fazer uma pausa involuntária depois.

Mas dá pra pausar em tempos tão acelerados? Como seu conflito com o tempo e o burnout impactou o livro?

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Para manter o ritmo e a mesma velocidade, temos que pisar no freio e desacelerar de vez em quando. Eu recorro muito à figura do carro para falar de como encontrar limite num mundo sem limites. Nas autoestradas, mesmo que permitam que a gente ande em alta velocidade, há um limite para manter a segurança dos motoristas. O problema não é ser veloz, mas não saber pisar no freio quando preciso e desrespeitar os limites de velocidade.

É a mesma coisa na nossa vida. Mas o fato é que a gente tem uma grande ganância por querer fazer tudo, aproveitar todas as opções, entrar em todos os sites, fazer todos os cursos… Isso se mostrou inclusive na pandemia. A gente não quer perder nada. Só que, para você se colocar na sua agenda, vai ter de abrir mão de muitas coisas.

Em 2018, já com o contrato do livro assinado e tendo feito diversas entrevistas, recebi o diagnóstico de burnout. O curioso é que eu não vi o burnout chegar até mim mesmo tendo conversado com tantos especialistas, inclusive sobre o excesso de estresse ligado ao trabalho. Isso mostra que nem sempre a informação muda o comportamento. Por mais que eu ouvisse que a sobrecarga podia trazer doenças, eu achava que nas próximas férias me recuperaria.

Nesses quatro anos, aprendi muito com os outros e comigo. E aprendi que a gente precisa ter mais consciência da recuperação do corpo diante desses excessos. Quando se trabalha muito vive-se na expectativa de que o tempo de descanso vai chegar. Mas e se esse tempo não chega? Por quanto tempo você consegue ficar saudável nesse ritmo?

No livro não entro em detalhes da minha história com o burnout porque ela ficou pequena diante desse universo. Estamos falando, segundo uma última pesquisa da USP, de 20 milhões de brasileiros com o problema. É quase duas vezes a população de Portugal. Mas no livro trago o que aprendi com o burnout, com o respaldo de especialistas e dados de instituições.

Tudo isso me permitiu falar sobre um dos novos problemas que esses novos tempos vêm causando, embora a gente saiba que existam outras consequências como ansiedade e depressão. Mas o principal é poder falar e dar conselhos úteis sobre prevenção e preservação da vida, uma vida que a gente está tentando encaixar numa agenda de 24 horas pensando que ela pode ser esticada.

No livro você traz também a vivência de pessoas que lidaram das formas mais diferentes (e às vezes difíceis) com o tempo, o que nos remete àquela noção de que o tempo é relativo. Acha que ele tem passado mais depressa para quase todo mundo hoje? 

Não. Tem gente que sente o tempo passar mais devagar. Quem? Pessoas em filas, na fila do banco, do banheiro ou de um transplante, como mostra uma história emocionante que trago no livro. Tem gente que se aposenta e não se prepara para esse tempo livre que nunca viveu. E essas pessoas podem até desenvolver ansiedade ou depressão por se sentirem inúteis depois de tantos anos trabalhando tanto. Para elas, o tempo parece passar mais devagar.

Agora, tem gente no meio do caminho. Algumas horas passam mais devagar, outras mais depressa. Mas esse não é o tempo da natureza. O tempo que a gente conta, o do relógio e o do calendário, é um tempo mecânico construído sob diversos interesses e em cima desse tempo da natureza, que não muda.

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Quando eu vejo um dramaturgo chamado Plauto reclamando do tempo e do relógio de sol há três séculos antes de Cristo, isso me proporcionou um salto, um estado de eureca. Desde os tempos dos relógios de sol as pessoas já tinham a percepção de que o tempo estava passando mais rápido.

O que aconteceu de lá pra cá? Muitas mudanças, cada vez mais rápidas, e que agora ocorrem na velocidade da internet, não mais na das pernas das pessoas ou dos cavalos, os meios de compartilhar as mensagens lá atrás. Quando estudamos a evolução na comunicação e nos transportes, começamos a entender por que estamos onde estamos hoje, com essa percepção de que o tempo anda passando mais depressa.

Existem vários aspectos que abordo no livro mostrando que é você que vai determinar o ritmo de passagem do tempo. É você que estabelece sua agenda e seus compromissos. Antes a informação chegava pela TV, pelos jornais e pelas revistas em um tempo pré-definido. Hoje você não tem mais hora para receber a informação, pode receber a hora que quiser, do jeito que quiser.

Uma das razões para essa sensação de o tempo estar passando mais rápido é justamente esse preenchimento alucinado de agenda. A gente passa de uma informação a outra, de uma atividade a outra, em um ritmo mais acelerado e superficial. Nosso cérebro é recrutado mas não direciona atenção nem forma memória com esse fluxo. E a gente só se lembra de coisas e de dias importantes quando se tem a memória deles.

A tecnologia e a vida hiperconectada não estariam saturando nosso tempo e nossa rotina?

A gente vive num mundo express. A gente quer tudo o mais rápido possível e isso alimenta uma ansiedade maluca. Vivemos num mundo digital com um cérebro analógico, de ritmo próprio. Eu não consigo acelerar meu processamento interno de dados. Nós convivemos com upgrades cada vez mais velozes, que deixam as máquinas mais rápidas, mas o corpo humano tem de manter seu ritmo, pelo menos por enquanto.

Mas o ponto aqui é que estamos sendo cobrados por contratos de tempos que não assinamos. Veja, existem contratos de tempos sociais, como o horário do banco, que fecha às quatro da tarde. Mas, se eu te enviar uma mensagem e te cobrar uma resposta dentro do meu tempo, estou criando uma situação incoerente, afinal, você tem suas coisas pra fazer. Daí que a gente vai entrando no funil de urgência das pessoas e passa a ser cobrada por contratos que não assinou.

Como eu resolvo isso? Colocando limites. Frei Betto deixa em seus e-mails uma resposta automática agradecendo pela mensagem, dizendo que irá responder em breve, mas lembrando que não está todo o tempo na frente do computador, que ele preza por outros afazeres. O padre Fábio de Melo fala no livro que, para se recuperar das crises de pânico, começou também a dizer “não” para algumas oportunidades que surgiam. Ele diz: “Só eu sei o custo de um compromisso na minha agenda”.

Então, em meio a essa oferta e a esse excesso de acessos, conteúdos e atividades, se a gente disser “sim” para todo mundo e responder a todas as demandas na velocidade que os outros esperam, quem vai pagar o preço com problemas de saúde somos nós. Não tem uma regra ou manual, mas cada um precisa encontrar seu limite.

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<span class="hidden">–</span>Fonte: Editora Globo/Divulgação

No livro você entrevista Fábio Coelho, líder do Google no Brasil, e ele compara uma mudança de postura e consumo diante da tecnologia à reeducação alimentar. Nossa sociedade já está despertando para um uso mais equilibrado da internet?

A internet não é uma vilã, assim como a TV não era vilã há algum tempo. Mas na mesma mãozinha que não para de mexer no controle remoto tem aquele dedinho que desliza por feeds infinitos. Quando você vê, passou uma hora com o celular na mão e não absorveu nada. E, sim, vai sentir que o tempo está passando mais rápido.

Nesse sentido, os excessos com a internet são parecidos com os alimentares. Então, se no fim de semana eu me excedi na pizza, depende de mim reduzir o carboidrato nos próximos dias. Se hoje fiquei tempo demais na internet, posso maneirar nesse uso amanhã. Vejo muitos pais fazendo isso com as crianças ao limitar o tempo de tela delas. Mas me pergunto: eles também estão se colocando limites?

A solução não passa por extremos. Não estou falando para deixar de usar a internet nem para não comer mais pizza. Se você passar muito tempo na frente do celular e do computador e não tiver nenhum mal-estar físico ou mental, tudo bem, eu me retiro da conversa. Mas quem quer ficar no wi-fi inifinto precisa ter a noção de que isso tem um custo. No excesso de alimentos, o custo vem na forma de gordura. Na internet, vem na forma de esgotamento e de outros problemas de saúde.

A questão está muito mais no nosso autocontrole do que na tecnologia em si. Paracelso já dizia que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose.

O conceito do profissional multitarefas ascendeu nos últimos anos, mas, ao que tudo indica, parece uma ilusão também, não?

Sim, temos várias crenças a revisar. Pense naquelas frases como “devagar se vai longe” ou “o apressado come cru”. Elas nos lembram que a velocidade pode ser sinônimo de progresso, mas a pressa, não. Lembram que, se eu aumentar a temperatura do forno, o bolo vai sair cru por dentro e queimado por fora. Ora, o que é o burnout senão uma pessoa que queima mas está crua por dentro, desnutrida dela própria?

O multitarefa é uma dessas crenças. Você até pode fazer duas coisas ao mesmo tempo, desde que uma seja mais manual e a outra, cognitiva. Mesmo assim, talvez não faça ambas com a mesma excelência ou eficiência. Posso estar lavando uma louça e conversando com você, mas o prato pode ficar mal lavado. Imagine fazer várias tarefas cognitivas ao mesmo tempo. Imagine eu conversando com você aqui e desviando minha atenção para responder um e-mail. Vou me perder no raciocínio. A gente vem alimentando essa ilusão de que consegue responder e-mail, falar no telefone e fazer outras coisas simultaneamente e é evidente que não vai ter um resultado equilibrado. Você perde energia, tempo e saúde nesse processo.

O psiquiatra Daniel de Barros, que entrevistei para o livro, usa a analogia de um quarto escuro com uma lanterna num canto. Esse farol pode levar uma luz para um pedaço, mas não vai iluminar todos os cantos. Assim é com a nossa atenção. E isso me remete ao conceito de delusão citado pela Monja Coen, que é a gente acreditar numa coisa mesmo sabendo que ela é uma ilusão.

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Como a pandemia e o isolamento embananaram ainda mais nossa relação com o tempo?

Só o tempo vai trazer respostas mais consolidadas, mas as observações, as pesquisas e os números atuais já apontam para algumas coisas. A Covid vem validar — infelizmente, claro — aquela noção que trabalho no livro inteiro: a de que precisamos fazer pausas. No momento, precisamos fazer uma pausa voluntária dentro de uma pausa involuntária. Ou eu piso no freio quando preciso ou terei uma multa ou um acidente depois.

Na pandemia, as pessoas que fizeram uma pausa voluntária, revisaram sua agenda e seus hábitos e se organizaram estão saindo melhor do isolamento. Quem não fez isso se sai pior, com ansiedade e depressão, como os estudos já indicam. A Covid veio mostrar que às vezes temos de fazer uma pausa independente do que está rolando lá fora. E é irônico pensar que muita gente passou a reclamar de algo que sempre pedia: mais tempo em casa e com a família.

Com o controle da pandemia, precisaremos fazer mais pausas voluntárias para evitar pausas involuntárias, como um possível adoecimento. Se você não parar pra prestar atenção aos sintomas e avisos do seu corpo, não adianta reclamar depois. Foi o que aconteceu comigo no burnout.

Quem ignora esses sinais e as pausas que o organismo requer vai ficar com o corpo ou a mente doente?

Não sei quem foi que dividiu a saúde física da mental. Uma coisa não se separa da outra. Mas, sim, abusar desse limite, colocar mais compromissos na agenda do que podemos suportar, tem um custo chamado problema de saúde. Pela minha história e a de tantas pessoas que passaram pela minha vida desde então, fica claro que o corpo vai dando sinais até uma hora que o cérebro fala: agora deu!

E o sono é um bom parâmetro aqui. Muita gente ainda tem a crença de que dormir é perda de tempo. O sono é a primeira coisa que se subtrai para maximizar a agenda. É verdade que tem gente que precisa dormir menos para pegar o transporte público e chegar até o trabalho. Sim, temos realidades cruéis também. Mas o pior cenário é a pessoa dormir menos pensando em produzir mais. Quem dorme menos de seis horas por noite corre maior risco de ter dezenas de doenças, de morrer mais cedo…

No livro você dá várias conotações ao “dar um tempo”. Pode ser mais tempo para si, para ficar com quem a gente ama, para se dedicar a algo prazeroso, para não fazer nada… Qual é o sentido mais urgente hoje?

Eu diria que é se dar um tempo para respirar, silenciar e não fazer nada. Quando entrevistei o psiquiatra forense Guido Palomba a respeito do burnout, eu perguntei: o que a gente faz para preservar a saúde? Ele respondeu: “não faz nada”. Como assim? Pois é, precisamos ter no dia a dia pequenos momentos sem fazer nada e, aos finais de semana, grandes momentos sem fazer nada. Só que hoje a gente desaprendeu a ficar sem fazer nada.

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Isso tem a ver com aquele aforismo atribuído a Benjamin Franklin: “tempo é dinheiro”. Mas a gente precisa desenvolver sabedoria para definir quando o tempo é, de fato, dinheiro. Precisamos pensar num ponto de equilíbrio na rotina, na chamada produtividade sustentável. Não adianta você ser o funcionário do mês hoje e ser afastado mês que vem.

A minha recomendação é que você pare, nem que seja um minuto, para não fazer nada. Fique em silêncio e preste atenção só na sua respiração. Sem celular por perto. Não estou falando de meditação, que pode soar como mais uma tarefa a cumprir.

O tempo é o intervalo entre a inspiração e a expiração. Se você corre demais, fica ofegante e passa mais rápido pelo tempo. Então o que eu proponho é: pare pra pensar se o que você faz com o tempo faz sentido a você. Se traz mais satisfação do que insatisfação. Falar de tempo é também falar de escolhas.

Depois dessa jornada toda, você aprendeu a se dar um tempo?

Hoje eu consigo reconhecer meus limites. Não abro mão das minhas horas de sono, a não ser que seja por algo extraordinário, como um show da Tina Turner. E aprendi que, se eu excedi hoje, vou ter de aliviar amanhã. A mesma lógica da pizza no fim de semana se aplica aos compromissos, ao trabalho… O psiquiatra Orestes Forlenza, especialista em Alzheimer, fala no livro que a percepção do tempo passando mais rápido tem a ver com as pausas que a gente não faz.

Também aprendi muito a dizer “não”. Há um “treino do não” que trago no livro. Às vezes, a gente tem de dizer: “adorei o convite, mas fica para uma próxima”. O “não” pode ser muito positivo e preventivo.


Faça uma pausa hoje para não pifar amanhã Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

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