A Fossa das Marianas é considerada o ponto mais fundo do oceano. São mais de 10 mil metros de profundidade que escondem espécies ainda desconhecidas de peixes, crustáceos, moluscos e sabe-se lá que outros animais.
Já o ânus humano, a caverna que protagoniza esta reportagem, não é inacessível como uma zona abissal, mas até parece, dada a dificuldade de falar abertamente sobre ele. “Infelizmente, a saúde anal ainda é um tabu. Há um constrangimento em procurar ajuda ao notar incômodos no local, especialmente por parte do público masculino”, afirma o cirurgião do aparelho digestivo e coloproctologista Sidney Klajner, presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.
“Sintomas estranhos nessa região devem ser avaliados por um médico como quaisquer outros em outras áreas do corpo, mas a resistência e a vergonha acabam atrasando o diagnóstico e piorando o prognóstico”, completa o especialista.
E olha que há um mar de problemas que podem atingir a zona anal. Hemorroidas, fissuras, dores, pruridos… Para quem é mergulhador de primeira viagem nessa história, adiantamos que o mundo novo que se abre envolve uma porção de termos, conselhos, exames e tratamentos.
É um assunto pra lá de democrático. Uma hemorroida pode dar as caras num senhor de 70 anos, assim como fissuras podem aparecer em adolescentes constipadas. Faz parte! Mas há muitos tabus e preconceitos a derrubar.
Para quem faz sexo anal, que exige realmente cuidados específicos, os empecilhos partem até do lado dos médicos. “A maior dificuldade é encontrar um profissional de confiança, com o qual se possa conversar e receber orientações sobre prevenção de doenças. Tudo o que o paciente acaba escutando são comentários negativos, contraindicando o ato”, diz o infectologista Gabriel Cuba, do Hospital Nove de Julho, na capital paulista.
E olha que não são poucos os adeptos, goste o médico ou não. Nos Estados Unidos, pesquisas indicam que até 30% das mulheres heterossexuais já passaram pela experiência. No Brasil, faltam dados sólidos a respeito, mas um levantamento do Datafolha de 2009 registrava que 64% dos adultos sexualmente ativos por aqui já haviam feito sexo anal alguma vez na vida.
Então, se você curte, não se sinta só nem culpado.
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Esse é só um dos estigmas que pairam sobre o ânus. Um órgão que deveríamos valorizar mais, inclusive pelo trunfo revolucionário que ele representa na evolução das espécies.
Antes de terem essa estrutura, os bichos ingeriam comida e liberavam seus resquícios pelo mesmo buraco. Com o desenvolvimento do ânus, foi possível não só armazenar mais comida como aprimorar o trato digestivo, criando, por exemplo, seções com finalidades específicas, que permitem a absorção de mais nutrientes.
Isso foi importante para a trajetória dos seres humanos e da maioria dos animais, apesar de haver por aí espécies sem ânus e outras com ânus multifuncionais, usados até na locomoção e na reprodução.
O nosso é uma transição entre o meio interno e o externo, como a própria boca, e dotado de um complexo mecanismo de controle voluntário e involuntário. “É a única válvula capaz de deixar passar gás e segurar líquidos”, destaca o coloproctologista Euripedes Borges dos Reis, autor do livro Papo de Reto (Pandorga – clique para comprar*). Na obra, o médico usa um tom bem-humorado para ressaltar a importância de cuidar da saúde anal.
Quer mais um motivo pra fazer essa expedição? Encrencas nos órgãos vizinhos costumam repercutir nas profundezas e na borda do orifício, então ele ainda serve como sinal de alerta para o bem-estar de um modo mais amplo.
Indivíduos com doenças que afetam o intestino costumam perceber no cocô ou em seu canal de saída que algo que não vai bem. As fezes mais duras, típicas dos constipados, podem gerar traumas na hora de evacuar que levam a fissuras, cortes doloridos na mucosa anal que exigem tratamento e investigação, além de apontarem para a necessidade de adotar hábitos mais saudáveis.
“É preciso entender o motivo para o endurecimento das fezes. Em geral, a constipação e a dificuldade para evacuar podem ser explicadas por sedentarismo, obesidade, alimentação inadequada e condições que alteram o ritmo intestinal”, explica a cirugiã do aparelho digestivo Vanessa Prado, do Hospital Nove de Julho.
Não à toa, os médicos afirmam que a incidência de problemas ânus adentro está aumentando. E aí, vai uma máscara de mergulho para se aprofundar?
Sobre hemorroidas e fissuras
Da mesma forma que pode sediar prazer, a zona anal está sujeita a dar abrigo a uma porção de incômodos. Um dos principais é a hemorroida. Ou melhor, doença hemorroidária, como explica Klajner, porque hemorroidas todos temos. “O plexo hemorroidário é uma região anatômica normal, um conglomerado de vasos sanguíneos no cinturão da borda anal. O problema acontece quando eles ficam mais dilatados e intumescidos”, detalha o cirurgião.
Com o tempo, o tecido elástico e firme que segura esses vasos no lugar vai perdendo seu tônus e parte desse conglomerado salta pra fora. Primeiro, na porção interior do ânus, onde não causa sintomas até que a situação piore e a hemorroida apareça do lado externo.
É aí que as pessoas sofrem — a ponto de precisar recolocar o vaso colapsado para dentro, com as mãos — e pode haver sangramento e dor em momentos de crise.
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Nem sempre precisa operar: a régua é o desconforto ou a quantidade de sangue perdido, sinaliza o médico do Einstein. E a cirurgia evoluiu. Em alguns casos, é possível usar técnicas menos invasivas que não chegam a remover o enrosco no vaso, como a desarterialização, que dá um pontinho na artéria que abastece as veias afetadas para interromper o abastecimento de sangue para elas.
“Os estudos mostram que esse método tem uma recuperação mais rápida e menos dolorida, mas com um risco maior de recidiva, ao passo que a operação convencional está ligada a um pós-operatório mais sofrido e doloroso, mas há menos chances de a hemorroida voltar”, contextualiza Klajner.
A escolha depende da severidade do quadro e de conversas francas entre profissional e paciente.
O olhar do expert é importante antes de tudo para diferenciar hemorroida de fissura, um quadro cada vez mais frequente devido ao estilo de vida. “A hemorroida não necessariamente provoca dor, exceto em crises, ao contrário da fissura, que causa incômodos intensos que persistem durante o dia”, esclarece o cirurgião do aparelho digestivo Rodrigo Oliva Perez, coordenador do Núcleo de Coloproctologia e Intestinos do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Sem meias-palavras, ele diz: “É como se a pessoa sentisse que está evacuando um abacaxi”. E o drama é que, se não for cuidada, a ferida não cicatriza e vira uma lesão crônica. “Aí, a dor na hora de ir ao banheiro interrompe a evacuação, as fezes que ficam guardadas endurecem e tendem a piorar a fissura quando saírem”, descreve Klajner.
Para estancar esse martírio, é fundamental buscar a ajuda de um especialista assim que notar algo errado lá embaixo.
Você é do tipo que passa minutos ou até horas no vaso sanitário, mexendo no celular ou lendo uma revista? Se sim, saiba que o hábito contribui tanto para o aparecimento de fissuras quanto de hemorroidas. “A privada foi feita para evacuar, porque a posição exerce uma pressão grande sobre o ânus”, informa Reis.
Outro hábito que piora o trânsito intestinal e pode abalar a porta dos fundos é ignorar os sinais de que é hora de ir ao banheiro. E esse ponto vale sobretudo para as mulheres, educadas durante anos como se fazer cocô fosse algo vergonhoso, a ser praticado só em casa.
Uma dica para regularizar a situação é fazer uma espécie de treino. “Todos os dias, no mesmo horário, de preferência de manhã, sente no vaso por cinco minutos, mesmo sem vontade de evacuar. No começo, pode não acontecer nada ou saírem apenas gases, mas, depois, o corpo passa a entender que aquele é o momento certo para isso”, ensina Reis.
E concentre-se no ato, sem distrações — vai ser bom para a cabeça também.
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Falando nisso, o tratamento de problemas lá embaixo começa um pouco mais em cima. É que uma das principais causas de encrencas anais é o intestino preso, que, por sua vez, pena para trabalhar com uma dieta inadequada.
O padrão alimentar longe do ideal, pobre em fibras dos vegetais e cheio de comida industrializada, também conspira para um mal cuja incidência tem aumentado entre os mais jovens: o câncer colorretal, que pode acometer a região logo acima do ânus. “O consumo excessivo de carne vermelha e produtos industrializados, assim como o álcool e o tabagismo, aumenta o risco da doença ali”, diz a oncologista Rachel Riechelmann, do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo.
Segundo a Sociedade Americana de Câncer, houve um crescimento de 2% na taxa do tumor, que já é o terceiro mais frequente tanto em homens como em mulheres, entre pessoas abaixo de 50 anos de 2012 a 2016 nos Estados Unidos.
Os médicos brasileiros notam a mesma tendência. “Estamos vendo cada vez mais casos em gente com menos de 40 anos”, conta a cirurgiã Angelita Gama, do Oswaldo Cruz, uma referência na área e pioneira na criação de um tratamento que combina radio e quimioterapia para o tumor, em algumas situações até dispensando a cirurgia.
O pulo do gato é flagrar cedo, com exames de colonoscopia periódicos a partir dos 40 anos (ou antes), se houver histórico familiar, ou dos 45 em diante para a população em geral. “A colonoscopia permite investigar cólon e reto e já retirar eventuais lesões suspeitas”, diz Angelita. Um recurso e tanto para aliar a uma boa dieta e exercícios regulares.
Mas tumores lá embaixo podem aparecer no ânus em si. É um quadro mais raro e, por isso, menos falado, mas bastante ligado ao HPV, o papilomavírus humano, aquele mesmo patógeno transmitido nas relações sexuais e mais conhecido por provocar boa parte dos casos de câncer de colo de útero nas mulheres.
Há vários subtipos do vírus. Alguns desencadeiam verrugas e lesões que lembram uma couve-flor no ânus, os condilomas. Mas os mais perniciosos são aqueles que provocam alterações inicialmente mais discretas que, com os anos, evoluem para um câncer.
“Daí a importância de prevenir a infecção com uso de preservativo e vacinação, e de fazer uma avaliação regular em alguns subgrupos, em especial o de pessoas que vivem com HIV, que têm risco aumentado da doença”, explica o infectologista Gabriel Cuba.
O imunizante está disponível gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS) para meninos e meninas de 9 a 14 anos e homens e mulheres imunossuprimidos de até 26 e 45 anos, respectivamente. A vacina é segura e capaz de prevenir mais de 90% dos casos de câncer anal, mas está encalhando nos postos de saúde e até em clínicas privadas.
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O HPV representa a infecção sexualmente transmissível (IST) mais prevalente. Embora nem sempre leve ao câncer, merece atenção, do mesmo modo que outras moléstias que acometem a região genital e anal.
Sim, sífilis, clamídia, herpes e gonorreia podem aprontar no ânus. “Notamos, em especial, um aumento nos casos de sífilis, porque as pessoas estão tendo mais relações desprotegidas e um comportamento de risco maior”, aponta o cirurgião do aparelho digestivo Vinicius Lacerda, do Núcleo de Medicina Afetiva (Numa), na capital paulista.
E há as infecções sistêmicas, como as hepatites B e A e o HIV, que também pegam carona pela prática do sexo anal.
Riscos existem, mas é possível reduzi-los com alguns cuidados, a começar pelo uso da camisinha, fazendo exames regulares e prestando atenção a sintomas estranhos, como coceira, dor ou aparecimento de corrimento ou sangue no local.
Consultas e bate-papos sinceros e periódicos com o médico se tornam ainda mais cruciais se lembrarmos que algumas infecções são silenciosas durante anos — mas não deixam de ser um perigo para si próprio como para os outros com quem o sujeito se relaciona.
O xis da questão é, portanto, estabelecer uma relação de confiança com o profissional que nos acompanha. E mandar para o ralo a vergonha e os estigmas que rondam o ânus — um tabu que deixa a região refém de doenças e da escuridão.
Cuidados com o ânus
Guia do sexo anal seguro
O ânus pode ser fonte de prazer — mas exige cuidados especiais. Veja quais são:
Criando o clima: Para ajudar a relaxar a região, esteja em um ambiente confortável e abuse das preliminares, estimulando o esfíncter com brinquedos e carinhos. Comece introduzindo os dedos.
Com lubrificação: O ânus não tem lubrificação para o ato sexual, e a secura aumenta o risco de lesões e transmissão de doenças. Use produtos à base d’água, e nunca a saliva.
Atenção às duchas: A higiene é importante, mas basta uma boa limpeza externa e evitar refeições pesadas antes de transar. Duchas até podem ser realizadas, desde que de maneira delicada e pontual.
Camisinha sempre: Sem dúvida o item mais importante da lista. O sexo desprotegido, anal ou vaginal, é o principal fator de risco para infecções perigosas, entre elas HIV e hepatite B.
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De hemorroida a fissura: quando o problema é mais embaixo Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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