terça-feira, 28 de maio de 2019

Museu virtual quer recriar época em que futebol feminino era proibido no Brasil

A Copa do Mundo de Futebol Feminino 2019, que acontece na França a partir do dia 7 de junho, tem tudo para ser a edição com maior audiência da história – pelo menos, a nível nacional. Apesar de existir desde 1991, é a primeira vez que um mundial da categoria será transmitido pela TV Globo, principal rede de televisão pública do Brasil.

Para os brasileiros, a competição ficará marcada por despedidas importantes. É provável, por exemplo, que a Copa da França seja a última em que a seleção contará com Marta (eleita seis vezes melhor do mundo) atuando em alto nível. Certamente será, também, a última participação de Formiga, atleta que mais disputou mundiais de futebol entre homens e mulheres – com sete Copas no currículo.

Para que talentos mundiais como os das veteranas brasileiras despontassem, porém, o país precisou superar a barreira do preconceito. No Brasil, as mulheres foram literalmente proibidas de jogar futebol profissional por 40 anos.

Era lei federal: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”, dizia o artigo 54 do decreto-lei 3.199, que começou a valer em 14 de abril de 1941. Ele serviu para proibir, oficialmente, que mulheres jogassem bola por aqui – já que entidades esportivas não podiam manter times femininos de futebol.

Mas, claro, lei nenhuma tirou a bola do pé das mulheres pra valer. Durante esse período, o futebol feminino brasileiro existiu, sim. E é a história dessas pioneiras que o recém lançado “Museu do Impedimento” quer resgatar.

A ideia envolve uma parceria entre a plataforma Google Arts & Culture com o Museu do Futebol, que fica no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. O acervo será criado a partir do material histórico enviado pelo público. Vale tudo: vídeos, fotos, documentos ou mesmo relatos sobre esse período. Uma equipe do Museu do Futebol fará uma análise do material e, após aprovação, ele se tornará parte do acervo do museu virtual.

No site oficial do Museu do Impedimento, já é possível ler depoimentos compartilhados por mulheres históricas como a brasileira Lea Campos, primeira árbitra do mundo, que foi presa 15 vezes durante os anos de proibição.

A plataforma recolherá outras histórias até o dia 23 de junho.

Brasileiras nas arquibancadas e nos campos

O resgate da história do futebol feminino nacional é uma tentativa de trazer luz para algo que, querendo ou não, sempre foi coisa de mulher.

E essa história começou nas arquibancadas. A versão oficial do termo “torcedor”, canônico no futebol brasileiro, nasceu para denominar mulheres que iam aos estádios vestidas em trajes de gala, no início do século 20, para assistir aos familiares (homens) jogando.

As vestimentas à moda europeia nada condiziam com o calor brasileiro, o que, de acordo com a história, fazia as mulheres tirarem as luvas durante os jogos. E o acessório acabava sendo útil: no calor (literalmente) da emoção, demonstrando a angústia e a ansiedade típicas de quem vê seu time do coração ao vivo, elas torciam as luvas durante a partida.

Para que o termo banal virasse verbete de dicionário, porém, foi preciso o dedo de um poeta. Quem primeiro teria usado o termo torcedoras para denominar as fãs aflitas que assistiam aos jogos foi o cronista Coelho Neto, um aficionado por futebol — e pelo Fluminense, time do qual assina a letra do primeiro hino. O termo pegou, e, em 1906, o jornal O Estado de S. Paulo já falava nelas — usando “torcedoras” entre aspas, para demonstrar a excepcionalidade do termo.

Já o registro oficial de partidas em que mulheres participaram jogando data de 1913. Segundo estudos, foi um jogo misto em um evento para a construção de um hospital da Cruz Vermelha, voltado às crianças pobres e inaugurado em 1917.

Cada vez mais mulheres participavam de jogos beneficentes, e, aos poucos, foram surgindo times formados só por elas. Em 1940, o interesse pelo futebol feminino aflorou no país, com o surgimento de equipes espalhadas por diferentes estados. Um amistoso entre cariocas e paulistas chegou a ser disputado no recém-inaugurado Pacaembu – o que causou burburinho entre em parte da imprensa, que condenava a iniciativa. Em 1941, durante a ditadura de Getúlio Vargas venceu, o crescimento é freado pelo primeiro decreto de proibição oficial.

Não que as mulheres tenham deixado a bola de lado, claro – como quer provar o Museu do Impedimento. Uma das histórias que comprova isso data de 1965. Em um domingo deste ano, um grupo de moças da Vila Pan-Americana, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, resolveu organizar um jogo informal só para mulheres. A iniciativa foi um sucesso, e, semanas depois, nasceu o Canarinhos FC, o primeiro time feminino a excursionar pelo Brasil.

Mas a projeção do clube durou pouco tempo: sob a ditadura militar, a proibição de 1941 foi estendida. A Deliberação nº. 7 de 1965 dizia: “Não é permitida a prática feminina de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo, halterofilismo e beisebol”.

Em 1979, durante os últimos anos de ditadura, a deliberação acabou revogada. A abertura ao futebol feminino profissional permitiu que as primeiras ligas de mulheres fossem legalmente criadas.

A seleção brasileira esteve entre os países que disputaram a primeira Copa do Mundo feminina, em 1991, – e marcou presença também nas últimas seis edições. O melhor resultado foi o vice-campeonato na Copa de 2007, vencida pela Alemanha. Em 2019, Marta e companhia têm, mais uma vez, chance de fazer história.


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