sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Lynn Margulis: as bactérias que vivem dentro de nós

Muito antes de surgir o primeiro animal, toda a vida na Terra era microscópica e unicelular. Consistia em bactérias, essencialmente. Bactérias na água, na superfície e no subsolo, experimentando uma miríade de truques bioquímicos para sobreviver.

Foi lá que uma bacteriazinha teve uma sacada digna de Elon Musk: usar os fótons que chegavam do Sol, combinados com o gás carbônico abundante disponível na atmosfera, para produzir açúcar (isto é, comida). O nome desse processo é fotossíntese, e ele foi ridiculamente bem-sucedido. Afinal, permitia à dita cuja viver de luz, como um bom hippie.

Só tinha um problema: a tal da fotossíntese liberava pelo escapamento um gás raro na Terra daquela época – e muito tóxico. O nome dele é oxigênio. Boa parte do ferro diluído na água dos oceanos enferrujou e se precipitou no leito – dando origem às jazidas do metal que hoje são exploradas por empresas como a Vale. Vários micróbios não conseguiram lidar com a novidade e morreram sufocados, em um dos grandes eventos de extinção da história da Terra. 

Outros, porém, deram um jeito de se aproveitar do oxigênio para gerar a própria energia, usando um processo inovador chamado respiração. As primeiras bactérias que respiravam eram exceção, e não regra. Uma exceção muito eficaz. 

O melhor, porém, estava por vir. Um belo dia, uma bactéria com fome, que não sabia respirar oxigênio, engoliu uma outra bactéria, menor, do tipo que sabia respirar oxigênio. Ela teve uma indigestão e, por qualquer motivo, não conseguiu digeri-la. Milagrosamente, a bactéria engolida não só continuou respirando como começou a se multiplicar lá dentro. Se tornou uma usina de processamento de oxigênio instalada no “estômago” da bactéria maior, que fornecia muita energia. Era uma revolução tecnológica.

Essa dupla inusitada de bactérias conseguiu fazer coisas que nenhuma bactéria sozinha conseguiria. Por exemplo, dar origem a seres multicelulares como você, caro humano leitor. Hoje essas bactérias engolidas continuam dentro das nossas células, respirando para nós. Elas se chamam “mitocôndrias”. As bactérias que faziam fotossíntese também foram engolidas eventualmente, e de maneira análoga se tornaram os cloroplastos das células vegetais. 

A teoria de que as mitocôndrias são ex-bactérias engolidas se tornou consenso científico graças ao trabalho da bióloga Lynn Margulis. Não sem esforço: o artigo de 1967 em que ela apresentou a ideia foi rejeitado por 15 periódicos científicos (ela chegou a receber, por escrito: “seu trabalho é um lixo, não tente de novo”). Os 15 periódicos estão arrependidos até hoje.

No início da carreira, Lynn carregava a pecha de ter sido esposa de Carl Sagan – um lembrete desconfortável de que mulheres são mais lembradas por seus maridos que por suas realizações. Depois, se tornou uma voz independente e potente. Em parceria com o filho Dorion Sagan, escreveu numerosos livros sobre a evolução da perspectiva microscópica. Foi uma darwinista apaixonada, que criticou com precisão cirúrgica a aplicabilidade do arcabouço teórico do naturalista aos seres vivos pequenos.

Na década de 1980, os trabalhos de Lynn com as mitocôndrias e de Carl Woese com o domínio das arqueias – um tipo de bactéria até então desconhecido, que geneticamente é tão diferente das bactérias comuns quanto nós somos – inauguraram uma nova era no estudo da história da Terra.

Até a década de 1950, os paleontólogos dominavam a área, e o foco estava todo sobre os animais macroscópicos, que geravam fósseis. Dali em diante, a perspectiva da genética e da microbiologia entraram em cena, e a ideia prepotente de que o ser humano é o ápice da evolução caiu por terra de vez. O mundo é das bactérias – e nós só vivemos aqui porque elas deixam.


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