sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Falta ferro, sobra anemia

Faz séculos que o ferro está no imaginário da humanidade como símbolo de força e engenhosidade. Das antigas lendas celtas e da mitologia greco-romana, vieram os deuses ferreiros Goibniu e Hefesto (ou Vulcano). Dos quadrinhos e do cinema, uma das estrelas do universo Marvel a estampar de telas a camisetas é o cerebral Homem de Ferro. Cheios de habilidades, esses seres com superpoderes personificam também vigor e proteção. E é algo bem parecido com isso o que nos entrega o ferro das carnes, dos feijões e das folhas verde-escuras.

Para além da fantasia, esse mineral é uma das peças centrais para o organismo funcionar a pleno vapor. Só que, no mundo real, digamos que ele não está com essa bola toda no prato do povo (veja as fontes entre os alimentos ao longo da reportagem). Faltando ferro, quem teima em aparecer é uma conhecida vilã, a anemia.

Pela definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), a condição se manifesta quando a concentração de hemoglobina, a proteína dos glóbulos vermelhos do sangue, fica aquém dos níveis adequados. Isso provoca desânimo, apatia, palidez, dor de cabeça e pode comprometer o crescimento infantil, o cérebro e a imunidade.

Embora o déficit de outros nutrientes possa desencadear tipos diferentes de anemia, a versão ferropriva é a mais prevalente. Como a classificação denuncia, ela acontece pela privação de ferro. Grávidas, idosos e crianças estão entre as principais vítimas. “A anemia continua sendo uma urgência médica”, afirma o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, diretor do Centro de Dificuldades Alimentares do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo.

O especialista é um dos autores de um consenso sobre a doença elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). No documento recém-atualizado, ganha ênfase a prevenção do quadro desde cedo. “O estímulo ao aleitamento materno exclusivo até os 6 meses e a atenção especial na fase da alimentação complementar, marcada pela introdução de comida sólida, são primordiais”, destaca Fisberg.

+ Leia também: Beterraba é rica em ferro? Mitos e verdades sobre alimentos e anemia

Também professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o médico acompanha a evolução nutricional da garotada há algumas décadas e observa uma queda na incidência geral do problema. “Políticas públicas, como a de enriquecimento de farinhas, além de suplementação profilática para gestantes e bebês, têm ajudado, mas a situação ainda é muito preocupante”, avalia.

Pois uma nova revisão de estudos, coordenada pelo pediatra e nutrólogo Carlos Alberto Nogueira de Almeida, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), revela que 33% dos brasileirinhos apresentam anemia ferropriva. Para chegar a esse dado, o professor e equipe analisaram 134 pesquisas, feitas entre 2007 e 2020, somando dados de um total de 46 978 meninos e meninas de até 7 anos de idade. “Os números são altos em todas as regiões do país e reforçam a importância de adotar estratégias para frear o problema”, conclui Almeida.

O primeiro passo é não deixar que falte ferro já no período do pré-natal para suprir necessidades da mamãe e do bebê. “Mas, infelizmente, durante a pandemia, observamos uma baixa nas visitas das gestantes aos consultórios”, observa o médico.

Para piorar, a crise da Covid-19 também tem prejudicado o estado nutricional de muita gente. Apesar de o planeta estar cada vez mais inflado pela obesidade, nem sempre a comida é de qualidade, privando o corpo de substâncias vitais como vitaminas e minerais.

“As deficiências tendem a surgir em todas as faixas de idade”, nota Glaucia Pastore, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O drama é que as repercussões da anemia chegam a se arrastar pela vida.

“Crianças podem ter danos cognitivos que se refletem no desempenho escolar. Assim, indivíduos que seriam gênios acabam não atingindo todo o seu potencial”, lamenta Almeida. É a carência de ferro levando consigo mentes brilhantes.

<span class="hidden">–</span>Gráfico: Glenda Capdeville/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Gráfico: Glenda Capdeville/SAÚDE é Vital

Problema preocupante

Em uma pesquisa com mais de 6 mil pessoas de 11 países da América Latina, a Health & Wellness 2021, a anemia figurou como uma das maiores preocupações do público, segundo a nutricionista Maria Fernanda Elias, gerente de comunicação da DSM, empresa holandesa de ingredientes responsável pelo levantamento.

Cansaço e falta de energia também foram mencionados pelos participantes do estudo, que buscou entender a saúde física e mental dos latino-americanos em tempos de pandemia.

Neste período particularmente turbulento, ganhou evidência um dos papéis prestigiados do ferro, o de reforço à imunidade. “O mineral atua no organismo em reações químicas necessárias para a destruição de patógenos e é importante para a produção das nossas células de defesa”, expõe a nutricionista Bruna Nogueira, consultora da Jasmine Alimentos.

+ Assine a VEJA SAÚDE a partir de R$ 12,90 mensais

A lista de atribuições da substância é extensa. A função mais conhecida é provavelmente a de ajudar a transportar oxigênio pelo sangue pelas já citadas hemoglobinas. Daí a pasmaceira quando some o nutriente. Outra atuação de renome se dá no cérebro, onde o ferro participa da fabricação de neurotransmissores que regulam o humor e a sensação de bem-estar.

Só por essas duas facetas já dá para entender por que a carência pode comprometer a memória e outras habilidades cognitivas. “Fadiga, pouca concentração, irritabilidade e dor de cabeça são alguns dos sintomas da deficiência”, enumera a nutricionista Gabriela Parise, da clínica NutriOffice, na capital paulista.

Embora o micronutriente seja indispensável em todas as idades e etapas da vida, alguns perfis e fases pedem maior cuidado com o consumo e o aproveitamento pelo corpo. “Além das crianças, gestantes, idosos e pessoas que seguem dietas restritivas precisam de um olhar cauteloso”, ressalta a nutricionista Maísa Mota Antunes, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

<span class="hidden">–</span>Gráfico: Glenda Capdeville/SAÚDE é Vital

Eles pedem mais atenção

Alguns grupos estão mais suscetíveis à deficiência de ferro no organismo

+ Bebês e crianças: nos primeiros anos, durante a fase de desenvolvimento acelerado, ocorre um aumento nas demandas pelo mineral, muitas vezes suplementado.

+ Gestantes: o nutriente é crucial para a formação de tecidos e órgãos do bebê. Sem contar o aumento no volume de sangue e as funções no corpo materno.

+ Idosos: quem tem mais de 65 anos pode apresentar carências, sobretudo se há problemas que prejudicam o consumo ou a absorção das fontes de ferro.

+ Veganos: como o ferro dos vegetais tem uma taxa de aproveitamento mais baixa que o das carnes, é importante recorrer à orientação nutricional.

Diagnóstico preventivo

Para bater o martelo sobre o déficit do mineral, costumam ser pedidos exames de sangue, que delatam a anemia a partir da análise de proteínas como a hemoglobina e a ferritina.

“Mas é importante já estar atento aos estágios anteriores à anemia em si, e podemos fazer isso melhorando o acompanhamento e o controle sobretudo das populações mais vulneráveis”, recomenda o nutricionista Eduardo De Carli, pós-doutorando na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

+ Leia também: A dieta parceira da gravidez

Em algumas situações, aliás, o ferro do prato não é suficiente para conter ou reverter a ameaça — e, aí, a saída é suplementar mesmo. Tal providência durante a gravidez, por exemplo, faz parte das diretrizes mais modernas. É que, na gestação, há um incremento no volume de sangue no organismo e boas doses de ferro são requisitadas para a placenta, órgão vital ao desenvolvimento do bebê — o uso das cápsulas costuma se estender na fase da amamentação.

“Mulheres com fluxo menstrual intenso também podem estar no grupo de risco para deficiência”, observa Maria Fernanda. Assim como veganos e doadores habituais de sangue. Descobertas mais recentes incluem na lista de maior exposição à anemia pessoas com obesidade e doenças inflamatórias crônicas.

Tem tudo a ver com um mecanismo de defesa do corpo, uma vez que alguns agentes infecciosos são ávidos por ferro. Quando há inflamação, um sinal de alerta no organismo, ocorre uma reação para regular o uso do mineral. “Assim, as reservas não são mobilizadas e a absorção intestinal diminui, fazendo com que o micronutriente deixe de ser aproveitado”, descreve De Carli. No meio da bagunça, a preciosa substância acaba desperdiçada.

Por falar na assimilação do ferro, zelar pelo intestino e a microbiota é outra condição básica para esse e outros nutrientes ganharem a circulação e tomarem o rumo certo. Daí que frutas, hortaliças e probióticos são atores coadjuvantes nessa história.

<span class="hidden">–</span>Gráfico: Glenda Capdeville/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Gráfico: Glenda Capdeville/SAÚDE é Vital

Virando o jogo contra a anemia

O plano de combate à anemia passa por escolhas individuais mas também estratégias coletivas, que incluem políticas públicas voltadas a alimentação saudável e suplementação em grupos de risco e fortificação de alimentos pela indústria.

“Um dos desafios nesse sentido é encontrar o ferro em um formato biodisponível e que não altere as características do produto, além de ser isento de gosto”, contextualiza Melissa Carpi, engenheira de alimentos da Jasmine.

Mas a parte mais saborosa do enredo é a das táticas à mesa mesmo. Ainda que feijões, folhas verde-escuras e sementes ofereçam ferro, sua biodisponibilidade — isto é, a capacidade de ele ser aproveitado — é menor quando comparada à de fontes animais.

Isso se deve ao fato de os vegetais contarem com ferro não heme, enquanto as carnes oferecem o tipo heme, molecularmente mais adequado ao processamento pelo organismo. A chave para alcançar as recomendações com equilíbrio é a variedade no menu.

Alguns macetes, é verdade, favorecem o aproveitamento do ferro vegetal. Tostar castanhas reduz os compostos que dificultam a absorção do mineral. Pelo mesmo motivo, verduras como espinafre devem ser cozidas — só cabe ponderar que a hortaliça que alçou fama com Popeye não apresenta altas doses da substância.

Outro alimento sempre lembrado, talvez pela cor, é a beterraba, mas, ainda que seja supernutritiva, perde feio para os feijões em matéria de anemia.

+ Leia também: Hemocromatose hereditária: a doença do excesso de ferro no sangue

Sobre a família das leguminosas, um ensinamento clássico e valioso é o remolho. A sugestão é deixá-las na água por pelo menos oito horas antes de mandar à panela. Boa pedida para podar fatores antinutricionais e ficar com o ferro e o que mais importa. Outra sacada para captar o mineral é combinar vegetais ferrosos com os fornecedores de vitamina C — a famosa laranja da feijoada.

Na contramão, a ingestão simultânea de café ou cálcio dos laticínios atrapalha a arrecadação da substância. É tudo química, e, dependendo da necessidade, entender e aplicar alguns dos seus truques é um jeito esperto de não deixar o ferro faltar.

<span class="hidden">–</span>Gráfico: Glenda Capdeville/SAÚDE é Vital

O dedo dos genes

Para além das inadequações na dieta, fatores genéticos podem explicar a eficácia na absorção do ferro, assim como seu aproveitamento e o estoque nas células. A talassemia e a doença falciforme são alguns dos exemplos de males marcados por alterações prejudiciais nos glóbulos vermelhos.

E tem uma condição que seria o oposto da anemia, a hemocromatose hereditária. Ela provoca acúmulo de ferro, o que pode lesar órgãos como fígado e cérebro. Hemogramas ajudam a flagrar o problema, tratado com ajustes no cardápio e doações de sangue.

<span class="hidden">–</span>Gráfico: Glenda Capdeville/SAÚDE é Vital

 


Falta ferro, sobra anemia Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário