segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Terapia na televisão

Um divã, um terapeuta e um paciente. Era tudo de que o roteirista israelense Hagai Levi precisava para criar uma série de TV, BeTipul (Em Terapia), em 2005. Escrita em parceria com Ori Sivan e Nir Bergman, a história gira em torno de um psicólogo que, de segunda a quinta, atende seus pacientes e, às sextas, é atendido por sua terapeuta. Em pouco tempo, a produção caiu nas graças do público e foi adaptada para mais de 30 países, como Itália, Portugal e Argentina. Só nos EUA, In Treatment, estrelada por Gabriel Byrne, ganhou dois Emmys, o Oscar da TV, e um Globo de Ouro.

No Brasil, Sessão de Terapia estreou em 2012 e ganhou três temporadas. Em 2014, entrou em recesso e, cinco anos depois, volta a ser exibida, com novo protagonista. Selton Mello, também diretor, assumiu o lugar de Zé Carlos Machado. A série vai ao ar pelo Globoplay.

Diante da impossibilidade de Zé Carlos voltar a interpretar Theo Ceccato, o protagonista das três primeiras temporadas, Selton Mello saiu à procura de um novo ator. Rodrigo Santoro, Wagner Moura e Alexandre Nero elogiaram o personagem, mas, por falta de tempo, declinaram do convite. Coube ao próprio Selton assumir o papel do terapeuta Caio Barone.

“Sua atuação é muito intensa”, elogia a psicanalista Cristiane Rangel, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). “Por apresentar o terapeuta num momento difícil de sua vida, mostra quanto esse ofício exige de quem o pratica. Não cabe ao analista dar conselhos, tomar resoluções pelo paciente ou contar detalhes de sua vida. O terapeuta é alguém que escuta o paciente sem tecer julgamentos ou condenações”, analisa.

Em menos de um mês, a quarta temporada de Sessão de Terapia tornou-se uma das mais assistidas do Globoplay. Logo, teve sua quinta temporada confirmada para 2020 ou 2021. Mas qual a razão desse êxito todo? O psicanalista Ricardo Goldenberg, consultor da série e doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), arrisca um palpite: “Os protagonistas não são bem os analistas, são os pacientes. Questões comuns de gente comum, com quem alguém pode se identificar. Talvez estejamos cansados dos heróis e isso explique o sucesso”.

Dramaturgia & psicanálise

Todo início de temporada, a roteirista Jaqueline Vargas segue o mesmo ritual: seleciona de oito a dez perfis de personagens e os submete à avaliação do diretor, Selton Mello, e do produtor-executivo, Roberto D’Ávila. Juntos, os três escolhem, dos oito ou dez perfis, os quatro que melhor se adaptam à dinâmica da série.

“Como autora, parto do princípio de que todo perfil é bom e todo conflito, válido. Mas, como Sessão de Terapia é uma obra de ficção, o personagem tem que estar a serviço do entretenimento”, explica. Já aconteceu de certo personagem ser tão complexo que a roteirista não conseguiu desenvolvê-lo em sete episódios.

O que se faz numa hora dessas? “Coloco o personagem de lado”, responde. Definidos os perfis, Jaqueline cria os personagens, desenvolve suas tramas e monta as escaletas. Volta e meia, tira dúvidas com Goldenberg. “Dependendo do que ele disser, mudo a história de um personagem. Ele tem plena liberdade para dar pitacos”, diz.

Jaqueline não trabalha sozinha. Ela coordena uma equipe de cinco roteiristas: Emilio Boechat, Ricardo Inhan, Marília Toledo, Luh Maza e Ana Savassi. São eles que, ao longo de 35 episódios, de 25 minutos cada, ajudam a contar as histórias de Chiara Ferraz, uma comediante com 20 milhões de seguidores nas redes sociais que não aceita o diagnóstico de depressão; Guilhermina Nowak, uma adolescente que, filha de um casal interracial, sofre bullying no colégio; Nando Batista, um executivo que perde o interesse sexual na mulher depois que ela faz sucesso como escritora; e Haidée Ortiz, uma aposentada que, viúva e mãe de dois filhos, não vê mais sentido na vida e pede ajuda do terapeuta para morrer.

“Já recebemos muitas mensagens de telespectadores. A maioria diz que se identificou com um ou outro episódio e, por esse motivo, começou a fazer terapia. Saber que a série ajuda o público a levar uma vida melhor dá uma aquecida na alma”, afirma a roteirista.

“A maior das patologias é a normalidade”

Sessão de Terapia não é a única série brasileira a “ajudar o público a levar uma vida melhor”. Outro bom exemplo disso é Psi, criada pelo escritor e psicanalista Contardo Calligaris e exibida pelo canal HBO. Desde 2014, quando estreou, já teve quatro temporadas e chegou a ser indicada ao Emmy. O protagonista da série, o psicanalista Carlo Antonini, interpretado pelo ator Emílio de Mello, foi extraído de dois romances de Calligaris: O Conto do Amor (2008) e A Mulher de Vermelho e Branco (2011).

Diferentemente de Sessão de Terapia, todos os casos retratados em Psi são reais – a maioria deles da clínica de Callegaris, em São Paulo. “O preconceito que me interessa ‘superar’, mais que ‘terapia é coisa de maluco’, é aquele que afasta de nós os ‘malucos’. Talvez a doença mental mais irremediável seja a normalidade. Por sorte, ela é muito rara”, afirma o psicanalista e escritor.

Mas, afinal, a quem se destina a psicanálise? São muitas as respostas. A psicanalista Cristiane Rangel cita três situações: não conseguir romper um relacionamento abusivo, estar insatisfeito com o trabalho e boicotar-se rotineiramente. “Em geral, ela é bem-vinda diante do reconhecimento de estar sofrendo além da conta ou de ter uma vida aquém de suas possibilidades”, resume.

O caminho trilhado por paciente e terapeuta, porém, nunca é fácil. Ou rápido. Ou indolor. “Terapia dói”, diz a personagem Chiara Ferraz, da atriz Fabiula Nascimento.

E Cristiane concorda. “É natural que se tente aliviar o sofrimento emocional com caminhos mais curtos, como livros de autoajuda ou técnicas de pensamento positivo. Tais recursos até trazem alívio, mas não geram mudanças”, avisa a psicanalista. “A crítica é sempre em relação ao tempo que uma psicoterapia leva para fazer efeito. Não podemos esquecer que precisamos de tempo para realizar vínculos de confiança e promover mudanças em nossas vidas”. Até porque a vida real nem sempre tem o ritmo de uma história na TV.


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