“Me mataram em vida.” Foi o que minha avó conseguiu falar quando chegou em casa após ter sido internada por um AVC. No período de hospital, um dos familiares retirou vários objetos da casa dela e descartou-os.
Desapegar de objetos de alguém sem autorização é algo agressivo e desrespeitoso. Com idosos é ainda pior. Objetos guardam memórias importantes que nos protegem de perdas e lutos e nos defendem daquela percepção de que a força e a vitalidade estão se esvaindo.
É evidente que a quantidade de objetos guardados tende a ser maior com o avanço da idade. Da infância à maturidade, podemos manter em casa figurinhas, cartões, discos, revistas, camisetas… Quanto mais tempo vivemos, mais memórias colecionamos.
Mas imagine que, numa determinada idade, o mundo que evoca suas lembranças começa a lhe escapar. Pessoas e atividades que acompanharam você por anos não estão mais lá e, diante da apreensão pelo futuro, a nostalgia invade sua mente e o estimula a manter objetos que, ainda que não sejam mais usados, contam histórias para você.
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O fato é que nossa sociedade não sabe lidar direito com a velhice, menos ainda com a combinação entre ela e os distúrbios mentais. Um deles é o transtorno de acumulação, que afeta, segundo estimativas, 4% da população mundial.
Apesar de pesquisas apontarem que os sintomas começam mais cedo, entre os 20 e os 30 anos, é na velhice que ficam mais intensos. Os idosos representam cerca de 80% dos diagnósticos da condição, que atinge homens e mulheres a despeito da classe social e pode ser mais evidente a cada década vivida.
Investigações sobre o transtorno de acumulação começaram nos anos 1970, mas só em 2013 ele ganhou uma classificação independente nos manuais de psiquiatria. As causas são variadas: além de inclinação genética, envolvem traumas, lutos, isolamento, mudanças abruptas e déficits no processamento de informação. É comum o problema ocorrer em paralelo a outros distúrbios, como depressão e ansiedade generalizada.
O transtorno se caracteriza pela dificuldade de se desfazer dos pertences, a despeito do seu valor utilitário ou emocional, e há um sofrimento e uma angústia só em pensar no descarte. Isso faz com que os itens se avolumem, chegando a tomar todos os espaços da casa em situações mais extremas.
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Nesse contexto, tudo que a pessoa ganha ou compra pode vir junto de um sentimento de exasperação pela possível necessidade de descarte. E assim a sobrevivência emocional fica cada vez mais condicionada aos objetos. No percurso, o contato social e a higiene podem ser comprometidos, e o indivíduo se isola. Mais de 60% das pessoas diagnosticadas com o transtorno de acumulação moram sozinhas.
Como lidar com isso? Quando se suspeita e se confirma o quadro, o apoio de psicólogos e psiquiatras é fundamental para elevar o senso de confiança e autoestima a fim de que a pessoa não precise de objetos nos quais se apoiar. Aos poucos, o sujeito se sente mais seguro e consegue seguir em frente sem eles.
Desfazer-se das “coisas” dos outros não é, nem de perto, a solução para uma situação desse tipo. Não se trata de fazer uma limpeza geral na casa. A solução está na construção de laços fortes, ajuda profissional e acolhimento, uma fórmula poderosa para que a gente se sinta viva, amada e feliz até o último dia de nossas vidas.
* Carolina Ferraz é fundadora da consultoria Onde Eu Deixei, pesquisadora na área de bagunça, pós-graduada em semiótica psicanalítica e certificada pelo método Marie Kondo
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