Este é o 25º texto do blog Deriva Continental, escrito por André Weissheimer de Borba, da UFSM, Marcelo Lusa, da Unipampa, e Felipe Guadagnin, do Geoparque Caçapava Aspirante UNESCO
Caçapava do Sul é um município do centro-sul do Rio Grande do Sul, reconhecido por lei como a “capital gaúcha da geodiversidade”. Uma sala de aula ao ar livre, a cidade sempre funcionou como centro logístico de pesquisas de campo para as escolas de geologia do estado.
Com 3 mil km2 de área, Caçapava (o “do Sul”, na verdade, nunca pegou) possui conjuntos de elevações que chamam a atenção. São rochas resistentes ao intemperismo, como as serras de Santa Bárbara, Segredo e Guaritas. A zona urbana possui 33 mil habitantes e fica no alto de Caçapava, construída sobre granitos.
Essa região começa a desenvolver o geoturismo, esportes de aventura, olivicultura (cultivo de oliveiras), além da pecuária sustentável. Somado ao seu patrimônio geológico, Caçapava se candidata ao Programa de Geoparques Mundiais da UNESCO.
O maior destaque de Caçapava são as rochas sedimentares e vulcânicas da “Bacia do Camaquã”. Esse espesso pacote de rochas (que pode chegar a 8 quilômetros de espessura) é o mais importante, mais completo, e mais estudado registro da chamada “fase de transição da plataforma sul-americana”, uma elaboração do pesquisador Fernando Flávio Marques de Almeida, que foi um expoente da geologia brasileira.
Essa fase de transição significa o seguinte: inicialmente, aquele ambiente tinha grandes cadeias de montanhas, formadas por aproximações e colisões continentais; daí, em torno de 600 a 500 milhões de anos atrás, a região começou a transicionar para um lento afundamento da crosta em bacias continentais, praticamente sem influência das placas tectônicas. A Bacia do Camaquã é o registro geológico da fase de transição entre esses dois ambientes contrastantes.
A Bacia tem vários ambientes: ela começa com depósitos marinhos e costeiros (Grupo Maricá) nas proximidades de uma zona de colisão tardia entre continentes; também tem uma série de bacias tectônicas profundas, isoladas, preenchidas por depósitos marinhos, lacustres, com vulcanismo associado (Grupo Bom Jardim).
Depois, há depósitos fluviais grossos e imaturos, o que significa que não há muito transporte de sedimentos (Grupo Santa Bárbara). Tudo isso culmina em uma bacia do tipo rifte, com outro evento vulcânico já quando o continente Gondwana havia se estabilizado, com depósitos continentais, grandes sistemas de rios e dunas de um deserto (Grupo Guaritas).
Fonte de minérios
Caçapava ainda possui um modelo internacionalmente reconhecido de mineralização de sulfetos metálicos, que contém cobre, ouro, chumbo, prata e zinco. A mineralização está diretamente ligada aos eventos vulcânicos, que serviram tanto de fonte de metais acumulados quanto de calor para as soluções fluidas.
Essas soluções hidrotermais (fluidos quentes) “mexeram” os metais das rochas hospedeiras e os precipitaram nas redes de fraturas (também conhecidos como “filões”, sendo estes os mais importantes economicamente naquela região). Houve também disseminação de sulfetos metálicos na porosidade das rochas sedimentares dos grupos Bom Jardim e Santa Bárbara, que ocorrem nas Minas do Camaquã.
Esse contexto geológico, que se tornou uma das principais reservas de cobre do país, está associado também a um singular patrimônio cultural que inclui edificações, histórias e memórias – e registra 120 anos de evolução da mineração de metais e da ocupação daquela vila operária.
Fósseis e microfósseis
Caçapava possui diversos fósseis da megafauna do Pleistoceno (período entre 2,588 milhões e 11,7 mil anos). Por lá já foram identificados três gêneros de preguiças terrícolas (Lestodon, Eremotherium, e a maior delas, Megatherium), além de tatus-gigantes e gliptodontes, entre outros animais que alcançavam dimensões incríveis.
Essas descobertas foram realizadas pelo incansável professor de geografia Eduardo Marin (1923-2021). A equipe do Geoparque Caçapava Aspirante UNESCO realizou, em conjunto com a TV Campus da UFSM, o premiado documentário “A descoberta do gigante”, onde o professor Eduardo, já com 96 anos de idade, conta todos os detalhes de suas descobertas.
Pesquisas mais recentes também revelaram a presença de microfósseis nos depósitos da Bacia do Camaquã. Tratam-se de fragmentos de animais do Ediacarano (período entre 630 milhões e 542 milhões de anos), associados com revestimentos formados por bactérias. Eles são encontrados tanto em ambiente marinho quanto continental.
Esses são os fósseis mais antigos do Rio Grande do Sul até o momento. Eles permitem correlações e comparações com outras ocorrências desses microfósseis pelo mundo, publicadas em revistas de grande destaque internacional.
Paisagem
As sucessões da Bacia do Camaquã estão expostas em formas de relevo de visibilidade e destaque na paisagem, com grande contraste entre as rochas avermelhadas e a vegetação de campos nativos, arbustos e florestas.
Além do valor cênico e da apreciação estética, essas elevações (chamadas de “cerros” ou “pedras” no Rio Grande do Sul) são também uma sala de aula ao ar livre para os processos geomorfológicos, sobretudo em dois geomonumentos. O primeiro é a Serra do Segredo, uma pequena cuesta que começa com arenitos tabulares e culmina em domos arredondados de conglomerado separados por estruturas tectônicas que concentram o intemperismo.
O segundo são as Guaritas um planalto dissecado com cerros ruiniformes, onde ocorrem muitas cavidades e abrigos, além de estruturas geológicas chamadas “marmitas” e “panelas”, que se assemelham a buracos no chão.
Durante muito tempo, o modelo de desenvolvimento baseado na agricultura mecanizada e no plantio de commodities, como a soja, desprezou territórios pedregosos e de relevo movimentado, deixando-os marginalizados e subdesenvolvidos.
Hoje, por causa da geologia e relevo espetacular, Caçapava do Sul vive uma nova realidade. A valorização e o uso bem planejado e sustentável desse patrimônio geológico, no âmbito da estratégia do Geoparque Caçapava Aspirante UNESCO, têm o potencial de recuperar os indicadores socioeconômicos e humanos do município. Essa estratégia contempla conservação da natureza e do patrimônio cultural, geração de trabalho e renda através do geoturismo, educação geopatrimonial de qualidade, estímulo à criação e qualificação de empreendimentos locais, bem como um foco permanente na qualidade de vida das pessoas de Caçapava do Sul.
Saiba mais:
- Artigo científico, publicado na revista Nature, de Ilana Lehn e colaboradores, sobre os microfósseis da Bacia do Camaquã: https://www.nature.com/articles/s41598-019-46304-7
- Site do Geoparque Caçapava Aspirante UNESCO: https://geoparquecacapava.com.br/, com acesso ao dossiê de candidatura a Geoparque Mundial UNESCO, em português, na página inicial;
- Modelos 3D, obtidos por imageamento com drone, de alguns geomonumentos interessantes de Caçapava do Sul:
Pedra da Abelha: https://sketchfab.com/3d-models/pedra-da-abelha-bee-stone-098b7778ce084b568bae5b2e798b9529
Pedra do Segredo: https://sketchfab.com/3d-models/pedra-do-segredo-5de1795d3e034716a871ced81583d525
- Redes sociais:
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Caçapava guarda os fósseis mais antigos do Rio Grande do Sul Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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