sexta-feira, 12 de março de 2021

Alice Morais estuda a epigenética do câncer – e cria novos tratamentos

O DNA é um manual de instruções para a produção de proteínas. E apesar de praticamente todas as células do corpo guardarem uma cópia completa do material genético, os genes não mandam sozinhos em suas próprias atividades. Epigenética é o termo usado para se referir aos mecanismos que modulam a expressão dos genes sem alterar a fita de DNA em si. Esses mecanismos fazem com que a sua célula produza mais ou menos de uma proteína específica – ou então, caso estejam desregulados, fazem a célula produzir a tal proteína na hora errada. 

Não leve a epigenética a mal. A epigenética foi essencial para o desenvolvimento do organismo quando você ainda era um feto, e continua sendo importantes para definir o que cada célula deve fazer (afinal, células de órgãos diferentes precisam manifestar genes diferentes). O problema é que alguns desequilíbrios epigenéticos podem transformar uma célula normal em um tumor.

Um bom exemplo de mecanismo epigenético é a metilação. No DNA, a presença de um radical chamado metil (imagine-o como uma pequena etiqueta presa na dupla-hélice) indica quando um gene deve ser ativado ou desativado. As proteínas que estão ao redor do DNA se encarregam de colocar ou tirar o radical, definindo quais genes estão autorizados a se expressar. Por isso, essa regulação é muito influenciada pelo microambiente no interior célula. Sabemos que tumores, por exemplo, têm células menos metiladas em comparação com as saudáveis. Ou seja: muitos genes ficam com o semáforo verde ao mesmo tempo. 

A biomédica Alice Morais estuda epigenética e oncologia desde o mestrado, realizado na Unifesp. Durante as pesquisas, ela utilizou um modelo, criado por sua orientadora, que transforma melanócitos normais (células da pele) em melanomas (tumor). Assim, é possível analisar todas as fases pelas quais a célula saudável passa até virar um câncer.

O primeiro passo é submeter as células normais a algum tipo de estresse – ou seja, uma condição que não é ideal para o funcionamento delas. Os melanócitos são células que crescem grudadas umas às outras (chamadas de “aderentes”). São diferentes das células do sangue, que vivem soltinhas. O estresse provocado por Alice foi simplesmente forçar os melanócitos a crescerem em suspensão, sem nenhum substrato onde pudessem colar, para ver o que aconteceria. É como obrigar um bicho-preguiça a sobreviver sem uma árvore.

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Algumas dessas células morriam, mas outras persistiam e passavam por alterações epigenéticas para se adaptar à situação. Após serem subetidos ao estresse várias vezes, os melanócitos eram introduzidos em camundongos. Bingo: eles começaram a se comportar como tumores, crescendo de maneira agressiva.

Em cada etapa desse processo, Alice observou quais genes sofriam alterações epigenéticas. Ao final do mestrado, ela se interessou por quatro deles, que foram seu foco no doutorado. Um deles está relacionado à pluripotência, que é a capacidade da célula de se transformar em qualquer tecido. “É como se a célula estivesse retornando ao estágio embrionário para se reprogramar e se adaptar àquela nova condição”, diz a biomédica.

O método empregado por Alice não é a única maneira de desencadear um desequilíbrio na expressão dos genes. A exposição a raios UV causa um estresse oxidativo na célula, que pode levar ao câncer de pele. Já o alto consumo de gordura introduz mais radicais do tipo metil no organismo, gerando instabilidade na expressão dos genes.

Depois de ter estudado as causas do câncer, hoje Alice trabalha desenvolvendo tratamentos para a doença. Ela faz parte da equipe de Pesquisa e Desenvolvimento da ReceptaBio, uma empresa especializada em desenvolver fármacos oncológicos. Seu principal foco são os imunoterápicos, como os anticorpos monoclonais: moléculas que auxiliam o sistema imune a identificar e combater as células cancerígenas.

O grande trunfo do tumor é enganar as células de defesa. Ele sinaliza aos linfócitos T que não há nada de errado ali, e logo o corpo para de destruir as células do câncer. O que os anticorpos monoclonais fazem é se ligar aos linfócitos para avisar que a defesa do corpo não pode parar. 

Os imunoterápicos variam muito conforme a molécula utilizada e do tipo de tumor. Um dos projetos em que Alice atua é de um fármaco para o tratamento de câncer de colo de útero. Ela também participa de reuniões com a Anvisa para viabilizar a aprovação desse tratamento. No momento, ele encontra-se em fase de testes clínicos.

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