quarta-feira, 3 de julho de 2019

Cientistas eliminaram o HIV de animais vivos pela 1ª vez. O que isso significa?

Os antirretorvirais (ARVs) mudaram os horizontes de uma pessoa com HIV. Antigamente, contrair o vírus era um caminho sem volta – ele matou 35 milhões nas últimas quatro décadas. Hoje, os ARVs oferecem uma expectativa de vida tão longa quanto a de quem nunca foi exposto ao vírus da aids.

Usados ​​corretamente, esses medicamentos mantêm o HIV em níveis baixíssimos, quase indetectáveis, o que reduz drasticamente a chance de transmissão por transfusões sanguíneas e relações sexuais.

O que leva à pergunta: se a pessoa não apresenta mais os sintomas e tampouco transmite a doença, por que ela ainda não está curada?

Bem, porque o vírus ainda está no organismo dela. Mesmo escondido, ele está lá, esperando uma brecha dos ARVs para poder se reproduzir novamente. Curar a doença de vez é algo bem mais complexo.

Agora, em um estudo publicado no periódico Nature Communications, pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade Temple, na Pensilvânia, e do Centro Médico da Universidade de Nebraska relatam que eliminaram o HIV de camundongos vivos. É a cura da aids? Não. Mas, com certeza, é um novo caminho a ser explorado.

Mecanismo do HIV e dos ARVs

Antes de explicar como os pesquisadores conseguiram essa façanha, é importante revisar como o vírus da aids e os medicamentos antirretrovirais funcionam.

O HIV ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo de doenças. Os principais alvos são células de defesa conhecidas como linfócitos T-CD4+. O vírus adere à parede dessas células e injeta nelas seu material genético (que consiste em duas fitas de RNA) e algumas proteínas acessórias. Com uma dessas proteínas, chamada transcriptase reversa, ele produz DNA por meio de seu RNA (daí o nome reverso: a transcrição, geralmente, produz RNA usando DNA).

[Esqueceu a diferença entre RNA e DNA? Leia esta matéria para mais detalhes]

Por fim, esse DNA fabricado pelo vírus é integrado ao DNA original da célula hospedeira. Com as instruções contidas nesse pedaço de DNA viral, a célula passa a produzir vírus. Em vez de atuar a serviço do ser humano, a célula vira um zumbi, uma fábrica biológica usada pelo vírus para produzir mais de si próprio. Ao final do processo, esses vírus fresquinhos destroem o linfócito zumbi e partem em busca de outras células do corpo para infectar.

Os antirretrovirais não atacam diretamente o material genético (o RNA) do vírus – que, sozinho, não é capaz de fazer nada –, e sim suas proteínas acessórias, as responsáveis pela parte prática da invasão. E essa não é uma abordagem ruim: como elas são responsáveis por basicamente tudo, barrá-las é o mesmo que parar a multiplicação viral. Sem essa multiplicação, a infecção não consegue se espalhar pelo corpo.

Mas o HIV é astuto. No início da infecção, alguns vírus vão a células remotas do corpo – como as do sistema linfático, ao qual pertence o baço – apenas para se esconder. Eles ficam lá, latentes, como uma reserva caso seus comparsas sejam eliminados.

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Abordagem genética

O combate à aids sempre foi voltado para a proteção do sistema imunológico. Afinal, com o corpo indefeso, qualquer bactéria boba pode matar.

Há anos, porém, alguns pesquisadores sugerem uma nova abordagem: não tratar a aids como uma doença infecciosa, e sim como uma doença genética. E se, ao invés de impedir a multiplicação atacando as proteínas, o DNA viral fosse retirado das células infectadas?

Os cientistas já tentaram fazer isso. Em 2016, pesquisadores da Filadélfia – os mesmos envolvidos no novo estudo – foram os primeiros a usar a técnica CRISPR contra o HIV. Usando essa “tesoura molecular”, eles cortaram os DNAs das células nos pontos exatos onde estavam os DNAs virais.

[para entender o que é e como funciona a técnica CRISPR, leia nossa reportagem].

Sucesso? Infelizmente não. Mesmo o DNA viral sendo “eliminado”, o HIV que ainda estava na corrente sanguínea acabou tirando vantagem da situação, se infiltrando nas pontas abertas que o CRISPR deixou no DNA da célula hospedeira. Em duas semanas, ele voltou mais forte.

Apesar de promissora, a abordagem genética não funciona sozinha. E aí está o pulo do gato do novo estudo: ele usou tanto os ARV quanto o CRISPR.

Novas esperanças, mas com cautela

O estudo envolveu 29 camundongos de laboratório, modificados para produzir linfócitos T humanos, suscetíveis à infecção de HIV. Após os animais contraírem a doença, começaram os testes.

O primeiro passo foi reduzir a replicação do vírus no sangue usando as drogas ARV convencionais, mas melhoradas com um processo chamado LASER ART (Terapia Antirretroviral de Liberação Lenta com Efeito Prolongado, em tradução livre). Esse upgrade nas ARVs foi desenvolvido pelo Dr. Howard Gendelman, presidente de farmacologia e neurociência experimental no Centro Médico da Universidade de Nebraska, um dos autores do estudo.

Com o LASER ART, as drogas antirretrovirais tradicionais não apenas combatem a multiplicação dos vírus presentes no sangue, mas também a daqueles que ficam escondidos em células imprevisíveis por todo o corpo. Isso porque as drogas foram inseridas em estruturas cristalinas minúsculas, envolvidas em partículas lipossolúveis (isto é, solúveis em gordura) que facilitam o acesso a diversas áreas do corpo.

Essas estruturas cristalinas, uma vez dentro das células, liberam as ARVs mais lentamente, matando os vírus latentes no mesmo ritmo em que eles se replicam. Elas são como seguranças, que vigiam a célula por meses, em vez de dias ou semanas (como as formas convencionais dos medicamentos), atacando na hora que eles ressurgem.

Com esses seguranças a postos, pode entrar em cena o CRISPR – que explicamos alguns parágrafos atrás. Ele arranca o pedaço de DNA viral da célula invadida. E como os super ARVs estão vigiando a célula, o vírus não consegue instalar de novo seu DNA.

Deu meio certo. Ou um pouco menos de meio certo: após diversos testes, os cientistas não encontraram nenhum vestígio do vírus em 30% das cobaias.

A equipe já está testando a terapia em primatas, e espera confirmar os mesmos resultados. Se tiverem sucesso, isso pode abrir portas para testes em humanos, mas a segurança do método CRISPR ainda é um obstáculo. A principal ressalva é que a técnica poderia introduzir mutações imprevisíveis no DNA, gerando células cancerígenas, por exemplo.

Os pesquisadores não encontraram nenhum efeito “fora do alvo” quando analisaram os baços de quatro animais tratados. Ainda assim, isso não prova que nunca poderia acontecer. De qualquer forma, com as novas descobertas, temos mais mais uma promissora arma contra o vírus da aids.


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