No verão de 2015, minha prima de 38 anos me ligou porque sentiu um nódulo na mama esquerda. Ela ainda não tinha idade para se submeter à mamografia de rotina – preconizada a partir dos 40 anos pela Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) –, mas costumava realizar o autoexame com alguma frequência.
Na época, eu era residente de Mastologia no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). Para minha prima, o diagnóstico infelizmente foi tardio: o carcinoma era localmente avançado e evoluiu para metástase em menos de dois anos.
No Brasil, a maior parte dos tumores é diagnosticada pelo toque e não pela mamografia. As massas detectadas pelo toque têm, em média, 4 centímetros.
Ocorre que o tamanho do tumor influencia diretamente a possibilidade de cura, a agressividade da cirurgia, a quantidade de medicamentos e a necessidade ou não de radioterapia.
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Veja na tabela abaixo, com dados do Datasus, a diferença de tamanho de tumor conforme o tipo de diagnóstico: se o tumor foi palpado ao toque ou se foi diagnosticado apenas por imagem.
A solução, que todo mundo deveria conhecer, está na ponta da língua: mamografia. Certo? Mas seria raso da minha parte apenas pedir para você pegar o telefone e agendar o exame agora. Sete em cada dez leitores(as) aqui podem ser usuários do SUS, como minha prima era.
No ano passado, no papel de médica mastologista e pesquisadora, alertei para a grave redução no número de mamografias realizadas na rede pública durante a pandemia. Em 2020, o total de mamografias foi 42% abaixo do habitual. E acabo de receber os números de 2021: ainda estamos com 15% de redução em relação a 2019.
Mais: um terço das mulheres está com a mamografia atrasada há mais de três anos. Tudo isso é alarmante. São dados que eu levantei e que serão publicados em detalhes numa revista científica de saúde pública.
A incidência do câncer de mama está em tendência de alta, enquanto a mortalidade varia entre estável e em alta, dependendo da região. Então, nosso rastreamento, ainda engatinhando, tomou um baque durante a crise da Covid-19.
Ocorreu uma queda drástica na realização de mamografias e outros exames preventivos.
Houve aumento da prescrição de hormonioterapia neoadjuvante – a ideia desse tratamento é “controlar” a doença com medicação antes de operar, o que é possível para alguns tipos de tumor – e vemos cirurgias atrasadas por mais de 12 semanas.
No SUS, antes da pandemia, já existiam dificuldades para implementar o programa de rastreamento do câncer de mama. Estamos seguindo a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), introduzindo o programa em etapas, priorizando num primeiro momento as mulheres de 50 a 69 anos – as mais acometidas por câncer de mama.
Em 2013, implementamos também o Programa Nacional de Qualidade em Mamografia (PNQM), que faz uma auditoria dos serviços de mamografia com auxílio dos especialistas do Colégio Brasileiro de Radiologia.
Entre 2012 e 2016, o PNQM identificou que 16,7% das mamografias não foram precisas na classificação de nódulos suspeitos para o câncer. Apesar de não existir nenhum valor definido como aceitável para esse critério, me parece preocupante que uma em cada seis mamografias possa estar inadequada.
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Trabalho num hospital privado que me dá as melhores condições para executar o que eu sei e cuidar das pacientes. No SUS, no entanto, existem diversas outras fragilidades, como longas filas para cirurgia, quimioterapia e radioterapia.
Ainda que o Brasil tenha todas essas dificuldades no combate ao câncer de mama, precisamos ter sempre em mente que vale a pena investir no diagnóstico precoce.
Um estudo recente descobriu que, mesmo por aqui, um câncer diagnosticado em estágio inicial acompanha taxas de sobrevida superiores a 90%. “Quanto antes, melhor” é o que nós, da SBM, vivemos repetindo.
Durante esses tempos pandêmicos, atendi dezenas de mulheres que estavam com a mamografia atrasada e que, mesmo sem sentir nenhum sintoma, tinham nódulos ou calcificações suspeitas.
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Como cirurgiã especialista em mama, atendo, a cada semana, uma média de 60 pacientes e opero de dois a três casos de câncer de mama. Todas elas dizem a mesma coisa: que ouviram uma voz, uma intuição, mandando fazer a mamografia. Apaixonada pelo que faço, vejo minha prima em cada uma dessas mulheres.
Hoje é o Dia Nacional da Mamografia e o Dia do Mastologista. A data foi escolhida por ser o mesmo dia em que se celebra a memória de Santa Ágata, que foi uma heroína, talvez uma das primeiras “feministas” de nossa história.
Nascida em 235, numa família rica da Sicília, foi torturada e morta por recusar-se a casar com o governador da ilha. Ao ter as mamas mutiladas, respondeu: “Não te envergonhas de mutilar numa mulher o que tua mãe te deu para te aleitar?”
Sim, Santa Ágata, como é sagrado o peito da mulher! Eu peço sua intercessão para que nós – médicos, pesquisadores, governantes e população – façamos um verdadeiro esforço em conjunto para sairmos dessa situação de “endemia” do câncer de mama.
* Jordana Bessa é mastologista do Hospital e Maternidade São Luiz Anália Franco, da Rede D’Or São Luiz, e membro da Sociedade Brasileira de Mastologia
Mamografia: essencial com ou sem pandemia Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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