sexta-feira, 20 de março de 2020

Vagas nos hospitais: o calcanhar de Aquiles no combate à Covid-19

O novo coronavírus, o velho influenza da gripe espanhola e uma anciã, a bactéria da peste bubônica, estão conversando num bar. O vírus daquela gripe que matou 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1919 toma uísque e fuma charuto. A Yersinia pestis, que eliminou pelo menos um terço da população europeia no século 14, bebe um cálice de sangue. O jovem corona se contenta com uma cerveja. E toma a palavra:

“Pessoal, meu ponto não é matar pessoas só por matar. Mas conscientizar a sociedade sobre o acesso à saúde pública”.

“Ah, esses millennials…”, suspira a bactéria da peste.

Essa é uma piada que está rodando pelo Whats, em forma de cartum. Aqui:

Enquanto isso, no The Rat and Bat…reprodução/Superinteressante

E ela traz um fundo de verdade. Na época da gripe espanhola, o conceito de saúde ainda engatinhava. Na da peste bubônica, a humanidade ainda era refém do xamanismo. Agora é diferente.

Boa parte do planeta conta com sistemas de saúde funcionais. Prova disso é que, em 1950, a média de expectativa de vida no mundo era de 45 anos; em 2020, 72 anos – 75 no Brasil, 79 nos EUA, 83 na Coreia do Sul. A expectativa de vida de um país, vale lembrar, é um reflexo de dois aspectos do sistema de saúde local: a qualidade dos hospitais e o acesso que a população tem a eles.

Na Coreia do Sul, a qualidade é alta, e o acesso, universal. Os EUA abrigam os melhores hospitais do mundo, mas o acesso é censitário: quem não tem grana está fora. O Brasil, sabemos todos, está longe de ser um centro de excelência, mas desde a criação do SUS, em 1990, toda a população tem direito a saúde gratuita, incluindo remédios caros lá fora, como os antivirais para portadores do HIV.

A VANTAGEM DO SUS

A sigla do Sistema Único de Saúde causa alergias, é verdade – o que vem à mente, afinal, são as filas, os corredores lotados de macas, a falta de esparadrapo, os seis meses de espera por uma consulta com um especialista.

Por outro lado, hoje é impossível imaginar como era antes. Até o final da década de 1980, só os trabalhadores com carteira assinada tinham direito a assistência médica gratuita, pelo finado INPS. Quem fosse autônomo e não tivesse plano de saúde era considerado “indigente”.

A mera existência do SUS, portanto, já é uma vitória. Ainda mais se você levar em conta o quão raro isso é em países populosos. O Brasil é o único com mais de 200 milhões de habitantes a ter um sistema de saúde universal e gratuito. Nos EUA, que têm um PIB per capita sete vezes maior que o nosso, há 28 milhões de indigentes, que não têm assistência nenhuma, nem pública, nem privada.

Lá, existem dois sistemas públicos: o Medicare, que atende idosos sem cobrar, e o Medicaid, para quem vive perto ou abaixo da “linha de pobreza”. Para os padrões brasileiros, a linha de pobreza oficial dos EUA é um luxo. Ela varia de Estado para Estado, mas, na média, dá o equivalente a R$ 10 mil por mês de renda para um lar com quatro pessoas. Vale lembrar que a renda familiar média nos EUA é de R$ 24 mil mensais (cinco vezes a daqui), e que o dólar alto de 2020 acaba inflando os valores americanos na nossa moeda.

Seja como for, o Medicaid cobre as despesas médicas e hospitalares de quem está até 33% acima dessa linha de pobreza, o que dá 72 milhões de indivíduos.

Não é pouco, lógico. Dá quase um em cada quatro americanos. Mesmo assim, 8,5% da população de lá se situa num grupo peculiar: não se enquadra no Medicaid nem tem dinheiro para bancar um plano de saúde.

A SAÚDE NOS EUA

Em 2007, Michael Moore lançou o documentário Sicko, que mostrava os perrengues desse extrato social. Ali ele apresenta um certo Rick, um sujeito que teve a ponta do dedo médio e do anular decepados numa serra elétrica caseira.

Rick não tinha plano de saúde. Chegou a um hospital levando as pontas de seus dedos numa sacolinha. Os médicos avisaram: colocar o dedo médio de volta custaria US$ 60 mil. O anular, US$ 12 mil. Sem ter como pagar pelos dois, Rick dispensou o reimplante da ponta do dedo médio, que foi parar no lixo. Essa situação pode complicar a lida com o coronavírus por lá. Em meados de março, a taxa de mortalidade entre os infectados no Estado de Washington, que abriga Seattle, a cidade onde o vírus chegou primeiro, estava em 6,5%. Maior do que no Irã (5%), e equivalente à da Itália (8%).

A Itália é um capítulo à parte. O país tem seus SUS, o Servizio Sanitario Nazionale, e a qualidade é relativamente alta. O problema ali foi a rapidez com que o corona se espalhou – talvez por falta de precauções adequadas nos estágios iniciais. A Itália, afinal, foi o primeiro grande foco da doença no Ocidente, e acabou pega despreparada. Seu sistema de saúde não deu conta de oferecer tratamento adequado.

Sim, não existe remédio contra a Covid-19, mas você pode manter vivo um paciente com os pulmões já em estado grave, com o uso de respirador mecânico, por exemplo, e ganhar o tempo necessário para que o sistema imunológico dele se livre do vírus. Cada minuto a mais conta. E a Itália simplesmente não tinha aparelhos para todo mundo que precisava deles.

Na Alemanha, onde a curva de casos cresceu mais devagar, o índice de letalidade estava bem menor na mesma época: 1%, contra os 8% da Itália. Outro fator que ajudou os germânicos, diga-se, foi o número de leitos de hospital disponíveis. Eles têm 8 para cada mil habitantes. Na Itália, são 3,2. Nos EUA, 2,8.

A Coreia do Sul também mantém sua taxa de mortalidade por coronavírus abaixo de 1% em boa parte graças aos seus 12,3 leitos para cada mil habitantes. O Brasil? Vem bem atrás. Temos só 1,9 leito para cada mil pessoas – pouco mais do que o Irã (1,5).

Ou seja: sem uma ação rápida do poder público para a abertura de mais vagas hospitalares, estaremos diante de uma tragédia. O coronavírus, tal qual a piada lá do início, deve revelar a verdadeira face do nosso sistema de saúde. E, apesar dos méritos do SUS, ela é aterradora.


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