sexta-feira, 27 de março de 2020

“É mais fácil criar empregos que ressuscitar os mortos”

O Brasil está em uma encruzilhada retórica: de um lado, os governos estaduais, hospitais, centros de pesquisa, universidades públicas, órgãos de imprensa etc. são unânimes em seguir e recomendar as medidas tomadas em outros países da Europa e da Ásia – e implementar uma política severa de distanciamento social para desacelerar a disseminação da Covid-19 em território nacional. Na extremidade oposta do espectro, Jair Bolsonaro e sua cúpula defendem o chamado isolamento vertical, ou seja: que apenas quem pertence aos grupos de risco – como idosos ou pessoas com doenças crônicas – fiquem em casa. 

É evidente que a paralisação do comércio e da indústria desacelera a atividade econômica do País e pode abrir espaço para uma grave recessão. Mas a estabilidade do Brasil deve ser alcançada às custas do bem estar – ou, em alguns casos, da vida – dos brasileiros? E mais: será que manter as empresas nacionais funcionando é suficiente para sustentar nossos indicadores – ou baque que a pandemia vai gerar na economia mundial é forte demais para o Brasil ter a pretensão de se safar sozinho?

Para entender o impacto social e econômico do isolamento social – e as consequências graves de se ignorar sua necessidade imediata – a SUPER conversou com os cientistas políticos Dalson Figueiredo, Antônio Fernandes e Lucas Silva, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que estão se debruçando sobre os aspectos humanos da epidemia. Lucas, vale dizer, também é estudante de Medicina da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL). 

O que dizem as projeções mais atualizadas sobre o espalhamento da Covid-19 no Brasil? O espalhamento tende a se acelerar ou nossas medidas serão suficientes?

Diversos especialistas1 têm uma expectativa de quase 500 mil óbitos no Brasil, o que equivale a população de Florianópolis. Os cálculos dos professores José Dias do Nascimento Júnior (da UFRN) e Wladimir Lyra (da Universidade do Estado do Novo México) indicam um contágio de 53% da população e cerca de dois milhões de mortes no pior cenário previsto. O mais estranho, em nossa opinião, é a relutância do presidente Bolsonaro em enxergar estas evidências. Tecnicamente, a velocidade do espalhamento da COVID-19 segue o que os estatísticos chamam de distribuição exponencial. Ou seja: 1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128… A curva sobre rápido repentinamente. 

Na ausência de medidas agressivas de isolamento social, vamos caminhar para uma tragédia. Não adianta falar em mitigação agora. Ainda não sabemos a prevalência da doença na população. A única opção segura é o isolamento social. O Reino Unido cogitou um caminho alternativo, mas rapidamente retrocedeu. O presidente Trump, que passou muito tempo minimizando o tamanho do problema, acaba de baixar um decreto obrigando as fábricas a produzir ventiladores. Está remediando um erro que, só hoje, vai custar a vida de mais de 300 americanos. Devemos adotar as seguintes medidas: 1. isolamento social; 2. testagem em massa; 3. produção e distribuição rápida de materiais e equipamentos de saúde.

1. Fergunson et al. (2020) avaliam o impacto de intervenções não-farmacêuticas sobre a expectativa de mortalidade nos Estados Unidos e no Reino Unido. Em particular, o biólogo Átila Iamarino fez uma projeção de 1 milhão de mortes no Brasil. Dowd e colaboradores (2020) examinam a relação entre a estrutura etária da população e os níveis de mortalidade.

Quais os impactos socioeconômicos de deixar a doença se espalhar livremente? Atrasar a implantação da quarentena só pioraria o cenário, como foi na Itália?

 

Já ouviu a história do cobertor curto? Se cobrir a cabeça, passa frio nos pés. Se cobrir as pernas, passa frio na cabeça. É o que os economistas chamam de trade-off. É claro que o isolamento social é um banho de água fria. Enquanto antes se esperava um crescimento acima de 2% para 2020, agora temos uma recessão pela frente. Se a economia não anda, há desemprego, crime, suicídios, recessão, falências, endividamento, calotes, etc.

O problema é que não há outra solução, pelo menos no curto prazo. O Governo Federal parece um monstro com duas cabeças. O Ministério da Saúde não pode orientar uma coisa e o chefe do Executivo dizer exatamente o contrário. Essa inconsistência informacional vai sair caro – em dinheiro e em vidas. A Coreia do Sul, um dos casos de sucesso até o momento, investiu em campanhas massivas para não deixar a população em dúvida.

A China demorou 24 dias entre o primeiro registro oficial de COVID-19, no dia 31 de dezembro de 2019, e o isolamento agressivo de Wuhan. Na Itália, o primeiro registro foi realizado em 31 de janeiro, um mês depois. mas o isolamento agressivo só foi adotado 39 dias depois. A diferença de duas semanas parece pequena. Mas, como estamos diante de um fenômeno exponencial, pequenos detalhes têm consequências catastróficas.

De acordo com nossas estimativas, a Itália deve ultrapassar a marca de 100 mil pessoas infectadas antes da China mesmo tendo uma população 20 vezes menor.  Atualmente, a Itália contabiliza mais do dobro de mortes em relação à China. Foram 8.215 vidas italianas contra 3.292 óbitos chineses, o que dá cerca de 350 mortes evitáveis por dia durante duas semanas. Esse é o preço que a população paga quando o governo hesita. Basta um único caso infectado para iniciar a distribuição exponencial. Para derrubá-la, a única saída técnica é o isolamento social. 

Ainda não sabemos detalhes sobre a maneira como vírus atua no corpo, nem há meios de tratá-lo. Quebrar a quarentena, além de moralmente errado, também é um erro do ponto de vista técnico, pois dificultaria – e muito – o controle da doença. Não dá para combater direito um inimigo que não conhecemos. 

O governo brasileiro adotou algumas medidas visando estimular a economia no curto-prazo e algumas decisões para reduzir o desemprego e salvar áreas econômicas afetadas mais diretamente pela pandemia. Mas essas medidas ainda não estão funcionando. Apesar de Bolsonaro querer imitar Trump em muita coisa, os EUA aprovaram um pacote de proteção social e estímulo econômico que chega US$ 2 trilhões, mais da metade do PIB brasileiro.

O Brasil, até agora, anunciou um valor de R$ 600,00 de auxílio aos trabalhadores informais, antecipou o 13º salário de aposentados do INSS e liberou aproximadamente R$ 90 bilhões para Estados e Municípios, entre outras medidas. Isso não dá 2% do PIB. Em resumo: o Brasil não adotou até o momento medidas econômicas suficientes para reduzir consideravelmente o impacto econômico e social da pandemia. No momento, o crucial é manutenção do isolamento e a criação de uma rede de proteção social adequada para a parcela vulnerável da população.

O Brasil é um país extenso. Como isso altera o cenário de espalhamento da doença em comparação aos países europeus, que são pequenos e densos?

Densidade é algo relativo: há metrópoles brasileiras mais densas que as europeias, bem como grandes áreas praticamente vazias. Há mais de um Brasil, as características demográficas são muito heterogêneas. O risco é maior regiões que concentram um grande número de pessoas e apresentam condições de saúde e infraestrutura precárias, como as comunidades espalhadas nas grandes metrópoles. A velocidade com que o vírus pode se espalhar nesses locais é bem mais alta. Então , é preciso olhar não só para a densidade populacional, mas também para as medidas que estão sendo adotadas para evitar o contágio, a situação sanitária e habitacional daquele espaço etc.

A Câmara dos Deputados aprovou ontem a Renda Básica Emergencial para desempregados, autônomos e MEIs. Qual é a opinião de vocês sobre a medida? 

 

A criação da Renda Básica Emergencial ainda não é suficiente, porém é importante. Além de dar dinheiro para o principal setor econômico atingido pela pandemia, também sinaliza à população que o Estado não está inerte. Hoje, o Governo também anunciou a criação de uma linha de crédito emergencial para pequenas e médias empresas. Será oferecido um montante de 40 bilhões de reais, em dois meses, para que as empresas quitem suas folhas de pagamento durante a pandemia. 

Em outros países, medidas econômicas mais agressivas estão sendo adotadas. O estímulo à economia de todos os países, somado, chega a US$ 7 trilhões. Nos EUA, o pacote é de US$ 2 trilhões; O Reino Unido vai cobrir até 80% dos salários dos trabalhadores pelo menos nos próximos três meses, e pagar até 80% dos rendimentos dos trabalhadores autônomos, dentre outras medidas. A Alemanha anunciou um pacote de 750 bilhões, e a China ficou um pouco atrás, com US$ 300 bilhões em estímulos. Comparativamente, o que o Brasil apresentou, até agora, é pouco.

Como os países que já foram afetados pelo coronavírus estão lidando com a crise econômica que vem pela frente, e o que o Brasil pode aprender com eles?

 

Não precisa ser economista para saber que é mais fácil criar empregos do que ressuscitar os mortos. O prefeito de Milão pediu desculpas. Desculpe-nos, prefeito por não aceitá-las. Afinal, desde o início os cientistas avisaram que a única opção segura era manter o isolamento social. Quase todos países estão adotando medidas mais rígidas de isolamento social para evitar uma sobrecarga (na maioria das vezes, inevitável) do sistema de saúde, e medidas fiscais para assistir os mais vulneráveis e evitar um colapso econômico.

O que o Brasil não pode fazer é ir na contramão do mundo. A Coreia do Sul, linha azul, é um dos cases de sucesso até o momento. As estimativas mais recentes indicam 9.322 casos confirmados e 139 óbitos. Por outro lado, o Reino Unido, que por algum tempo flertou com a possibilidade de medidas mais suaves de controle, contabiliza 15 mil diagnósticos e quase 800 óbitos. Anote aí: até o final do dia 28 de março, a rainha vai enterrar mais de mil britânicos. Agora devemos decidir qual dos dois caminhos o Brasil vai seguir.


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