Em 21 de abril de 2021, Elizabeth II completou 95 anos. E o desejo de “vida longa à rainha”, entoado inclusive no hino britânico, tem sido atendido. A despeito do clamor dos súditos, um empurrão da genética e toda uma conjuntura saudável contribuem para que ela detenha o título de monarca com maior tempo de trono do Reino Unido. Mas, coincidência ou não, um ingrediente em particular não falta no cotidiano da soberana: a Camellia sinensis, espécie que é matéria-prima para o legítimo chá. Um ex-cozinheiro do palácio revelou que o desjejum da majestade se dá com uma xícara da bebida, que, claro, também é apreciada no tradicional serviço das 5 da tarde.
Assim como sua alteza real, fãs de infusões feitas com a planta aparecem em um estudo recente com nada menos que 100 902 chineses. Segundo os autores, da Academia Chinesa de Ciências Médicas, em Pequim, os bebedores habituais do chá estão mais protegidos do ponto de vista cardiovascular — conclusão tirada após sete anos acompanhando essa turma toda. Calma que isso não quer dizer que a bebida é milagrosa.
“Como se trata de um estudo de correlação, não dá para estabelecer concretamente as causas do desfecho, e outros fatores podem estar envolvidos”, pondera a nutricionista Nayara Massunaga, especialista em fitoterapia e mestre em cardiologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O contexto faz diferença. No caso da rainha da Inglaterra, a agenda contempla caminhadas com seus cães e um cardápio equilibrado, segundo seu ex-chef de cozinha.
Apesar de a monarca preferir o chá-preto e os chineses serem adeptos do verde, ambos são derivados da Camellia sinensis. E, de fato, não faltam evidências de que os compostos bioativos encontrados em ambas as versões ofereçam benefícios em prol da longevidade. Muito antes de ir parar nos bules, a planta já encantava. Tribos asiáticas a mastigavam ou a consumiam macerada, como um mingau, em busca da ação estimulante.
Uma antiga lenda diz que o imperador chinês Shen Nung, que viveu há mais de 5 mil anos, foi o primeiro a preparar o chá. Teria sido coisa do acaso: ao aquecer a água, uma rajada de vento fez com que folhas do arbusto caíssem dentro do pote. Talvez a história não seja bem assim, mas a receita é milenar e ganhou o mundo. Seja nas xícaras fumegantes de chás branco, verde, preto, vermelho ou oolong, seja nas mesas de cerimônias, com o matchá, seja nas garrafas modernas de kombucha, a cada dia temos mais motivos para festejar essa espécie.
Os entendidos informam que a mistura de água quente com ervas — caso da camomila ou do mate — deve ser chamada de tisana ou simplesmente de infusão. “Para ser considerado chá de verdade, precisa ser elaborado com a Camellia sinensis”, define a nutricionista Vanderli Marchiori, fundadora da Associação Paulista de Fitoterapia (Apfit).
Fatores como tempo de colheita e processos de produção, a exemplo de secagem, oxidação e fermentação, determinam as variações nas tonalidades. Assim surge o tipo branco, o verde, o preto, entre outros. “As condições de cultivo provocam impactos em cada um”, resume o farmacêutico João Ernesto de Carvalho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
E, embora a chamada “árvore do chá” seja única, existem diversas variedades, o que também ajuda a explicar as particularidades no teor de compostos e nos sabores. Para elucidar as nuances, cientistas resolveram analisar o genoma da planta. A investigação mostra que as camélias dispõem de genes para indicar a produção de flavonoides e de cafeína — substâncias protetoras do vegetal. E a concentração desses elementos teria relação com a evolução recente e a domesticação da espécie pelo homem.
Há quem atribua aos monges a descoberta dos feitos pelo bem-estar mental e o controle da ansiedade. Entre os fitoquímicos por trás disso, temos a já mencionada cafeína, a teobromina e a L-teanina, que agem em parceria. “A cafeína atua nos neurônios e combate a fadiga”, ensina a bióloga Ivana Cruz, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul.
“Ela ainda tem ação antioxidante e ajudaria a reduzir o risco do Alzheimer”, completa. Menos celebrada, a L-teanina é citada por ações no sistema nervoso. “Há indícios de que favoreça a produção de serotonina, uma promotora das sensações de prazer”, conta a nutricionista Joanna Sievers, da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina.
Diante dessas benfeitorias, ocorre uma leve inclinação para entornar um balde, mas o excesso é sinônimo de prejuízos à saúde. “O exagero favorece arritmias e eleva a pressão arterial”, avisa o nutrólogo Antônio Elias de Oliveira Filho, da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran). “Não há dados de segurança de uso durante a gestação e lactação e não se recomenda para hipertensos”, informa Letícia Yumi Hayashi, que acaba de concluir uma revisão de estudos sobre o assunto na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação da professora Edna Tomiko Myiake Kato.
Tem chá de todos os jeitos
Das folhas in natura à bebida pronta, o que observar ao escolher:
- Folhas
A planta vendida a granel precisa estar bem acondicionada. Confira o cheiro e a aparência, que devem ser frescos. Fuja se identificar qualquer sinal de bolor. - Saquinhos
São práticos. Opte por sachês de marcas conhecidas e produzidos com material biodegradável. Veja se a embalagem está bem vedada. - Latas e garrafas
Aqui, a dica é ficar atento à lista de ingredientes. Quanto menor o número de itens relacionados, melhor. Muitos desses produtos são lotados de açúcar.
A sinergia de substâncias que despertam boas sensações encantou, há muitos séculos, sábios japoneses. Eles criaram a cerimônia do chá, que acontece até hoje. “É um ritual belíssimo, que pode levar horas e valoriza cada momento da elaboração e do consumo da bebida”, descreve a farmacêutica Sylvia Rodrigues, da Teakettle Casa de Chá, em São Paulo.
Mesmo em casa, o modo de preparo é o segredo para extrair toda a riqueza de compostos, sabores e aromas. Experts ensinam que a água deve estar em ponto de ebulição — ou seja, tem que desligar o fogo quando as bolhinhas começarem a surgir. “A temperatura muito alta, como a da fervura, queima as folhas”, observa Michel Bitencourt, CEO da Tea Shop.
Em seguida, acrescente a erva e tampe o bule. A partir daí, olho no relógio! Há quem prefira aguardar cerca de três minutos. “Para assegurar os fitoquímicos, o ideal é manter entre cinco e dez minutos para a maioria dos chás”, orienta a nutricionista Brunna Boaventura, que conduziu testes no laboratório da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ora, não se pode deixar escapar nada da rica composição química da Camellia sinensis, independentemente do tipo escolhido.
Um estudo recém-publicado na revista técnica Molecules elenca os principais destaques do tradicional matchá, por exemplo. Entre eles, está a alta concentração de catequinas, um grupo de compostos antioxidantes e anti-inflamatórios. “A produção dessas substâncias se dá, sobretudo, para a proteção da espécie”, afirma o professor Daniel Demarque, da USP. Além de preservar as estruturas da planta diante das mudanças do clima, do sol e dos ventos, há moléculas que são fabricadas para afastar insetos e outros inimigos. Os taninos têm essa função, daí aquela adstringência e impressão de que “amarra” a boca.
As saponinas também dão um susto nos predadores. “Mas, no chá, elas favorecem a digestão”, comenta Sylvia. Por isso o costume dos japoneses de oferecer banchá, um tipo de chá-verde, após as refeições. Para atenuar certos aspectos, ingleses e indianos gostam de incluir leite e cubos de açúcar. Tem quem recrimine esses ingredientes, mas bom mesmo é curtir o gosto das tradições.
Para Brunna, vale saborear a bebida apreciando o momento, quase como prática meditativa nos moldes zen-budistas. “É uma ocasião para o autocuidado”, diz. “Os chás trazem conforto e permitem uma pausa no cotidiano”, concorda Edna. Não precisa ser exatamente às 5 da tarde. Para colher benefícios, soberana mesmo é a regularidade.
Hora de encher o bule
Saiba o que você ganha quando escolhe cada derivado de Camellia sinensis
Verde
Esse chá tende a apresentar muitas das características da planta fresca. “Preserva grande parte dos compostos benéficos, caso das epigalocatequinas galato (EGCG), daí ser estrela em estudos mundo afora”, explica a bióloga Ivana Cruz. Assim que são colhidas, as folhas secam em fornos, no vapor ou mesmo sob o sol, entre outros cuidados.
Assim, são desativadas algumas enzimas, o que impede reações químicas capazes de levar à oxidação. A coloração verde é mantida. Quando preparada a infusão, o resultado é uma bebida de cor amarelo-esverdeada e gosto adstringente.
Preto
Reúne um pouco mais de cafeína em relação aos outros chás. Uma das explicações para isso está no uso da variedade Camellia sinensis assamica, versão comum em países como a Índia. Passa por etapas de oxidação, com redução de água e maior exposição ao oxigênio.
“Às vezes, ocorre a trituração das folhas para favorecer o processo”, observa o farmacêutico Daniel Demarque, da Universidade de São Paulo. É o mais consumido nos países ocidentais. Há versões aromatizadas, caso do preferido da rainha, o Earl Grey, que contém bergamota.
Branco
É o mais delicado. Geralmente, resulta das folhas jovens ou brotos. Elas conservam uma estrutura chamada tricoma, que é um tipo de penugem protetora da planta — é ela que deixa a superfície com aparência prateada. Costuma passar por poucas fases de produção.
“A planta é recolhida, murchada naturalmente e, depois, vai para secagem”, explica Michel Bitencourt, CEO da Tea Shop e sommelier de chás. Todo esse zelo no manuseio evita que seja machucada e oxide. Ainda que concentre muitas substâncias benéficas, seu sabor é suave e a coloração é clara.
Vermelho
Não confunda esse tipo de chá com aqueles preparados que misturam frutas como amora e framboesa, além de especiarias. E nem se trata também de rooibos, uma planta africana muito usada em infusões.
Segundo Bitencourt, o legítimo vermelho, derivado da Camellia sinensis, é uma variedade procedente de Pu Erh, província de Yunnan, no sudeste da China. “Trata-se do chá-verde submetido a um processo especial de fermentação, sob condições controladas de calor e umidade”, explica. Em alguns lugares são utilizados, inclusive, barris de carvalho. A coloração é bem escura, com tons avermelhados.
Oolong
Também conhecido como wulong, seu nome significa “dragão negro” e teria relação com o formato das folhas após passarem por algumas etapas do processamento. “Elas são parcialmente fermentadas e oxidadas durante um curto período de tempo”, relata a nutricionista e fitoterapeuta Vanderli Marchiori.
Apelidado de chá azul, justamente por estar entre o verde e o preto, na verdade sua coloração é mais puxada para o âmbar. Os chazeiros,
ou sommeliers da bebida, descrevem o aroma como frutado.
Matchá
De origem milenar — foi o escolhido para as cerimônias de chá japonesas —, está cada vez mais célebre devido aos benefícios atestados em estudos.
A produção ainda é bastante artesanal. Diferente dos outros, é um pó bem fininho que passa por moinhos de pedra.
O cultivo costuma ser feito à sombra e ele tende a concentrar clorofila e mais fitoquímicos, especialmente catequinas. Encara etapas de vaporização, que estabilizam enzimas e impedem a oxidação. No preparo da bebida, há tradição de recorrer a um batedor de bambu para formar uma espuma.
E o kombucha?
Outro derivado da Camellia sinensis que é antigo, mas foi redescoberto. Durante a pandemia, até o cantor Caetano Veloso se mostrou fã da bebida. Lendas cercam sua origem, mas acredita-se que venha da China. “Ela resulta da fermentação de leveduras e bactérias do gênero Acetobacter”, descreve o biólogo Flaviano dos Santos Martins, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que tem pesquisado o alimento.
Essa cultura de micro-organismos recebe o nome de scoby, do inglês symbiotic culture of bacteria and yeast. “Ele tem potencial probiótico”, comenta Martins. Ainda não dá para bater o martelo sobre seus efeitos na microbiota, mas tudo leva a crer que colabora para o ecossistema que habita nosso intestino.
Uma planta, vários chás Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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