O que há em comum entre dependentes químicos, consumidores ávidos de pornografia e indivíduos com compulsão alimentar?
Para responder a essa pergunta, é importante começar contextualizando o conceito de comportamento, conforme definido por Irenäus Eibl-Eibesfeldt, como a repetição de padrões ao longo do tempo.
Nossos padrões de comportamento podem ser categorizados de várias maneiras. Podemos classificá-los como inatos, relacionados à nossa espécie, ou adquiridos por meio de aprendizado.
Além disso, a intensidade com que esses comportamentos se manifestam e o grau de automatismo associado a eles podem levar a uma distinção adicional entre hábitos, compulsões e vícios.
É neste ponto que desejo me aprofundar hoje.
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A origem dos vícios
Para compreendermos o que são comportamentos viciosos, é fundamental conhecer, em primeiro lugar, os comportamentos motivados, como fome, sede, sexo, etc., que são regulados por uma estrutura situada no centro do cérebro, conhecida como hipotálamo.
Esses comportamentos atendem a aspectos de natureza biológica e psicológica, impulsionados pelos estados motivacionais e regulados por duas forças: a homeostasia (equilíbrio do organismo) e a busca por prazer.
Dessa forma, nossas ações podem ser divididas em apetitivas (aprendidos) e consumatórias (automáticos e reflexos).
As motivações relacionadas ao prazer podem evoluir para compulsões, que não estão restritas exclusivamente ao uso de substâncias lícitas ou ilícitas. Elas podem estar relacionadas, por exemplo, a busca por recompensas ou reforços positivos.
É por meio desse racional que dependências e transtornos alimentares são estabelecidos com otranstornos psiquiátricos.
O que há de nada trivial nessa história é que uma série de outros padrões, como a compulsão por compras, o consumo de pornografia, a navegação excessiva na Internet, o binge watching, entre outros, compartilham dos mesmos substratos neurais associados aos vícios, prejudicando a saúde física e mental dos indivíduos. No entanto, não configuram nos principais manuais diagnósticos.
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A compreensão das bases neurológicas dos comportamentos viciosos, especialmente no que diz respeito ao desejo pelo objeto associado à recompensa, nos proporciona uma visão mais profunda e compassiva desses problemas.
Nesse contexto, o impulso observado, conhecido como craving, pode ser explicado por meio da saliência de incentivo do sistema associado a via do “querer” (o desejo pela experiência) sobre o sistema da via do “gostar” (o prazer obtido ou a recompensa real). Em outras palavras, é possível querer sem gostar.
Pode parecer que estamos nos afastando do assunto principal, mas fique tranquilo! Meu objetivo continua sendo tornar a complexidade do cérebro mais acessível.
Quando menciono saliência de incentivo, estou me referindo à transformação de um estímulo inicialmente neutro em um estímulo atraente e desejável.
O processamento da motivação e do prazer em nosso cérebro envolve o sistema de recompensa do cérebro.
A dependência surge da estimulação excessiva e repetitiva dos neurônios dopaminérgicos envolvidos neste circuito, o que leva a uma progressiva redução na sensibilidade a essa estimulação.
Essa queda na sensibilidade é um sintoma da diminuição dos receptores dopaminérgicos nas sinapses (conexões entre os neurônios), um processo inicialmente fisiológico para lidar com o excesso de neurotransmissores.
No entanto, tal redução implica em um aumento do comportamento consumatório, a fim de alcançar a mesma sensação de prazer experimentada inicialmente.
É com base nisso, que acrescento à minha reflexão que o ato de desejar nem sempre se traduz em ação. Muitas vezes, o prazer decorrente do desejo de vivenciar uma experiência é muito maior do que a recompensa real obtida.
Sabendo que os vícios são desregulações do sistema de motivação e exigem mais do que força de vontade para serem superados, convido-lhe a repensar as políticas públicas e atuação de profissionais interdisciplinares direcionadas aos adictos, às compulsões alimentares e sexuais.
Afinal, o sistema de recompensa também é ativado quando vencemos os desafios e quando vemos as pessoas que amamos felizes.
*Carla Tieppo é neurocientista, professora e pesquisadora na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, coordenadora dos cursos de pós-graduação em Neurociência e o Futuro Sustentado de Pessoas e Organizações e Neurociência Aplicada à Educação.
Motivações compulsórias: de onde vêm os vícios? Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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