Texto: Maria Clara Rossini, de Cabo Canaveral
Edição: Bruno Vaiano
Design: Carlos Eduardo Hara
Primeiro, vem a luz. Estamos acostumados a ver o céu clareando ao longo de algumas horas, conforme o Sol nasce. Mas o lançamento de um foguete torna esse processo instantâneo. Quase bíblico. O fogo faz a noite virar dia em meio a um silêncio absoluto.
Sim: silêncio. Depois de acompanhar tantos foguetes subirem no YouTube, é chocante assistir presencialmente a um lançamento em Cabo Canaveral, na Flórida – e descobrir que ele começa mudo. Por questões óbvias de segurança, a área reservada ao público fica a exatos 6,27 km do Falcon 9 da SpaceX, o primeiro veículo reutilizável capaz de pôr pessoas na órbita da Terra. Dessa distância, o som dos motores chega após 18 segundos.
Com o ruído, vem o tremor. Ele balança a arquibancada, faz o peito vibrar e dá uma leve dor de cabeça – que também é culpa da ansiedade de ver quatro humanos acelerando até 28 mil km/h. São passageiros diferentes: turistas, sem associação com agências espaciais ou Forças Armadas de qualquer país. O dia 15 de setembro de 2021 marca a primeira vez na história que uma tripulação sem nenhum astronauta profissional entrou na órbita da Terra.
Nenhum deles precisou pilotar. Tudo foi controlado a distância. À medida que o foguete subia, parecia se transformar em uma estrela cadente. Essa era a aparência quando o primeiro estágio se separou, a 80 km de altitude. Ele é reaproveitável: voltou para a superfície e aterrissou suavemente, na vertical, em uma plataforma no mar. O segundo estágio continuou até 200 km de altitude. Depois de fazer sua parte, soltou-se e caiu na água mesmo – esse é descartável.
Restou apenas a cápsula cônica que abriga os turistas, chamada Crew Dragon. Nesse momento, ela já tem velocidade para chegar e se estabilizar em sua órbita a 575 km de altitude. Lá, passou três dias dando uma volta na Terra a cada 90 minutos, com seus ocupantes fazendo lives e alguns experimentos. Depois, reentrou na atmosfera e pousou no Atlântico com auxílio de um paraquedas, old style.
Embora o equipamento seja projetado e fabricado pela empresa de Elon Musk, quem pagou a conta foi um outro bilionário: Jared Isaacman, fundador da empresa de pagamentos Shift4 Payments. Além dele, outros três convidados simbólicos estavam a bordo. Daí veio o nome da missão: Inspiration 4.
Essa foi a terceira missão de turismo espacial em 2021. Richard Branson, fundador da Virgin Galactic, e Jeff Bezos, fundador da Amazon e da Blue Origin, fizeram suas estreias dois meses antes da Inspiration 4, mas com foguetes que não entram em órbita: “apenas” sobem a mais ou menos 100 km de altitude (dez vezes mais que um avião). E tem mais até o fim do ano. A Blue Origin planeja levar outros quatro turistas em outubro. Em dezembro, o bilionário Yusaku Maezawa passará 12 dias na Estação Espacial Internacional (ISS), que orbita 400 km acima das nossas cabeças. Entre 2001 e 2009, o espaço recebeu uma média humilde de um bilionário por ano – número que deve quintuplicar em 2021.
O boom recente do turismo espacial, obra do setor privado, é o passo mais relevante já dado no sentido de tornar viagens espaciais mais baratas, seguras e viáveis para não especialistas – uma história que começou, aos trancos e barrancos, ainda nos anos 1980.
A pré-história
Os primeiros astronautas (ou cosmonautas, na Rússia, ou taikonautas, na China) eram militares, geralmente pilotos de caça, que treinavam por décadas. Astronautas de profissão. Civis, começando por um político e um figurão do complexo militar-industrial americano, só subiram nos anos 1980, a bordo dos ônibus espaciais da Nasa – veja a linha do tempo na página 42. Esses veículos parcialmente reaproveitáveis decolavam na vertical, acoplados a dois foguetes, e aterrissavam como um avião – os foguetes ficavam pelo caminho.
Em 1984, a agência anunciou o Projeto Professor no Espaço, com o intuito de mandar educadores para órbita – e popularizar mais as missões espaciais, para garantir mais dinheiro do governo. A primeira selecionada foi a professora de história Christa McAuliffe, que transmitiria aulas diretamente da órbita da Terra para milhões de crianças. Isso nunca aconteceu. Em janeiro de 1986, o ônibus espacial Challenger explodiu com ela e outros seis astronautas profissionais a bordo, 73 segundos após a decolagem.
O trauma encerrou o projeto com os professores e paralisou a operação dos ônibus espaciais por três anos. Em 2003, o ônibus espacial Columbia sofreu uma segunda tragédia ao desintegrar durante o retorno à Terra – e o programa de ônibus espaciais acabou em 2011 sem jamais gerar a economia que o uso de naves reaproveitáveis prometia. Para terem um impacto financeiro satisfatório em comparação aos foguetes descartáveis, os ônibus precisariam voar com frequência muito maior do que foi possível na prática.
Foi só na virada do milênio que começou o turismo espacial de fato, na forma de uma diversão para bilionários. A Space Adventures envia turistas ao espaço desde 2001. O primeiro foi Dennis Tito, que desembolsou US$ 20 milhões para ser o primeiro curioso na ISS. A maior parte da grana vai para o governo russo, que opera os lançamentos a partir de sua base, no Cazaquistão.
Tito e os demais clientes subiram na cápsula Soyuz, o grande trunfo da URSS que restou da Guerra Fria. Esse modelo não sofre acidentes fatais desde 1967, e foi o único meio de transportar astronautas até a ISS entre 2011 e 2020 – até a Nasa usava tecnologia russa para mandar os americanos. Ao longo de dez anos, a Space Adventures transportou sete ricaços até a órbita.
Espaço, pero no mucho
O Centro Nacional de Pesquisa e Treinamento Aeroespacial (Nastar, na sigla em inglês) oferece pacotes de treinamento para futuros viajantes espaciais. O curso inclui um simulador de força G – que expõe o indivíduo à aceleração brutal do foguete. Um astronauta de verdade passa por dois anos de treinamento; um turista, dois dias. “Não há muito o que fazer além de relaxar e aguentar as forças de lançamento”, disse Glenn King, diretor da Nastar, em entrevista à agência de notícias France-Presse. Ele diz já ter treinado cerca de 400 pessoas com passagens reservadas nos voos da Virgin Galactic. Da última vez em que abriram as vendas, um ticket custava US$ 450 mil.
É bom lembrar que essas passagens, na verdade, não são exatamente para o espaço. Branson atingiu 85 km de altitude no rolê inaugural da Virgin. É o suficiente para comprovar com os próprios olhos que a Terra é redonda, mas a Federação Internacional de Aeronáutica (FIA) considera que o espaço começa a 100 km. Os EUA são um dos poucos países que reconhecem 80 km como fronteira. Onze dias depois, a Blue Origin deixou a concorrente para trás. Com Bezos a bordo, a cápsula atingiu 107 km.
Essas convenções são artificiais, claro: a atmosfera se rarefaz aos poucos no vácuo; daria para traçar a linha em qualquer altitude razoável. A questão é outra: nem Bezos, nem Branson entraram em órbita. Ao contrário da Inspiration 4, que deu quase 50 voltas no planeta ao longo dos três dias de missão, eles dois subiram e caíram. Branson passou uma hora embarcado; Bezos, dez minutos.
Vale meio milhão de Bidens? Para muita gente, o chamariz (além da vista pela janelinha) é sentir a ausência de peso ou imponderabilidade – popularmente chamada de “gravidade zero”, ainda que este termo seja impreciso, pois a gravidade não vai realmente embora.
Uma distância de 80 km, 100 km ou 500 km não elimina a atração exercida pela Terra. “Se você medisse seu peso no topo de uma torre de 400 km, só estaria 10% mais leve do que na superfície”, diz Marcelo Zanetti, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). No caso dos voos suborbitais, o segredo é que, após chegar ao ápice da trajetória, eles entram em queda livre.
Os passageiros não sentem o próprio peso dentro da nave do mesmo jeito que você não sentiria se pudesse pular de um prédio sem se machucar. Com uma diferença: ao cair do prédio, seu corpo pressiona o ar que está embaixo, e esse vento lembra você da real situação. A cápsula, por outro lado, é lacrada. Tudo lá dentro – inclusive o ar – está caindo na mesma velocidade que os tripulantes. E coisas que estão na mesma velocidade ficam paradas uma em relação à outra.
Você talvez esteja se perguntando: “Então, se um avião normal subir bem alto e depois cair, todo mundo lá dentro vai flutuar?” A resposta é sim. De fato, é assim que astronautas profissionais treinam, a bordo de aeronaves modificadas para aguentar o tranco de uma queda livre momentânea. A empresa ZeroG oferece uma passagem para turistas flutuantes por US$ 7,5 mil – mais pagável que um voo da Virgin Galactic.
Que fique claro: no voo orbital, também não há ausência de gravidade. Coisas em órbita, como os passageiros da SpaceX, a ISS ou a Lua, estão em queda livre. Para entender o que acontece, imagine que você jogou uma bolinha para frente. Ela vai percorrer alguns metros antes de cair. Agora imagine que você jogou a bolinha com tanta força que ela sumiu atrás do horizonte antes de bater no chão. Ela começou a dar uma volta na Terra. As coisas em órbita são como uma bolinha que acaba nunca batendo no chão. Giram em torno do planeta porque estão rápidas demais para cair, mas lentas demais para escapar da atração.
Subir num avião, além de mais barato, é mais seguro. “A pressão na câmara de combustão do motor pode chegar a valores 200 vezes maiores que a atmosfera e temperaturas de 3.330 °C [um avião a jato alcança no máximo 1.700 °C]”, diz Artur Bertoldi, professor da Universidade de Brasília (UnB). “Ainda entram variáveis como os sistemas de comunicação, navegação, suporte à vida, proteção térmica para a reentrada e paraquedas.” Tudo isso é sujeito a falhas.
Seja como for, não falta gente interessada nas viagens. A menos que ocorra algum acidente traumático, o turismo suborbital deve se tornar frequente num futuro próximo (a Virgin diz ter 600 reservas pagas e planeja fazer 400 viagens por ano). E mais importante: embora esses lançamentos tenham ares de vaidade e luxo desnecessário, eles podem servir de trampolim para objetivos mais nobres na exploração espacial.
Próxima parada: Marte
Tanto o SpaceShipTwo, da Virgin Galactic, quanto o New Shepard, da Blue Origin, são reaproveitáveis. O New Shepard foi o primeiro foguete capaz de fazer um pouso controlado na vertical, em 2015 (pouco antes do Falcon 9 de Musk). Depois, ele pode ser reutilizado em outra missão suborbital. Independentemente de quem chegou primeiro, o feito de Bezos fica à sombra do de Musk – simplesmente porque um foguete suborbital não é tão útil quanto um foguete orbital.
O Falcon 9 mudou o jogo por conseguir enviar satélites e pessoas para órbitas baixas por uma fração dos preços antigos. Com os ônibus espaciais, cada quilo carregado custava US$ 54,5 mil à Nasa. O Falcon 9 faz isso por US$ 2,7 mil. O Falcon Heavy, capaz de transportar mais carga, alcança a barganha de US$ 1,4 mil por quilo. Não é à toa que a Nasa agora contrata os serviços da SpaceX.
Apesar do sucesso astronômico, esse não é o objetivo final da empresa. Fazer pousos controlados de foguete é essencial caso a humanidade queira estabelecer uma colônia em Marte. E essa é a ambição declarada de Elon Musk desde a fundação da SpaceX, em 2003.
O busão que fará a linha para o Planeta Vermelho é a espaçonave Starship. Ela começou a ser testada em 2021, e o que há até agora são protótipos. Esse será o primeiro veículo totalmente reutilizável – o equivalente cósmico de um Boeing (a Falcon 9 é “só” 80% reciclável, já que o segundo estágio do foguete não pode ser salvo). A meta de Elon Musk é que, no futuro, cada lançamento da Starship saia a US$ 2 milhões, contra uns bons bilhões daqueles do Programa Apollo, o primeiro e último a usar foguetes de porte similar ao da Starship. Isso faria com que cada assento custasse US$ 20 mil. Há passagens de primeira classe mais caras na aviação terráquea.
Não faltam polêmicas em torno do turismo espacial e da colonização de Marte. Vale investir milhões em passeios de dez minutos? E por que ocupar um mundo inóspito, se temos a Terra para salvar antes? Nem os bilionários concordam entre si: Bill Gates se diz obcecado demais em erradicar doenças como malária e o HIV para pensar em ir ao espaço. Musk, por outro lado, concorda que 99% dos recursos terrestres devem ser gastos para resolver problemas do planeta, “mas que talvez 1%, ou menos, poderia ser aplicado para estender a vida além da Terra”. No que depender de seus sucessos até agora, talvez ele consiga mesmo: a SpaceX já não é mais uma promessa megalomaníaca. Entregou o suficiente para levarmos a Starship a sério.
Agradecimentos Artur Bertoldi, professor da Universidade de Brasília (UnB). Cristiano Fiorilo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Marcelo Zanetti, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Fortunas astronômicas: o que é fato e o que é ficção na corrida do turismo espacial Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
Nenhum comentário:
Postar um comentário