Foi-se o tempo em que as doenças do coração eram vistas como um problema predominantemente masculino. Os números de infarto, insuficiência cardíaca e outras mazelas demonstram que os perigos ao peito são bem democráticos do ponto de vista do gênero. Mas essa conscientização, que envolve a população e os próprios profissionais de saúde, precisa continuar com força. Inclusive porque os males cardiovasculares têm aparecido (e preocupado) ainda mais cedo nas mulheres.
Esse é um dos diagnósticos da médica americana Athena Poppas, vice-presidente do respeitado Colégio Americano de Cardiologia (ACC, na sigla em inglês). A especialista, que dá aulas e chefia a divisão de cardiologia na Escola Médica Warren Alpert da Universidade Brown, participou recentemente de um simpósio da ACC com a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) focado no papel das mulheres na cardiologia.
Nesta conversa com VEJA SAÚDE, a médica fala sobre o que é preciso priorizar nos cuidados com o coração da população feminina e as barreiras que as mulheres vêm vencendo no exercício da medicina.
VEJA SAÚDE: Nos últimos anos, temos visto um movimento de conscientização sobre as doenças cardiovasculares nas mulheres. A senhora acredita que já estamos colhendo resultados positivos?
Athena Poppas: As doenças cardiovasculares continuam sendo a primeira causa de morte de mulheres no mundo, e, embora tenhamos feito progressos na conscientização entre pacientes e médicos, ainda há trabalho a ser feito. Temos visto queda nas taxas de doenças cardíacas em alguns grupos, mas os índices em mulheres mais jovens, em particular, têm permanecido os mesmos e, possivelmente, até aumentaram. As razões são muitas, incluindo a falta de conscientização e orientação sobre esses problemas, questões socioeconômicas e aumento de fatores de risco como tabagismo, obesidade e diabetes.
As doenças do coração em mulheres podem apresentar diferentes manifestações e sintomas, como mais infartos do miocárdio sem lesões coronarianas obstrutivas [entupimentos das artérias que alimentam o coração] e mais quadros de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada [o músculo cardíaco fica fragilizado mas ainda tem força para bombear o sangue para o corpo]. Além disso, as mulheres têm certas ocorrências de saúde ao longo da vida que podem interferir no risco cardiovascular, caso de alterações hormonais e gravidez.
Contudo, exceto nessas situações pontuais, as mulheres continuam sub-representadas em pesquisas e ensaios clínicos, e isso causa uma lacuna de conhecimento sobre o impacto das doenças cardíacas nesse público, quais os medicamentos são mais recomendados, em quais doses etc. A boa notícia é que o mundo começa a reconhecer isso e a priorizar a saúde feminina.
No Brasil, apesar dos avanços, nós ainda ouvimos que a medicina tem um lado sexista. Como avalia a evolução do papel da mulher na cardiologia e como isso reflete no cuidado à saúde da população feminina?
Historicamente, a cardiologia tem uma porcentagem baixa de mulheres que escolheram ou foram aceitas na especialidade. O Colégio Americano de Cardiologia reconhece esse problema e como a falta de mulheres na área interfere negativamente nos cuidados com a saúde cardiovascular nas próximas décadas. Não apenas existem pessoas que ficam mais confortáveis com um médico do mesmo gênero, mas esse fator pode impactar diretamente em como alcançamos as mulheres, nos conectamos a elas e construímos uma confiança crucial para uma tomada de decisão compartilhada.
A diversidade na medicina é crítica para pacientes e para nossa profissão, tanto que o ACC estabeleceu seu primeiro grupo de trabalho para diversidade e inclusão e um plano estratégico para abordar especificamente o baixo número de mulheres e outros grupos pouco representados na cardiologia. Mas já estamos avançando nesse caminho de uma especialidade que precisa ser mais inclusiva, diversificada e acolhedora.
Considerando a ciência por trás da cardiologia, quais estudos ou descobertas mais impactaram a saúde das mulheres na última década?
Recentemente, vimos fortes evidências de que a história ginecológica e obstétrica de uma mulher pode ser indicador de riscos cardiovasculares futuros. Isso é importante porque apresenta uma janela de oportunidades durante os anos reprodutivos da mulher para identificar seus riscos e direcionar estratégias de prevenção e intervenções precoces. Para tanto, precisamos ter uma abordagem multidisciplinar que inclua atenção primária, obstetrícia e cardiologia com o objetivo de alcançar as mulheres e implementar essas ações preventivas.
Quais são os fatores de risco mais desafiadores para as mulheres hoje?
É importante que as mulheres tenham conhecimento sobre seus riscos individuais e os recursos para alterá-los. Elas precisam saber como estão a pressão arterial, o colesterol e as taxas de glicose. As mulheres têm de saber qual seu peso ideal, o que significa ter uma dieta saudável para o coração e como incorporar 150 minutos de exercícios físicos semanais. Além disso, fumar é a principal causa de ataques cardíacos que acontecem antes da menopausa. É preciso levar essa mensagem a adolescentes e mulheres jovens e lembrar que vaporizar [vaping, em inglês] também não é legal e seguro.
Considerando a prevenção das doenças cardiovasculares em mulheres, qual deve ser o foco das autoridades de saúde?
Reduzir a mortalidade por doenças do coração e fechar a lacuna de conhecimento de como diagnosticar e tratar as mulheres são as prioridades científicas e de saúde pública hoje. Doenças cardiovasculares são, em muitos casos, preveníveis, mas nós precisamos falar com as pessoas sobre a importância da dieta e dos exercícios para elas e seus familiares.
O ACC investiu recursos no CardioSmart.org [site em inglês], iniciativa que oferece informações sobre doenças do coração de forma simples aos pacientes. Eles precisam de uma fonte confiável de evidências e orientações. As pessoas podem recorrer ao site diretamente antes das consultas para obter dicas do que perguntar ao médico e aprender sobre formas de prevenção. Os médicos também podem fazer uso dos conteúdos e infográficos disponíveis no site e orientar seus pacientes a respeito das doenças cardiovasculares.
Precisamos cuidar (ainda mais) do coração das mulheres Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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