DDirigir na Califórnia é um inferno. Pelo menos na Bay Area, região que inclui São Francisco e demais cidades do Vale do Silício, onde os motoristas passam em média 97 horas por ano em congestionamentos, segundo a empresa de análise de tráfego Inrix. E está piorando: de manhã, no horário de pico, a velocidade média dos carros é 32% inferior a 2019, antes da pandemia.
Mas, para um pequeno número de pessoas, a ida para o trabalho pode ficar um pouco menos sofrida. Neste mês, a Mercedes-Benz deverá lançar nos EUA os primeiros carros do mercado com o chamado Nível 3 de condução autônoma, em que o computador de bordo assume a responsabilidade pela direção, sendo capaz de acelerar, frear e operar o volante quando o veículo estiver rodando na estrada, inclusive se ela estiver congestionada.
O sistema, batizado de Drive Pilot, permite algo inédito: o motorista não precisa nem olhar para a rua (os outros sistemas de automação, como os presentes nos Tesla, exigem isso – eles monitoram o seu rosto, e desligam se você não estiver olhando à frente). Ou seja, com o Drive Pilot, é possível ficar lendo ou brincando no celular.
A Mercedes tem tanta confiança nessa tecnologia, que recebeu autorização para operar nas estradas da Califórnia e de Nevada (e já havia sido liberada na Alemanha em 2022), que colocou até um game no console central do carro: Tetris, que você joga tocando na tela.
O Drive Pilot está presente nas linhas EQS e S-Class, cujos preços começam em US$ 100 mil. Ele funciona a no máximo 60 km/h, e não é 100% autônomo: você ainda precisa assumir a direção ao rodar dentro da cidade. Também não pode dormir ou sair do banco do motorista.
Mas com os carros da Cruise, uma startup comprada no ano passado pela General Motors, dá para fazer essas coisas. Desde 2022, ela opera um serviço de táxis autônomos em São Francisco.
Você diz para onde quer ir, usando um app, e alguns minutos depois o carro aparece, como se fosse um Uber. Só que com velocidade limitada a 50 km/h, e sem motorista.
A novidade é que, no mês passado, a Cruise e a Waymo (subsidiária de robotáxis do Google) receberam permissão do governo local para rodar 24 horas por dia, sem restrição: até então, seus carros só podiam circular em número limitado e à noite, quando há menos trânsito.
A liberação, que veio envolta em controvérsia, rapidamente mudou a rotina de São Francisco – e não só para melhor (mais sobre isso daqui a pouco).
O ponto é que, após mais de dez anos prometendo uma realidade que nunca se concretizava (o Google começou a testar veículos sem motorista nas ruas de Mountain View, sua cidade-sede, em 2012), os carros autônomos finalmente começam a entrar pra valer no dia a dia urbano.
Mas, ao mesmo tempo, ainda há obstáculos pela frente – incluindo fatores que vão além da tecnologia, e têm a ver com o comportamento humano.
Autonomia em camadas
Quase todas as grandes montadoras estão desenvolvendo carros autônomos – e o esforço inclui até empresas que não são do ramo, como Amazon e Apple. Os projetos estão em estágios variados de desenvolvimento. Também incluem tecnologias e protótipos ainda mantidos em segredo.
Mas a Society of Automotive Engineers (SAE), uma entidade americana que foi fundada em 1905 e hoje reúne 138 mil profissionais do setor, criou uma escala que permite enxergar com clareza a posição de cada empresa nessa corrida. Ela classifica a automação veicular em cinco níveis, com requisitos e limites bem definidos.
O Nível 0 se refere aos veículos comuns, sem automação. Já o Nível 1 engloba recursos como o controle de cruzeiro adaptativo (ACC), que regula a velocidade e a distância em relação ao carro da frente. A maioria dos fabricantes já oferece essa função, mesmo em modelos relativamente baratos.
No Nível 2, o carro também inclui ACC, mas ele trabalha em conjunto com o lane assist, que aciona o volante para manter o veículo dentro da faixa. Com isso, o computador é capaz de assumir o comando em determinadas situações. Quase todas as grandes montadoras oferecem Nível 2 em alguns de seus modelos [veja no quadro acima].
Um detalhe interessante é que, embora a Tesla seja considerada a vanguarda da automação, os sistemas que ela oferece, como o Full Self Driving e seu antecessor Autopilot, tecnicamente são “apenas” Nível 2.
Todos os sistemas desse patamar, de todos os fabricantes, têm em comum o seguinte: eles são só assistências, ou seja, quem está dirigindo ainda é você.
O Nível 3 emprega tecnologias similares (o carro acelera, freia e vira o volante para se manter dentro da faixa), mas com uma dose extra de convicção: ele é o primeiro no qual, em determinadas situações, o computador realmente está dirigindo – e você não precisa prestar atenção.
Tanto é assim que, ao apresentar os carros desse tipo na Alemanha, a Mercedes disse que assumiria a responsabilidade judicial se houvesse acidentes por falha no Drive Pilot.
Para conseguir operar no Nível 3, o sistema apela à redundância: o carro usa radar, câmeras e um sensor LiDAR (light detection and ranging), que dispara feixes de luz infravermelha, para mapear o ambiente e os veículos em volta.
Se um desses três métodos falhar ou fornecer dados incorretos, ele ainda tem os outros. Essa é a mesma estratégia adotada pela BMW: ela pretende incluir um sensor LiDAR em alguns de seus carros, que poderão ser os próximos a alcançar o Nível 3 de autonomia.
Acredita-se que a empresa vá mostrar os novos modelos, que pertencem à sua Série 7 (sedãs de luxo) até o começo de 2024. Mas, antes de sair rodando de forma semiautônoma, eles precisarão obter permissão das autoridades (algo que por enquanto só a Mercedes tem).
Já os Tesla não possuem LiDAR. E a empresa decidiu não colocar nem radar nos seus carros fabricados em 2021 e 2022, que operam só com câmeras. É por isso, entre outros fatores, que os Tesla ainda não alcançaram o Nível 3.
Mas também faz com que eles sejam mais baratos: nos EUA, o carro “básico” da marca custa US$ 40 mil. Mais uma mensalidade de US$ 199 pelo uso do Full Self Driving – que, vale lembrar, não é full.
A empresa diz que seus carros já rodaram mais de 480 milhões de quilômetros no modo FSD, e ela está a um passo de oferecer automação total, de verdade – algo que, desde 2014, Elon Musk vem prometendo “para o ano que vem”.
Mesmo assim, há quem diga que a Tesla está indo rápido demais. Em 1965, o advogado americano Ralph Nader ficou famoso após publicar um livro, Unsafe at Any Speed (“Inseguro em qualquer velocidade”, não lançado no Brasil), apontando casos em que a indústria automotiva foi irresponsável: tirou peças dos carros, comprometendo sua estabilidade, e tentou retardar a adoção de tecnologias vitais, como os cintos de segurança, para economizar.
O livro teve uma repercussão enorme. E levou o governo dos EUA a criar um órgão, o National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA), para fiscalizar a segurança dos carros. Recentemente ambos, Nader e a NHTSA, atacaram a Tesla.
Ele, que chegou a ser candidato a presidente dos EUA e até hoje tem destaque na mídia de lá, declarou que a liberação do Full Self Driving era “uma das coisas mais perigosas e irresponsáveis feitas por uma empresa de automóveis nas últimas décadas”.
O golpe mais duro veio em fevereiro deste ano, quando a NHTSA mandou a Tesla parar a implantação do sistema (que é enviado pela internet, na forma de uma atualização de software, para os carros) e fazer um recall com mais de 363 mil veículos que já estavam rodando esse software.
Motivo: em certas situações, o FSD poderia apresentar “riscos de colisão se o motorista não intervir”. Porque ele tem bugs – e alguns parecem sérios.
Se você fizer uma busca rápida no Google, vai encontrar vários exemplos. Um vídeo recente mostra um Model S dando uma freada brusca, sem motivo aparente, dentro de um túnel em São Francisco, o que provocou o engavetamento de oito veículos. Nove pessoas ficaram feridas, incluindo uma criança de dois anos.
Em abril, um relatório (1) da NHTSA revelou que o número de acidentes envolvendo os sistemas de automação dos Tesla era muito maior do que o divulgado anteriormente: foram pelo menos 273 colisões até hoje (o equivalente a 69,6% de todos os acidentes com carros Nível 2).
Claro, isso se deve ao fato de a companhia ter uma frota maior (há mais de 800 mil Tesla com algum grau de automação circulando nos EUA). Mas a divulgação desses números atiçou as críticas à empresa.
Ela diz que seus veículos são bem mais seguros que os carros comuns. Segundo ela, os Tesla sofrem em média 1 acidente a cada 8,9 milhões de km rodados. Muito melhor que a média dos carros sem automação nos EUA, de 1 acidente a cada 1 milhão de km. Os dados foram compilados pela Tesla, não por um órgão independente, e por isso devem ser encarados com algum ceticismo.
A empresa também anunciou que está voltando a incluir um radar em seus carros, já nos modelos 2023.
Em maio, com a permissão das autoridades, a Tesla recomeçou a distribuição do FSD. Elon Musk publicou um vídeo, rodando de forma autônoma com um Model S pelas ruas de Palo Alto, na Califórnia – e disse que seus carros vão pular direto para o Nível 4 ou 5 até o fim deste ano.
Não será fácil. O Nível 4, de alta automação, é um salto e tanto: dispensa totalmente o motorista. Hoje ele está presente em veículos agrícolas e de logística, que rodam devagar em ambientes controlados.
Mercedes e Volvo já têm caminhões desse tipo, com GPS integrado à direção – o da Mercedes, desenvolvido em parceria com a empresa brasileira Lume Robotics, vem sendo testado em mineradoras e plantações de cana de açúcar.
“A gente está focando nas operações em ambientes privados, porque eles são autorregulados. O Brasil não tem uma legislação que permita a operação em vias públicas”, diz o engenheiro Ranik Guidolini, CEO da empresa, fundada em 2019 por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Eles chamaram a atenção pela primeira vez em 2017, quando seu protótipo – uma perua Ford rodando software capixaba – fez uma viagem de teste, rodando 74 km de Vitória a Guarapari, de forma autônoma. Era um veículo Nível 3, com uma pessoa sentada no banco do motorista.
Guidolini faz uma observação interessante, que pode ajudar a entender a estratégia da Tesla. “Os sistemas Nível 3 podem desarmar a qualquer momento, não estão preparados para atuar em todas as situações. Como é muito difícil garantir que o motorista vai estar sempre prestando atenção, algumas empresas preferem ir direto para o Nível 4”, diz. Pode ser mais seguro esperar, e já lançar um produto mais evoluído.
Os táxis autônomos da Cruise e da Waymo, aqueles que recentemente foram autorizados a rodar sem limites em São Francisco, são do Nível 4. No começo de julho, um grupo de ativistas intitulado Safe Street Rebels tentou impedir sua liberação. Eles criaram uma campanha, batizada de Week of Cone (“semana dos cones”), para fazer terrorismo contra os pobres robotáxis.
Espalharam cones de sinalização pelas ruas da cidade – a ideia era assustar os carros, que não saberiam como lidar com isso e acabam empacados no meio das vias, causando transtorno e convencendo as autoridades a recuar.
Segundo os ativistas, a circulação irrestrita de táxis autônomos poderia agravar os congestionamentos e causar acidentes (em maio, um carro da Waymo havia atropelado e matado um cachorro em São Francisco).
Mas os protestos não adiantaram: em 10 de agosto, o governo estadual da Califórnia ignorou os ataques e a resistência da prefeitura da cidade (que era contra liberar os táxis autônomos), e concedeu a autorização.
Aí, no dia seguinte, a bagunça começou.
Música, cimento e confusão
“Eu fiquei gritando da minha janela, para avisar as pessoas. Quem é de fora da cidade não sabe que esses carros não têm motorista”, disse o americano Jeffrey Bilbrey à imprensa local.
Ele presenciou uma cena de filme: dez táxis autônomos da Cruise bloqueando um cruzamento de North Beach, onde mora, na sexta-feira à noite. Os veículos foram chegando, todos vazios, e empacando uns atrás dos outros.
Ficaram assim, com os pisca-alertas ligados, até que a Cruise percebeu o que estava acontecendo – e mandou funcionários correndo até o local, para manobrar e tirar os táxis de lá.
Segundo a empresa, a pane se deu porque ali perto rolava o festival Outside Lands (naquela noite, a atração principal era o cantor Kendrick Lamar), o que concentrou muita gente na mesma área.
As redes de telefonia celular ficaram congestionadas, e os carros da Cruise não conseguiam se comunicar. Isso revela que a tecnologia da empresa não é tão autônoma quanto parece, já que seus veículos dependem de conexão à internet (seja para trocar dados uns com os outros, seja para falar com uma “central”, que monitora a frota).
O fiasco foi registrado em fotos e vídeos, que viralizaram nas redes sociais. “Eu fico preocupado. Porque, se houver uma emergência, os veículos de resgate não vão conseguir passar”, declarou Bilbrey, a testemunha.
De fato. Segundo a prefeitura de São Francisco, a Waymo e a Cruise têm cerca de 600 táxis autônomos operando na cidade – e, ao longo deste ano, antes mesmo da liberação para rodar em qualquer horário, eles impediram a passagem de ambulâncias, bombeiros ou paramédicos 66 vezes.
A Cruise respondeu à acusação de forma indireta, dizendo que seus carros tiveram mais de 168 mil “interações” com veículos de resgate em 2023. Ou seja: percentualmente, o número de vezes em que eles atrapalharam foi muito baixo.
Mas os tropeços dos carros da empresa não se resumiram a isso. “Houve vários incidentes em que eles entraram em áreas bloqueadas, com incêndios ou outras emergências, e nós ficamos desesperados tentando chamar a atenção do veículo, para fazê-lo parar”, declarou Darius Luttropp, vice-diretor do corpo de bombeiros da cidade.
Em 15 de agosto, um carro da Cruise invadiu uma área em obras, e ficou atolado no cimento fresco. Rendeu memes. Mas o pior ainda estava por vir.
Em 17 de agosto, pouco depois das 22h, um Cruise atravessou o cruzamento entre as ruas Polk e Tusk, no bairro Tenderloin, com o sinal verde para ele. Tudo certo. Só que do outro lado vinha um caminhão de bombeiros, com a sirene ligada, a caminho de um incêndio.
“O veículo da Cruise identificou o risco e iniciou uma manobra de frenagem, mas não conseguiu evitar a colisão”, declarou a empresa. O ocupante do táxi foi levado de ambulância até um hospital – mas, segundo a Cruise, não sofreu ferimentos graves.
Naquela mesma noite, um segundo carro da empresa se envolveu num acidente similar: outro veículo avançou um sinal vermelho, no cruzamento das ruas 26 e Mission, e os dois bateram. O robotáxi estava vazio. O motorista do outro carro teve ferimentos leves.
Aquilo foi a gota d’água, e as autoridades decidiram enquadrar a Cruise: mandaram a empresa reduzir imediatamente a frota em 50%, ficando limitada a 50 táxis de dia e 150 à noite, até que a cidade conclua uma investigação sobre a segurança de seus veículos autônomos (a Waymo continua liberada).
As duas batidas têm algo em comum. Elas não foram causadas por falhas no software do carro, mas por uma deficiência mais profunda: sua incapacidade em lidar com imprevistos, como motoristas humanos avançando o sinal.
Se você está dirigindo e vê um caminhão de bombeiros se aproximando, é lógico que dará preferência a ele, ainda que o semáforo esteja verde para você.
Da mesma forma, quando está rodando à noite, você toma mais cuidado ao passar nos cruzamentos – porque sabe que nesse período há mais motoristas bêbados. E por aí vai. Só que o robô não tem essa “malícia”, o que pode ser um problema.
Se é suficiente para causar acidentes em São Francisco, cidade de 800 mil habitantes onde as pessoas dirigem bem devagar e os pedestres nunca atravessam fora da faixa ou com o sinal fechado (até 2022 isso era ilegal, e dava multa de US$ 200), o que poderia acontecer no trânsito caótico de uma metrópole?
Outro porém é que a Cruise e a Waymo ainda são comercialmente inviáveis: os carros são caros, e as empresas têm custos operacionais altíssimos. Por isso, ambas dão prejuízo. Só no primeiro trimestre deste ano, a Cruise queimou US$ 561 milhões do dinheiro da GM. Para alcançar lucro, ela precisaria ter uma frota muito maior.
Mas, para que os carros autônomos conquistem as ruas e avenidas do mundo, não basta que eles sejam capazes de dirigir perfeitamente. Será preciso ir além – e criar veículos que consigam lidar com absolutamente qualquer situação, incluindo coisas que não estão previstas no software.
É o patamar máximo de automação, o chamado Nível 5. “Ainda temos um longo caminho para chegar nesse cenário, tão popularizado pelos filmes”, admite Evandro Bastos, gerente de produtos automotivos da Mercedes-Benz Brasil.
O Nível 5 é difícil porque, embora ele use sistemas parecidos com os do Nível 4, há uma diferença crucial: a confiança, que agora precisa ser absoluta.
Como o carro toma conta de tudo, os veículos dessa categoria poderiam rodar até sem motorista a bordo – transportando crianças, por exemplo. Então eles não podem falhar nunca. As empresas de automóveis só vão se arriscar no Nível 5 quando as tecnologias envolvidas alcançarem um grau de confiabilidade extremo, comparável ao da aviação comercial. Isso pode, e vai, levar tempo.
Mesmo quando/se chegarmos lá, restará um último problema. Uma questão filosófica que foi proposta há mais de 50 anos, e se refere a algo ainda mais antigo: o “dilema do bonde”.
“Só me diga o que fazer”
Um homem aponta para um cartaz na parede, que mostra um veículo prestes a tomar uma decisão: ou ele segue em frente e atropela três crianças, ou desvia e mata um adulto.
Observando a imagem, um carro entristecido diz: “Por favor, não me obrigue a escolher! Só me diga o que fazer”. Essa é uma das tirinhas publicadas no site Evil AI Cartoons, criado pelo cientista da computação Iyad Rahwan.
Em 2018, Rahwan foi um dos líderes da Moral Machine, uma pesquisa online realizada pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e pela Universidade Harvard para descobrir o que, na opinião humana, os carros autônomos deveriam fazer em 13 situações extremas – nas quais desviar de uma pessoa resultaria no atropelamento de outra, mesmo acionando os freios.
A Moral Machine atualizou para a era da inteligência artificial o “dilema do bonde”, criado pela filósofa britânica Philippa Foot na década de 1960 (nele a pessoa deveria escolher entre matar cinco pessoas, que estavam amarradas nos trilhos, ou puxar uma alavanca para desviar o bonde, que atropelaria uma só).
A pesquisa do MIT coletou ao todo 40 milhões de respostas, de mais de 100 países. Os participantes fizeram algumas escolhas controversas, como salvar executivos e atletas em detrimento de mendigos ou pessoas obesas [veja infográfico acima].
Também colocaram, na escala de prioridades, indivíduos classificados pela pesquisa como “criminosos” abaixo dos cachorros – mas acima dos gatos. Se programados na memória de um carro autônomo, julgamentos desse tipo certamente causariam polêmica.
Os resultados(2) também mostraram diferenças entre as regiões. As pessoas da América Latina deram mais importância à idade – e disseram que o carro poderia atropelar um idoso para salvar uma criança. Os participantes da Ásia não concordaram.
Já os países da América do Norte e da Europa revelaram preferência pela inação: para eles, o carro deveria simplesmente continuar na trajetória que já estava, sem tomar nenhuma decisão moral. Tem sua lógica.
“No caso de ter que escolher entre a vida de uma pessoa mais jovem e de uma senhorinha, por exemplo, alguém poderia alegar que ela já viveu a vida dela. Mas nós não somos Deus para decidir isso. É um dilema que a engenharia não vai conseguir resolver”, afirma o engenheiro Camilo Adas, consultor da SAE Brasil.
Também há quem argumente o seguinte: nas frações de segundo que antecedem um acidente, nenhum motorista humano tem tempo de fazer escolhas assim – e na prática, então, as máquinas não irão se deparar com elas.
“Confundir experimentos mentais com a realidade pode retardar a implantação de veículos [autônomos] bem mais seguros do que os motoristas humanos”, escreveu Karl Iagnemma, CEO da Motional (joint venture entre Hyundai e Aptiv que opera um serviço de robotáxi entre cassinos em Las Vegas), num artigo sobre o tema.
“Eles nunca ficam bêbados, sonolentos ou distraídos”, lembrou. Ou seja: quanto maior a proporção de carros robóticos nas ruas, menos imprevisível o trânsito. E, com menos acidentes, haverá menos dilemas morais.
Mas a sociedade ainda enxerga os veículos autônomos com desconfiança. Uma pesquisa(3) realizada em março pela American Automobile Association revelou que 68% das pessoas nos EUA dizem ter medo deles – um salto de 13 pontos percentuais em relação a 2022.
O receio aumentou porque, conforme veículos robotizados vão chegando às ruas, é inevitável que haja alguns acidentes – inclusive porque eles dividem espaço com motoristas humanos. Até hoje, os EUA contabilizaram 419 colisões envolvendo veículos semi ou totalmente autônomos, com 18 óbitos.
Toda morte é uma tragédia. Mas esses números são minúsculos perto do massacre operado pelos carros convencionais e seus falhos motoristas de carne e osso. Segundo a OMS, há 1,3 milhão de mortes no trânsito(4) por ano – e o número de feridos pode ser até 38 vezes maior.
No Brasil, o último levantamento do Ministério da Saúde aponta 33.813 mortes em acidentes de trânsito ao longo de 2021. E, segundo dados da OMS, nove em cada dez acidentes de carro no Brasil são causados por erro humano. Mesmo não sendo perfeitos, os carros autônomos poderiam reduzir muito o problema.
E revolucionar a vida nas cidades. Se os robotáxis se tornarem baratos e confiáveis, um dia ninguém mais precisará ter carro: haverá uma rede de veículos autônomos, sempre disponíveis, se deslocando da forma mais eficiente possível.
Isso permitirá atender à demanda com bem menos veículos – logo, menos congestionamentos. O trânsito não será mais um tormento, e o carro deixará de ser um vilão. Mas isso levará tempo, até porque não depende só de tecnologia.
Os primeiros elevadores automáticos, em que você mesmo escolhe o andar apertando um botão, foram inventados no começo do século 20. Mas as pessoas tinham medo. Eles só começaram a se popularizar em 1945, logo após o fim da Segunda Guerra, quando os 15 mil ascensoristas de Nova York decretaram uma greve que parou a cidade.
Isso finalmente convenceu a população, por linhas tortas, de que não havia nada a temer. Sem ascensoristas, o elevador ficou mais barato, onipresente e “invisível” – mal pensamos nele, tanto que nem o consideramos um meio de transporte. Só mais uma peça, discreta e eficiente, da vida moderna. Talvez, um dia, os carros também sejam assim.
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Fontes (1) Standing general order in crash reporting – For incidents involving ADS and Level 2 ADAS. NHTSA, 2023. (2) The Moral Machine Experiment. I Rahwan e outros, 2019. (3) AAA: Fear of Self-Driving Cars on the Rise. American Automobile Association, 2023. (4) Global Plan for the Decade of Action for Road Safety 2021-2030. OMS, 2021.
A nova fase do carro autônomo Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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