Marcelo Takeshi Yamashita, especialista em condensados de Bose-Einstein, é diretor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp, fundado em 1952 e atualmente sediado no bairro da Barra Funda, em São Paulo. Ele é um dos diretores do Instituto Questão de Ciência, inaugurado no final de 2018 para pressionar as autoridades a levar evidências científicas em consideração ao formular políticas públicas.
Em maio, ele conversou com a SUPER sobre um fenômeno do mercado editorial: os coaches e autores de autoajuda que misturam doutrinas esotéricas e uma versão picareta da física quântica – que distorce algumas das descobertas mais importantes das ciências naturais no século 20. Essa entrevista faz parte da matéria “O Novo Obscurantismo”, capa da edição de julho. Leia aqui.
A mecânica quântica é o ramo da Física que se dá melhor em descrever os fenômenos que acontecem em escala microscópica. É nela que se baseia nossa compreensão atual de partículas subatômicas, átomos e moléculas (conjuntos de átomos).
Interpretações ingênuas e equivocadas das conclusões dessa área movimentam um enorme mercado de livros, palestras motivacionais e até cursos de saúde quântica em universidades particulares. Tornou-se lugar comum afirmar que a consciência é capaz de influenciar de alguma forma o desfecho de acontecimentos – bastaria ter pensamento positivo para alcançar o que se deseja, e estados de espírito poderiam ser identificados como ondas de uma certa frequência.
Marcelo explica o quê é a física quântica de verdade, desmente alguns mitos sobre sua aplicação e esclarece por que ela diz respeito apenas ao mundo microscópico.
Quais são os conceitos da física quântica que os esoteristas costumam incorporar às suas hipóteses?
Posso destacar quatro: a dualidade onda-partícula, o Princípio da Incerteza, o termo energia e o experimento imaginário do gato de Schrödinger. Vou explicá-los.
A dualidade onda-partícula é o seguinte: partículas fundamentais – como um elétron, fóton ou quark, por exemplo – apresentam um comportamento que chamamos de dual. Em algumas situações, agem como onda; em outras, como partícula. Essa dualidade (que não se aplica ao nosso mundo macroscópico cotidiano) é utilizada pelo esotéricos para dizer que “tudo é onda”, “tudo é vibração”.
Agora o Princípio da Incerteza. Ele diz, grosso modo, o seguinte: se soubermos a velocidade de uma partícula com uma precisão infinita, simplesmente não saberemos sua posição. Já se soubermos sua posição, não saberemos a sua velocidade. Essa é uma limitação imposta pela natureza à medição dessas duas grandezas.
O Princípio decorre de uma série de procedimentos matemáticos desenvolvidos em 1925 por Werner Heisenberg que descrevem muito bem algumas propriedades do mundo quântico. Mas ele é comumente utilizado por esoteristas para relativizar a realidade. O argumento é simples: já que nada está determinado, tudo pode ser modificado pelo pensamento.
Então, há a apropriação do termo energia. Há energias muito bem definidas na física – como a energia cinética ou energia potencial gravitacional, por exemplo. Os esotéricos gostam, porém, de criar uma categoria de energias que só eles conseguem sentir: eles a classificam como boa ou ruim e que estaria relacionada aos sentimentos das pessoas e até à disposição dos objetos em um ambiente (o conhecido Feng Shui).
Por fim, há o gato de Schrödinger. Nesse experimento mental, há um gato dentro de uma caixa. Junto com ele, há um vidro de veneno. O veneno será liberado dependendo da desintegração de um núcleo atômico radioativo. Isso pode ou não acontecer [para entender melhor o que são átomos radioativos e por que eles se desintegram, leia esta reportagem].
Antes da abertura da caixa e verificação do estado do gato, portanto, ele pode ser descrito como estando morto e vivo ao mesmo tempo. Isso é invocado pelos esotéricos como um exemplo de que a consciência influencia a realidade. Essa influência, porém, não existe. Ou o núcleo atômico se desintegra, ou não. Ou gato estaria morto OU vivo – e não morto E vivo – se qualquer equipamento, independente da participação de uma pessoa, realizasse a observação.
Por que a física quântica é tão suscetível a interpretações picaretas?
A física quântica tem muitas peculiaridades que nem os físicos compreendem direito. Imagine, então, o que pensa uma pessoa que não está acostumada com o ferramental matemático e as ideias contraintuitivas dessa área. Posso apostar que a maioria das pessoas que menciona a física quântica no cotidiano não sabe o quê o termo realmente significa. As lacunas no conhecimento são, então, preenchidas pelo esoterismo.
Outro ponto é que é tentador, para uma pessoa comum, transpôr essas ideias para o dia a dia. A ideia de que a consciência influencia o mundo físico é reconfortante para quem busca alcançar um objetivo (“pense positivo porque você atrairá o que você quer”) ou para quem falhou e quer se consolar (“você não conseguiu porque tem muita inveja em cima de você e isso atrai uma energia ruim”). Não ter controle sobre a vida é incômodo.
Infelizmente, os conceitos que se aplicam ao mundo dos átomos não podem simplesmente ser estendidos para a vida como a conhecemos. O mundo macroscópico em que vivemos, embora dependa de diversas tecnologias baseadas na física quântica (GPS, ressonância magnética, radioterapias), se comporta de acordo com a física clássica. Não existe “salto quântico” na vida.
Em que época os esoteristas descobriram a física quântica?
A física quântica surgiu no início do século 20 e é difícil saber quando, exatamente, os esotéricos se deram conta da sua existência. Apesar de não mencionar explicitamente a palavra “quântica”, o livro Kybalion, ou Caibalion, publicado em 1908 e assinado por um misterioso pseudônimo, diz no capítulo 9:
“O Terceiro Grande Princípio hermético – o Princípio de Vibração – compreende a verdade que o Movimento é manifestado em tudo no Universo, que nada está parado, que tudo se move, vibra e circula (…) as descobertas científicas do século 20 acrescentaram as provas de exatidão e verdade à secular doutrina hermética.”
Muitas das ideias esotéricas de hoje, como a disseminada lei da atração – a ideia pseudocientífica de que a força do pensamento é capaz de atrair saúde, prosperidade etc. –, apresentam similaridades com o Kybalion.
Mas a apropriação da física pela autoajuda demorou um pouco para se disseminar nas livrarias. Eu diria que o primeiro livro que se tornou um best seller propagando a ideia de uma relação entre a física quântica e algo esotérico foi o Tao da Física, escrito nos anos 1970 por Fritjot Capra.
Amit Goswami, que cunhou o termo “misticismo quântico”, é doutor em física.
Títulos e prêmios não impedem ninguém de falar besteira. Linus Pauling, químico, não ganhou um Prêmio Nobel, mas dois: um de química e um da paz. Mesmo assim, ele defendia a utilização de doses absurdas de vitamina C como uma maneira de prevenir o aparecimento de câncer – algo que nunca teve nenhum respaldo científico.
Por que o senhor acha que pessoas desse gabarito relativizam conceitos físicos?
É impossível saber ao certo por quê “gurus quânticos” como Goswami, Capra ou Chopra disseminam essas ideias. Mas com certeza é mais lucrativo palestrar sobre “misticismo quântico” que fazer pesquisa séria.
O uso da física quântica em filmes como Vingadores: Ultimato é positivo ou negativo para a ciência séria?
Nos estudos literários há uma expressão cunhada para definir a atitude voluntária de aceitar coisas fantásticas ou absurdas em troca de diversão: “suspensão da descrença”. Momentaneamente, nós deixamos de lado a racionalidade e nos entretemos com monstros, fantasmas e super-heróis que voam.
A maneira como um fato fantástico aparece para o espectador pode mudar e se adaptar com o tempo. Por exemplo: os poderes do Homem Aranha nos anos 1960 foram adquiridos quando ele foi picado por uma aranha radioativa – bem ao estilo Guerra Fria –, já no filme de 2002 o herói protagonista é picado por uma aranha geneticamente modificada.
Eu ainda não assisti Vingadores: Ultimato – tomei um spoiler. Acho que quem vai assistir um filme assim sabe que o que está na tela é ficção. A questão é outra: às vezes, por exemplo, alguém resolve assistir o filme porque o horóscopo do jornal recomendava ir ao cinema nesse dia. É muito estranho para mim essa coexistência de razão e crença.
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