sexta-feira, 19 de março de 2021

“Resiliência tem limites”: a saúde mental na pandemia de coronavírus

Morre o senador, o porteiro, um familiar, o vizinho… Não há vagas nos hospitais, vacinas estão demorando e o dinheiro cada dia fica mais curto. Como falar em saúde mental diante de um cenário tão desanimador? Logo no início da pandemia de Covid-19, os especialistas temiam uma explosão de novos diagnósticos de transtornos psiquiátricos, em especial de depressão e ansiedade.

Mas duas pesquisas robustas recém-divulgadas mostram, na verdade, que somos mais resilientes do que se imaginava. “Óbvio que há impactos esperados e compreensíveis no bem-estar dos brasileiros, só que eles não se traduzem necessariamente em mais doenças”, explica o psiquiatra José Gallucci-Neto, da Universidade de São Paulo (USP).

Uma das revisões, publicada no periódico Psychological Medicine, avaliou 25 estudos com mais de 72 mil pessoas. Todas as pesquisas incluídas compararam a saúde mental dos participantes antes e durante períodos de lockdown ou quarentena.

Em geral, houve um aumento discreto na intensidade de sintomas ansiosos ou depressivos, mas que não configura um aumento no número de diagnósticos de doenças psiquiátricas. Já os níveis de sentimento de solidão e estresse e o risco de suicídio se mantiveram praticamente iguais.

“O impacto psicológico dos lockdowns é pequeno em magnitude e heterogêneo, sugerindo que a maioria das pessoas é resiliente aos seus efeitos”, escrevem os autores. A outra revisão, da Universidade de Liverpool, incluiu 65 pesquisas e chegou a conclusões semelhantes, porém ainda não foi publicada em um periódico científico (o que significa que não foi avaliada por outros cientistas até agora).

De qualquer forma, esses trabalhos sugerem que nosso cérebro se adaptaria à situação adversa, mesmo que com algumas consequências negativas.

“No início da pandemia, houve uma ligeira piora nos sintomas de ansiedade e depressão, de até 10%. Mas isso se estabilizou ao longo de 2020 até voltar aos níveis de antes”, comenta o psiquiatra André Brunoni, da USP, a partir dos dados da segunda revisão. “Em alguns países os indicadores ficaram até melhores”.

O que protege e o que ameaça a saúde mental do brasileiro

Aqui também parece não ter acontecido uma onda de problemas de saúde mental (como o suposto fenômeno foi batizado). “Pelo que vimos, o nível de diagnósticos de transtornos depressivos e ansiosos se manteve estável”, conta Brunoni.

Aliás, esse especialista assina, com Gallucci-Neto, o epidemiologista Paulo Lotufo e outros pesquisadores um levantamento ainda inédito, com dados de 2 mil participantes do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA), que há décadas acompanha a saúde de 15 mil brasileiros.

Os achados do grupo sugerem fatores de risco e proteção. Mulheres, jovens e pessoas em situação socioeconômica pior estavam mais sujeitas ao sofrimento psíquico. “Ter níveis de estresse muito alto, apresentar sintomas de Covid-19 e sentimentos intensos de isolamento também entram na lista”, elenca Brunoni.

Por outro lado, relatar boa saúde física, manter os relacionamentos sociais e a prática de atividades físicas mesmo em casa, estar casado e conseguir trabalhar no esquema home office ajudariam a preservar o bem-estar mental durante a pandemia, de acordo com a investigação.

Até a política entra nessa história. “Quando perguntamos se a pessoa concordava com as medidas estaduais [a amostra era paulista] ou federais de contenção do vírus, quem estava mais engajado politicamente, independentemente de para qual lado, tinha uma incidência levemente menor de transtornos”, conta Brunoni.

O efeito foi discreto nesse caso, mas reforça a importância do coletivo. “A sensação de ter pessoas que pensam parecido por perto pode ser, de certa forma, benéfica”, raciocina o psiquiatra.

O fardo emocional existe, e em 2021 pode ser pior

Existem reações psicológicas e físicas esperadas num contexto como esse. A tensão e o medo desembocam em insônia, agitação e por aí vai.

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“Só que esses sintomas são transitórios. Eles podem melhorar se sua mãe for vacinada, por exemplo, ou outra coisa positiva acontecer”, explica Gallucci-Neto. Quando o sofrimento é constante ou só piora, atrapalhando a realização das tarefas diárias, aí sim podemos estar diante de uma doença.

E é isso que preocupa os especialistas na situação atual do país. Tudo o que discutimos até agora diz respeito a incidência de transtornos psiquiátricos em 2020. Os primeiros meses de 2021 e o próprio convívio prolongado com uma pandemia descontrolada no país mostram potencial para debilitar a saúde mental do brasileiro.

“Estamos em pleno colapso da saúde, com uma explosão de mortes e sem vacinação rápida no horizonte. As pessoas estão com medo de não sobreviverem ou de não conseguirem manter suas famílias financeiramente, o que interfere muito na saúde mental”, aponta Gallucci-Neto.

Um estresse contínuo e intenso é perigoso, alertam os médicos. “Tivemos estrutura emocional para suportar até agora, mesmo que tenha sido doído. Mas é como um elástico, vamos puxando até que arrebente”, continua Gallucci. “É o limite da nossa resiliência que está sendo testado. Nesse sentido, infelizmente arrisco dizer que 2021 tende a trazer números piores”, conclui.

Lockdown não causa suicídio

A preocupação atual dos especialistas é com a pandemia em geral, e principalmente com o acúmulo de tragédias decorrentes de uma situação fora do controle. Por outro lado, como aquelas duas revisões reforçaram, medidas restritivas por si só não culminaram em aumentos nas taxas de suicídio. Até porque essas práticas ajudam a evitar mais mortes, que culminariam em mais sofrimento.

Resumo: descreditar o lockdown por causa do suicídio não é um argumento válido. “Não dá para atribuir uma causa única a um problema tão complexo”, afirma Gallucci-Neto.

O médico lembra que os índices de suicídio já vinham crescendo no Brasil nas últimas décadas, especialmente entre jovens de 15 a 29 anos. Ou seja, caso a tendência se confirme em 2020, sequer dá para dizer que foi por causa da pandemia de maneira ampla (quanto mais por um fator relacionado a ela).

Brunoni lembra ainda que a divulgação de detalhes de casos ou de cartas de suicídio, como fez o presidente Jair Bolsonaro durante uma transmissão ao vivo, é um gatilho para pessoas com pensamentos suicidas.

Segundo Gallucci-Neto, as autoridades devem se concentrar, entre outras coisas, em oferecer condições para um isolamento social que impacte o mínimo possível na população. “Uma coisa é fazer um confinamento com orientação e auxílio financeiro, como ocorre em alguns países. Outra é criar medidas restritivas sem oferecer nenhum apoio”, critica.

Para sair dessa

Sim, estamos cansados, nervosos e preocupados. Contudo, já existem provas de que somos capazes de resistir. Embora algumas pessoas sejam naturalmente resilientes, dá para treinar essa habilidade.

“Uma pessoa que está ansiosa, por exemplo, pode adotar estratégias que reduzam sua ansiedade, como uma atividade física ou a meditação”, elenca Gallucci-Neto. Se algo ruim acontecer, o luto deve ser vivido, seja ele individual, pela perda de pessoas amadas, ou coletivo, frente a tantas notícias de mortes.

Aliás, vale lembrar que boa parte dessa resiliência é construída em sociedade. Até por isso, engajar-se em uma atividade que ajude o próximo e dê um sentido à vida traz um efeito positivo. Vale desde participar de trabalhos voluntários até orientar alguém da família a usar máscaras, tomar vacinas, promover boas informações…

E todas aquelas recomendações do ano passado continuam em voga: manter uma rotina de horários para comer, descansar e se exercitar, reduzir o uso das redes sociais, alimentar-se bem e encontrar um hobby.

Por fim, vale reforçar que, quando o sofrimento e os pensamentos negativos são intensos, insistentes, não melhoram frente a boas notícias e atrapalham a vida, é hora de procurar ajuda. É possível fazer isso sem sair de casa.

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“Resiliência tem limites”: a saúde mental na pandemia de coronavírus Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

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