quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Hipocondríaco, eu? Quando a preocupação em estar doente passa dos limites

A hipocondria é daquelas condições que, nem sempre bem compreendidas, acabam virando motivo de piada.

A graça pode estar no sujeito que vê qualquer sintoma como algo catastrófico, no paciente que vive contestando diagnósticos e pedindo exames ao médico, no indivíduo que clama por um medicamento para ficar bem, ainda que não saiba exatamente do quê.

Inconvenientes, autorreferentes, monotemáticos, os personagens hipocondríacos — e os seres de carne e osso que eles estereotipam — são vistos menos como pessoas afetadas por um transtorno mental e mais como um transtorno em si, esgotando a paciência alheia com queixas que, a olhos e ouvidos cansados e impacientes, parecem não ter fundamento.

Mas esse fundamento existe — só não se encontra de onde os incômodos ou os temores vêm. E isso, tantas vezes, não tem a menor graça.

Reconhecendo a imprecisão e a carga pejorativa do termo, a Associação Americana de Psiquiatria excluiu a hipocondria do seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM, na sigla em inglês).

Em 2013, a quinta edição do documento estabeleceu quadros mais específicos para identificar e tratar situações antes generalizadas com esse nome. Hoje se fala no transtorno de sintomas somáticos e no transtorno de ansiedade de doença — que podem ser detectados no consultório médico.

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No primeiro caso, as queixas estão relacionadas a sintomas físicos.

Por mais que sejam desencadeados por processos emocionais — especialmente os não mapeados ou elaborados com apoio profissional —, eles não devem ser rotulados de “imaginários” ou “simulados”.

Podem se manifestar em qualquer parte do corpo, com diferentes intensidades: de desconfortos gastrointestinais e episódios de tontura ou falta de ar a dores incapacitantes, paralisias, convulsões e cegueira.

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O transtorno de ansiedade de doença, por sua vez, é marcado principalmente pela preocupação excessiva de que uma patologia grave venha a aparecer ou já esteja em desenvolvimento. De acordo com o DSM, “sintomas somáticos não estão presentes ou, caso estejam, são de intensidade apenas leve”.

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Nesse contexto, mesmo processos fisiológicos naturais — uma azia após a feijoada — podem ser percebidos de forma amplificada. O sofrimento tem mais a ver com o significado de determinada sensação física do que com a sensação em si.

Assim, qualquer dor de cabeça pode indicar um tumor cerebral ou uma pressão no peito prenunciar um infarto. O sujeito não está encarando um câncer ou ataque cardíaco, mas isso não significa que ele não esteja penando por outra razão.

Na capital paulista, a psiquiatra Bruna Bartorelli coordena o Ambulatório de Transtornos Somáticos (Soma), espaço ligado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Ela explica que, embora o manual americano usado como referência mundo afora estabeleça esses diferentes diagnósticos, “o que vemos na prática clínica são casos em que os quadros se misturam”.

É difícil separar uma coisa da outra. “Muitos pacientes trazem queixas físicas associadas a uma preocupação exagerada em relação à saúde.” Uma definição precisa do que é a hipocondria.

Durante a entrevista, a médica não deixa de usar a velha palavra. “Acho que é o termo mais adequado, inclusive. As pessoas reconhecem, porque circula há mais de 2 mil anos”, comenta Bruna.

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Da Antiguidade até hoje, no entanto, foram várias as definições atribuídas à hipocondria — expressão derivada de um termo grego referente a uma região do abdômen. Segundo autores clássicos, era nessa parte do corpo, e não no cérebro, que se originavam certos estados emocionais.

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<span class="hidden">–</span>Ilustração: Daniel Almeida/SAÚDE é Vital

Causas e consequências

Bruna lida diariamente com pacientes sofrendo com o que se convencionou chamar de hipocondria. “Do ponto de vista psicopatológico, existem muitos graus e diferentes apresentações, desde quadros mais leves até os francamente delirantes”, ela conta.

Embora haja situações em que a ansiedade relacionada a uma suposta doença faça com que a pessoa evite até o amparo e o ambiente médicos, o ponto em comum entre essas manifestações distintas costuma ser a frequência na busca por atendimento.

E é aí que começa a saga (e a insatisfação) do paciente hipocondríaco. Ele peregrina por clínicas e especialidades diversas, esperando que virem e revirem seu corpo atrás de uma enfermidade.

Uma procura que, ao passar longe de profissionais como psiquiatras e psicólogos, não raro é infrutífera. “Tudo isso também gera custos estratosféricos para o sistema de saúde, de tempo e de dinheiro, com demandas de exames muitas vezes caros e desnecessários”, reflete Bruna.

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O sistema sofre; o paciente também.

Que o diga Brenda Salles, uma estudante de biologia do Rio de Janeiro que convive há anos com a hipocondria. Ela relata que hoje consegue perceber que foi criada “na base do medo”. “Medo como proteção contra os perigos da vida no geral, entre eles as doenças”, esmiúça.

Mas sua ansiedade habitual assumiu a feição de um transtorno em 2009, quando ela tinha 15 anos e perdeu o pai em decorrência de um mieloma múltiplo, um tipo de câncer. “Acho que foi aí que se instaurou de fato a hipocondria”, diz.

Ela começou a pensar demais em doenças, o câncer entre elas, e os pensamentos passaram a desencadear crises e padrões de comportamento, como checagens recorrentes de temperatura e de pressão, além de visitas e mais visitas a consultórios e laboratórios.

Mesmo assim, demorou cinco anos para que, seguindo a orientação de um ortopedista, ela pensasse em procurar ajuda psicológica.

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Desenvolver-se em meio a um clima de medo e tensão e vivenciar eventos traumáticos, como ocorreu com Brenda, são dois dos fatores que provavelmente abriram caminho para seus pensamentos e comportamentos disfuncionais. “É comum que pacientes com hipocondria tenham tido na infância familiares que viveram processos de adoecimento importantes, ou que eles próprios tenham passado por isso”, afirma Bruna.

Também são frequentes as histórias de pessoas que sempre associaram as experiências de doença, independentemente da gravidade, a ganhos extras ou raros de atenção e carinho — mecanismos inconscientes podem operar para perpetuar isso sob a forma de um padecimento constante.

O DSM cita outro fator relevante nessa história: “Normas culturais e sociais que desvalorizam e estigmatizam o sofrimento psicológico em comparação com o sofrimento físico”.

Fora esses aspectos, pesquisas indicam que a hipocondria também tem raízes no sangue: parentes de hipocondríacos têm maior probabilidade de desenvolver a condição, tanto por razões genéticas quanto pela criação da família.

Além disso, não surpreende quando o transtorno de ansiedade de doença ou de sintomas somáticos tenha laços com outros distúrbios psíquicos, como depressão e síndrome do pânico.

“Há uma interface grande entre a hipocondria e o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Na tentativa de moderar a ideia fixa da doença, a pessoa passa a dedicar cada vez mais tempo e energia a rituais de investigação do próprio corpo”, ilustra a psiquiatra da USP.

Nesses casos em que há a ocorrência simultânea de dois ou mais diagnósticos — as chamadas comorbidades —, reside o risco de que eles se potencializem mutuamente, uns provocando o agravamento dos outros.

Quando, enfim, cogitou um socorro psicológico, a estudante Brenda seguiu pela linha da terapia cognitivo-comportamental (TCC), focada sobretudo na identificação dos padrões de pensamento que sustentam determinadas emoções ou comportamentos.

“Ao longo das sessões, também aprendi algumas técnicas de apoio. Uma delas foi a de anotar, lado a lado, o pensamento disfuncional — ‘Sinto uma queimação no estômago, pode ser uma hemorragia’ — e uma afirmação mais realista — ‘Sinto uma queimação no estômago, provavelmente porque tenho gastrite’. Aprendi a sempre me perguntar, diante de uma ideia perturbadora, se ela é possível ou provável”, relata a futura bióloga.

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<span class="hidden">–</span>Ilustração: Daniel Almeida/SAÚDE é Vital

Informação para o bem… e para o mal

Diante da falta de informação acessível e dos estigmas que giram em torno da condição, Brenda deu um passo além e criou um projeto na internet, o @diariohipocondriaco, e elaborou uma cartilha gratuita sobre o tema.

“Acho que a hipocondria tem muito a ver com uma necessidade constante de controle. E hoje entendo que não temos essa opção em relação a quase nada, nem ao nosso próprio organismo. Como viver com essa necessidade, sendo a vida basicamente incontrolável?”, indaga a universitária.

Alguns impulsos, no entanto, ela se forçou a controlar. “Eu perdia muito tempo pesquisando sintomas na internet, às vezes passava o dia inteiro assim”, conta.

Quando suspeitava estar com alguma doença, ela revirava os conteúdos quase como se desejasse confirmar o temor — para em seguida recorrer às pessoas do seu entorno com a expectativa de que elas dissessem o contrário, que não havia motivo para aflição.

“Então comecei a exercitar outra prática que aprendi na terapia, a técnica da substituição: quando identifico a vontade de pesquisar, tento fazer outra coisa, como sair para caminhar ou ligar para alguém, mas não para falar sobre doença. Nem sempre é possível. Nesse caso, consulto um site em que confio, e tento não ir além.”

De fato, a mesma internet que pode ajudar a achar respostas pode expor um abismo de angústias. “Para uma pessoa com hipocondria, a grande disponibilidade de informações online sobre saúde pode ser prejudicial, uma fonte a mais de ansiedade”, observa o psiquiatra Daniel Martins de Barros, autor do livro O Lado Bom do Lado Ruim (Sextante).

Ainda mais porque, atualmente, muito conteúdo circulando entre páginas e redes sociais não está amparado em evidências científicas, mas em promessas caça-cliques e ideias sem fundamento.

Esse cardápio de informações, mais ou menos embasadas, pode alimentar qualquer tipo de ansiedade — a famosa “neura”. Nesse sentido, consultas excessivas às ferramentas de busca e autodiagnósticos apressados são alguns dos comportamentos que definem o que vem sendo batizado informalmente de cibercondria (ou hipocondria digital).

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No livro Os Hipocondríacos: Vidas Atormentadas (Tinta Negra), o escritor irlandês Brian Dillon diz que “cada período histórico se vê especialmente, ou até mesmo singularmente, hipocondríaco. No século 18 pensava-se que a hipocondria derivava de um excesso de luxos modernos; no 19, de um excesso de ócio e fácil acesso ao conhecimento ou pseudoconhecimento médico”.

E no século 21? Talvez a resposta esteja, para o bem ou para o mal, nos meandros do Google. No entanto, Barros faz questão de levantar uma ponderação. “Há muito mais pessoas que não sabem que estão doentes do que pessoas achando equivocadamente que estão”, diz o psiquiatra, que também divulga conteúdos sobre bem-estar mental em um canal no YouTube.

“Fala-se de uma hipermedicalização da sociedade. Isso faz sentido considerando as classes sociais mais privilegiadas, mas, pensando no Brasil e no mundo de forma geral, o que ocorre é o contrário”, avalia.

A tal cibercondria também gera seus estereótipos — e, entre as pessoas afetadas, estão aquelas que, mesmo sem formação na área, dão conta de avaliar seu estado de saúde de maneira crítica e com base em pesquisas mais cuidadosas. Barros reconhece que muitos colegas de profissão se sentem incomodados logo de cara com pacientes que aparecem no consultório já com uma hipótese de diagnóstico.

“Boa parte ainda acha ruim, mas esse trem já partiu. O papel do médico, como o do jornalista, do advogado e do contador, não é mais o de detentor do conhecimento. Um bom profissional atua como um gerente do conhecimento. Às vezes, de tanto pesquisar um assunto, o paciente chega à consulta até mais atualizado do que o médico.”

A hipocondria, claro, pode tornar a relação mais complicada. A busca sem fim pela causa de sintomas somáticos tanto abre alas ao autodiagnóstico como dificulta a conclusão do diagnóstico em si. “De modo geral, são pacientes que os profissionais não curtem. São vistos como pessoas insistentes, que só se queixam e não melhoram”, diz Bruna.

Só que essa postura de alguns clínicos dá margem não só para a impossibilidade de ajudar e resolver aquele caso como para o surgimento e a circulação de tanta piada.

“Muitos médicos consideram que a pessoa está daquele jeito porque ela quer. E, mesmo quando identificam que se trata de um transtorno psíquico, ainda dizem: ‘Ah, você não tem nada’”, afirma a psiquiatra. “O ponto é que a pessoa acredita que tem, e sofre muito.”

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Vencer a doença… e o medo da doença

Em seu livro, Dillon escreve que o indivíduo com hipocondria “tem em comum com o palhaço (…) a tendência a repetir o mesmo comportamento, a cometer os mesmos erros, em face de todas as indicações de que tem que ceder”.

Barros, que explorou as bases terapêuticas do riso em Rir É Preciso (Sextante), concorda. E acrescenta: “O palhaço é o sujeito que amplifica a falha — o erro, o tropeço, a queda. Para fazer a gente rir e também para nos mostrar o que somos, a nossa condição humana. O hipocondríaco também amplifica uma suposta falha, uma preocupação, uma ansiedade que, em diferentes graus, todos nós temos”.

Com a palavra, Brenda Salles: “Na terapia, algumas vezes eu relatava os pensamentos que tive durante uma crise e achava aquilo tudo bastante engraçado. Por mais que eu tivesse sofrido na ocasião. E a terapeuta me dizia que isso era bom, que mostrava que eu conseguia me separar, me desidentificar daqueles pensamentos”.

Era como se envergasse a figura de uma palhaça que tira e vê de fora o próprio nariz. Mas esse jeito de encarar as coisas nem sempre é o usual entre os hipocondríacos. “Ainda mais no período de crise, o paciente não tem essa percepção”, ressalta Bruna.

Quase dez anos depois de começar o tratamento psicológico, Brenda conta que não se considera “curada”, mas que tem “qualidade de vida”. “Lido com eventuais crises sem recorrer a emergências ou ao Google, e não penso mais em doença o tempo todo, mesmo estagiando na área da saúde. E isso graças ao tratamento e ao meu esforço para aplicar no dia a dia as técnicas que aprendi na terapia”, faz um balanço.

De fato, o principal tratamento da hipocondria é a psicoterapia. Mas, junto ao autoconhecimento, médicos podem prescrever remédios como antidepressivos. Depende do caso.

O que também ajudou Brenda em sua recuperação foi o contato com outras pessoas que vivem com hipocondria após criar, em 2020, o perfil no Instagram @diariohipocondriaco. Ali são postadas informações baseadas em estudos e notas motivacionais de superação. O canal virou uma rede de apoio.

De fato, após tantos encontros frustrados com médicos, muitas pessoas com hipocondria acabam encontrando alívio entre si.

Bruna conta que boa parte dos pacientes atendidos no Soma, o ambulatório da USP, participa de sessões de psicoterapia em grupo. “Às vezes um paciente só identifica questões suas depois de identificá-las em outros. Funciona muito bem, talvez até mais do que as sessões individuais”, avalia.

Brenda concorda: “Eu recebo muitas mensagens nas redes sociais. Ao ajudar outras pessoas, acabei me ajudando também”. Nesse percurso, por vezes compartilhado, a hipocondria pode se desvencilhar tanto das garras das piadas maliciosas como das suas sombras angustiantes.

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