O legado póstumo de Michael Jackson prova que há vida após a morte – ao menos no mundo pop. Desde junho de 2009, quando faleceu por overdose de remédios para insônia, o astro não sai dos holofotes: lançou dois álbuns inéditos (Michael, em 2010, e Xscape, de 2014), uma autobiografia, um single em parceria com Justin Timberlake e se tornou o único artista a marcar presença no top 10 da Billboard em cinco décadas diferentes.
Toda essa atividade gerou à família de Michael US$ 2.1 bilhões em receitas, segundo a Forbes. Nada menos que a mesma quantia que o rei do pop ganhou em vida – só que em menos de uma década.
A morte fez bem às finanças dos Jackson. Antes de partir, o astro tinha problemas em pagar funcionários e acumulava dívidas que beiravam os US$ 500 milhões. Mas seu falecimento precoce também ajudou o artista a sair da vida e entrar na história com a imagem em alta. Caso ainda estivesse vivo, é provável que a figura de Michael não permanecesse sã e salva na memória dos fãs.
A causa de sua morte ajuda a lembrar que, caso não tivesse partido, ele teria que resolver com urgência um problema sério: a falta de descanso. As infusões noturnas de propofol, um anestésico cirúrgico, eram a única maneira de fazer o músico pregar o olho e atingir a fase REM do sono, que é quando de fato descansamos.
O estado precário de saúde refletia o esforço em salvar uma carreira em declínio. Para recuperar sua imagem, MJ preparava um retorno triunfal. A turnê This is It, cujos gastos de pré-produção superaram os US$ 25 milhões, pretendia recriar a grandiosidade das produções das décadas de 1980 e 1990 com uma maratona de 50 shows em Londres.
O problema é que as apresentações dificilmente correriam como planejado. Durante seus últimos dias, Michael foi descrito por pessoas próximas como “paranoico” e “emocionalmente frágil” – além de ter, supostamente, começado a ouvir vozes e falar sozinho. Segundo e-mails trocados entre produtores da turnê e coreógrafos, ele não conseguia se lembrar de movimentos de dança e trechos de canções que repetiu décadas a fio. “Olhando para sua situação, eu pensava: ‘Ele não vai conseguir’”, disse à CNN Karen Faye, maquiadora da turnê, em 2013. “As apresentações eram muito próximas umas das outras. Acho que ele duraria no máximo uma semana.”
Jackson faleceu 18 dias antes do primeiro show. Não fosse isso, sua tentativa de dar a volta por cima provavelmente acabaria abreviada – o que poderia motivá-lo a deixar os palcos de vez para investir em cargos de bastidores.
A indústria do cinema seria o destino mais provável. Segundo fontes próximas, como seu filho Prince, ele tinha planos de investir em uma carreira paralela como diretor. Entre os temas que gostaria de filmar, estavam produções sobre o faraó Tutancâmon e gângsters em Chicago. Mas justamente nessa indústria é que nasceu o movimento #MeToo, uma coleção poderosa de denúncias de assédio sexual que derrubou figurões antes intocáveis em Hollywood. Seria improvável que o capítulo mais obscuro da história do rei do pop passasse batido pela onda.
Michael era visto em público com frequência segurando a mão de garotos pequenos e chegou a admitir que tinha o hábito de dividir a cama com crianças. Ele venceu, em vida, duas batalhas judiciais envolvendo acusações de abuso sexual infantil. A primeira foi resolvida de forma extrajudicial em 1994. O acordo envolvia uma indenização de US$ 23 milhões paga aos pais da vítima, um garoto de 13 anos. Em 2003, outro menino, com a mesma idade, declarou ter sido molestado pelo cantor. O rei do pop seria absolvido dois anos depois.
Mas acusações menos emblemáticas que as de Michael Jackson – algumas que sequer chegaram à Justiça – foram suficientes para derrubar carreiras de maneira irrecuperável. Depois de ter sido acusado de assediar atores menores de idade no passado, o ator americano Kevin Spacey foi retirado da série House of Cards de maneira imediata, e substituído no filme Todo o Dinheiro do Mundo. Ao menos 200 homens influentes – segundo levantou o New York Times em outubro de 2018 – perderam seus cargos por problemas do tipo nos EUA. Michael Jackson dificilmente ficaria de fora das punições da indústria.
Para fugir da pressão do público, talvez testemunhássemos um replay do exílio de 2005, quando o rei do pop passou um ano vivendo no Bahrein e na Irlanda com os filhos, após novos escândalos de abuso sexual infantil estourarem.
Adeus, Neverland
“Michael Jackson foi uma das pessoas mais bondosas e amorosas que já conheci. Ele me ajudou demais na minha carreira e em minha criatividade. E também abusou sexualmente de mim por sete anos”, diz o coreógrafo australiano Wade Robson, de 36 anos. Essa é uma das frases mais impactantes do documentário Deixando Neverland, produzido pela HBO, que estreou em março de 2019. O filme defende uma tese clara: Jackson era um pedófilo em série, e há, no mínimo, dois rapazes no mundo que não tiveram coragem de denunciá-lo enquanto ele era vivo: Wade e o americano James Safechuck, 41, que sofreu abusos dos 10 aos 14 anos.
O documentário, recheado de depoimentos dos familiares das vítimas, teve uma repercussão considerável. Autores de biografias sobre o cantor decidiram revisá-las. Rádios da Austrália, Nova Zelândia e Canadá baniram Michael Jackson de sua programação e o rapper Drake optou por excluir do repertório uma música que contava com vocais de Michael. Uma estátua do astro foi removida de um museu britânico, e a Louis Vuitton retirou de circulação peças de uma coleção inspirada em MJ, que chegou às lojas em 2019.
É provável, porém, que o documentário não tivesse o mesmo teor com o rei do pop vivo. “Seria mais difícil de filmar. Até hoje, muita gente tem medo de Jackson e seus advogados. Enquanto eu entrevistava pessoas que tinham relação com as investigações, elas demonstravam temer a capacidade que Jackson tinha de silenciar várias de suas vítimas”, disse Dan Reed, que dirigiu o documentário, em entrevista à Vice.
Negar acusações que poderiam manchar a trajetória de Jackson, no entanto, parece mais fácil quando o que ficou na memória do público são seus anos dourados. A erosão desse apoio talvez viesse justamente da presença de MJ, vivo, como figura excêntrica em decadência, acumulando polêmicas. Michael Jackson é provavelmente grande demais para ter seu legado varrido da história. Mas isso não impediria seus patrocinadores – e boa parte do seu público – de abandonar para sempre a Terra do Nunca.
E se Michael Jackson não tivesse morrido? Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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