18 de junho de 1858. Manhã de verão no distrito de Downe, um vilarejo bucólico que, no censo demográfico de 1861, contava com 500 habitantes. É um subúrbio típico, localizado 22 km a sudoeste do centro de Londres. Charles Darwin, então com 49 anos – e já usando a barba de seu retrato mais célebre – observa o carteiro chegar. A cena é vista por meio de um espelho, instalado em seu estúdio em um ângulo tal que o permitia fiscalizar a movimentação na caixa de correio sem obrigá-lo a se levantar da escrivaninha.
O carteiro uma mensagem de Alfred Russel Wallace, um dos correspondentes mais frequentes de Darwin. Era um artigo científico, intitulado On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type (em português, algo como “Sobre a tendência das variedades de se distanciar indefinidamente do tipo original”).
O artigo nada mais era que uma descrição resumida do mecanismo de evolução por seleção natural – que Wallace havia deduzido sozinho, sem saber do progresso de Darwin.
Progresso lento, diga-se. Darwin guardou a teoria da seleção natural para si por duas décadas. Optou por aperfeiçoar cada mínimo detalhe à exaustão, em vez de publicá-la logo de cara. E uma hora, de tanto procurar pelo em ovo, acabou sendo ultrapassado. Nas palavras do próprio Darwin: “Eu nunca vi uma coincidência tão chocante. Ele [Wallace] não poderia ter feito um resumo melhor!”.
A sorte é que Wallace o respeitava. O respeitava tanto que tinha mandado o tal artigo só para ele. Queria, antes de mais nada, saber o que Darwin achava. Se valia a pena publicá-lo. Em caso positivo, pediu ao próprio Darwin que enviasse o manuscrito a Charles Lyell, um famoso editor londrino. Haja sorte.
Darwin poderia ter simplesmente rasgado a carta. Mas optou pela saída ética: mandou Lyell, o editor, juntar suas conclusões e as de Wallace em um único artigo, que foi lido diante da Sociedade Linneana de Londres (uma tradicional congregação de CDFs ricaços) em 1º de julho, só duas semanas depois. Em 20 de agosto – há exatos 160 anos – o artigo foi impresso e distribuído. A ciência nunca mais seria a mesma.
Wallace não poderia ter se dado melhor: ele não era ninguém na alta sociedade inglesa. Ele precisava de status para convencer os demais cientistas de uma teoria tão revolucionária – e assinar um artigo científico com Darwin, na época, era o equivalente de apresentar o Jornal Nacional com o Cid Moreira. Nunca lhe ocorreu reivindicar a teoria apenas para si próprio. Pelo contrário: ele encarnou a figura do aprendiz humilde.
“Eu vou insistir para sempre que a teoria na verdade é sua, e só sua. Você a esmiuçou em detalhes que eu nunca tinha pensado, anos antes que eu tivesse uma luz sobre o assunto. Meu artigo nunca teria convencido ninguém, e teria sido recebido como uma especulação ingênua, enquanto seu livro revolucionou o estudo da História Natural. O único mérito que reivindico para mim é ter conseguido te forçar a finalmente escrevê-lo e publicá-lo”, escreveu Wallace.
A primeira edição d’A Origem das Espécies seria publicada um ano depois, em 1859, com 502 páginas de escrutínio e ponderação. Mesmo assim, foi considerada por Darwin, na introdução, um esboço rústico, preliminar. “No presente momento, minha obra está quase concluída, mas, como ela ainda me tomará alguns anos para ser completada, e minha saúde está longe de ser boa, tive certa urgência em publicar este resumo”. Em outras palavras: a água bateu na bunda.
“Espero que o leitor consiga depositar alguma confiança em minha exatidão(…). Este resumo, que agora publico, deve estar com certeza imperfeito.” É, Darwin… Acho que deu para confiar. E também deu para reconhecer o papel de Wallace. Felizmente, esse capítulo da ciência foi resolvido sem brigas.
Se você é cientista ou fã de ciência, ler A Origem é como encarar um clássico literário do calibre de Dom Quixote ou Os Lusíadas. Darwin não era um escritor empolado: usava vocabulário simples, com poucos floreios. Ele também não tinha nenhuma pretensão de provocar a Igreja ou fazer desfeita com outros naturalistas: era humilde e registrava no papel todas as críticas apresentadas por seus leitores – às quais respondia minuciosamente.
Por outro lado, seus parágrafos são longos, ele abusa das vírgulas e apresenta suas ideias de maneira prolixa e circular – sempre retomando dezenas de exemplos como evidências para suas afirmações. Darwin praticou a ciência em uma época bem diferente da nossa, em que não havia uma ampla indústria de publicação de artigos, revisão por pares, cobranças de produtividade, bolsas federais nem muita padronização para apresentar resultados.
Outro aspecto interessante da leitura é verificar em primeira mão até onde Darwin foi capaz de chegar – e em que aspectos as versões originais de suas ideias foram refinadas por seus sucessores usando ferramentas que só vieram depois. A teoria da evolução vigente hoje é a chamada Síntese Moderna, desenvolvida no começo do século 20. Os biólogos dessa época uniram a seleção natural de Darwin com a genética de Mendel em um sólido alicerce matemático, que incorpora outras forças evolutivas (como a deriva genética, uma flutuação aleatória no pool de genes que não está associada a pressões seletivas).
Ou seja: ao contrário do que muitos criacionistas imaginam, a Teoria da Evolução não é uma outra forma de crença – uma explicação alternativa para a biodiversidade da Terra, que pode ser equiparada à ideia bíblica da Criação. Na verdade, ela é um enorme edifício de ideias discutidas e aperfeiçoadas ao longo dos últimos 150 anos, sempre por meio do diálogo entre pesquisadores, experimentos de laboratório e a observação cuidadosa da natureza. A Origem foi a semente de algo muito maior. E de algo muito diferente de um dogma.
A Origem está em domínio público e tem diversas traduções, mas a mais caprichada – de longe – é a edição tamanho pocket da Editora Ubu, que você vê ali na foto.
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Livro da Semana: “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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