segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

“Os Banshees de Inisherin”: entenda o que foi a guerra civil irlandesa, pano de fundo do filme

Em uma das cenas de Os Banshees de Inisherin, que estreia no Brasil na quinta-feira (2/2), o produtor de leite Pádraic (Colin Farell) contempla o horizonte rochoso da costa oeste da Irlanda. Ele mora em uma pequena ilha chamada Inisherin e observa, do outro lado do oceano, várias bombas explodindo.

“Boa sorte a vocês”, deseja Pádraic aos compatriotas. “Seja lá pelo que estejam lutando.”

Inisherin é uma ilha fictícia. Mas o conflito que Pádraic presenciou é bem real. O filme se passa em 1923, quando a Irlanda estava em plena Guerra Civil – um conflito que matou centenas de pessoas e dividiu o país.

Indicado a nove prêmios do Oscar deste ano (incluindo Melhor Filme e Melhor Ator para Farell), Os Banshees de Inisherin tem direção do meio britânico, meio irlandês Martin McDonagh (Três Anúncios Para o Crime). Conta a história da amizade entre Pádraic e o músico Colm (Brendan Gleeson) – ou melhor, do fim da amizade entre eles. Sem dar maiores explicações, Colm corta os laços com Pádraic, que vai passar boa parte do filme tentando entender o que provocou a súbita decisão do ex-amigo.

<span class="hidden">–</span>Film4 Productions & Searchlight Pictures/Divulgação

(Curiosidade: Farell e Gleeson vivem assassinos de aluguel no primeiro filme de McDonagh, a comédia ácida Na Mira do Chefede 2008. Tem no HBO Max.)

As notícias sobre a guerra chegam a conta-gotas na pacata Inisherin, onde todos se conhecem e os passatempos se resumem a ir à igreja e bebericar no único pub da ilha. É um lugar com habitantes peculiares, como a dona do armazém, que não se importa em abrir cartas alheias em busca de novidades, e o policial abusivo com o filho, o jovem Dominic (Barry Keoghan). E há também a Sra. McCormick (Sheila Flitton), uma velhinha que faz as vezes de banshee – entidade que, na mitologia celta, anunciava a morte de alguém com seus gritos e choros.

Existem vários níveis de interpretação em Os Banshees de Inisherin, e conhecer o contexto da guerra civil pode ser um bom ponto de partida para entender alguns deles. Vamos ao conflito.

Do começo

No século 12,  A Inglaterra iniciou o processo de anexação da ilha da Irlanda. Mas a dominação não rolou de imediato. O processo de ocupação só começou para valer no século 17. Milhares de colonos de maioria protestante passaram a viver em terras antes ocupadas por irlandeses, de maioria católica.

Assim, o mesmo território passou a ser ocupado por dois grupos hostis, um acreditando que suas terras haviam sido usurpadas e o outro temendo rebeliões. Entre as várias províncias da ilha, Ulster, ao norte, concentrou a maior parte dos imigrantes britânicos.

Ao longo do século 19, a região de Ulster (que, mais tarde, se tornaria a Irlanda do Norte) se industrializou e se urbanizou mais rápido que o sul do país, ainda dependente da agricultura, aumentando as diferenças econômicas entre os dois lados.

A Guerra de Independência…

No século 20, a tensão entre irlandeses e britânicos tornou-se insustentável. Em 1916, enquanto o Reino Unido lutava na Primeira Guerra Mundial, nacionalistas irlandeses organizaram uma das primeiras  (e maiores) manifestações a favor da independência do país.

Na capital Dublin, uma organização chamada Voluntários Irlandeses liderou o que ficou conhecida como a Revolta da Páscoa. A manifestação se estendeu durante a Semana Santa e foi repreendida com violência pela polícia: vários líderes da revolta foram presos (e executados) pelos ingleses. Ao todo, 400 pessoas morreram.

<span class="hidden">–</span>Film4 Productions & Searchlight Pictures/Reprodução

Após a revolta, os irlandeses pró-independência passaram a se concentrar no partido político Sinn Féin, que, em irlandês, significa “Nós Mesmos”. O partido usou a repreensão truculenta das autoridades para reforçar o sentimento separatista da população – e conquistar votos.

Deu certo. Em 1918, o Sinn Féin conquistou 70% das cadeiras a que tinha direito no Parlamento Britânico. Só que eles nunca a assumiram. Em vez disso, os eleitos se reuniram em Dublin no dia 21 de janeiro de 1919 e instituíram a An Chéad Dáil – o Primeiro Parlamento – e formalizaram a declaração de independência da Irlanda.

Continua após a publicidade

Começava, naquele dia, a Guerra de Independência Irlandesa. De um lado, os separatistas, liderados pelos antigos Voluntários – que, àquela altura, tinham se reorganizado e formado o IRA (Exército Republicano Irlandês, na sigla em inglês), grupo paramilitar que recebeu do Parlamento autorização de combate. Do outro lado estava o Reino Unido, que contou também com a ajuda da polícia de Ulster.

O conflito se estendeu até o final de 1921; Mais de 2,3 mil pessoas morreram (desta, 900 eram civis). A guerra terminou com um cessar-fogo assinado pelos dois lados. O Tratado Anglo-Irlandês, ratificado em 6 de dezembro daquele ano, possibilitou a criação do Estado Livre Irlandês. À Irlanda do Norte, foi oferecida a possibilidade de não integrar esse novo Estado. E foi o que fizeram: até hoje, o país integra o Reino Unido, junto com Inglaterra, Escócia e País de Gales.

Só teve um problema: muitos irlandeses não concordaram com os termos do tratado.

…e a Guerra Civil

O acordo entre Irlanda e Reino Unido garantiu a criação de um Estado Livre. Contudo, ainda mantinha o país sob o guarda-chuva do Império Britânico, com um juramento de fidelidade ao rei.

Para uma parcela dos separatistas, tudo bem. O tratado afrouxaria as relações com a Coroa britânica e abriria caminho para a independência plena da Irlanda – e, quem sabe, para a reunificação com a Irlanda do Norte. Figuras como Michael Collins (diretor de inteligência do IRA durante a guerra) e Arthur Griffith (fundador do Sinn Féin) eram favoráveis ao acordo.

Mas houve quem discordasse do acordo, alegando que os termos eram insuficientes. E não demorou para que surgissem grupos divergentes dentro do Sinn Féin e do IRA.

No início de 1922, o Parlamento Irlandês pôs o tratado em votação. O resultado foi apertado: por apenas sete votos (64 a 57), o documento foi aprovado. Mas a insatisfação do lado perdedor não cessou. Em seis meses, o que era apenas uma disputa política deu origem a duas facções dentro do IRA – e o conflito armado começou.

Em abril de 1922, centenas de membros do IRA antitratado ocuparam a Four Courts, prédio da Suprema Corte da Irlandesa. A rebelião foi controlada depois de alguns dias, mas a tensão só crescia.

Em junho, dois membros do IRA assassinaram, em Londres, o britânico Henry Wilson, marechal aposentado do exército e conselheiro do primeiro-ministro da Irlanda do Norte. Embora nunca tenha ficado comprovado, há suspeitas de que Michael Collins tenha se envolvido no crime.

Seja como for, a morte foi o estopim para que o Reino Unido exigisse o fim dos conflitos irlandeses. O futuro primeiro-ministro britânico Winston Churchill, à época membro do Parlamento, culpou o lado antitratado pelo atentado e exigiu uma ação do governo irlandês – do contrário, as forças britânicas tomariam providências.

Estava instaurada a Guerra Civil. O lado pró-tratado passou a ser chamado de Exército do Estado Livre, ou Exército Nacional. Já o lado antitratado ficou como conhecido como Republicanos. O conflito se arrastou por meses e, apesar de ter se concentrado em Dublin, atingiu diversas outras regiões do país também.

Em agosto de 1922, Collins foi assassinado. Estima-se que mais de mil pessoas morreram durante a guerra, que só terminou em maio de 1923, com a vitória do lado pró-tratado.

Legado

Durante a guerra, não apenas grupos políticos e o IRA se dividiram – famílias inteiras se separaram por discordarem do tratado e dos rumos do conflito.

A guerra civil teve grande influência na política irlandesa nas décadas seguintes. Dois dos principais partidos políticos do país surgiram ao final do conflito: os apoiadores do tratado se juntaram no Fine Gael; os apositores, no Fianna Fáil.

Uma divisão que só recentemente parece ter diminuído. Em 2020 (e um juntos a um terceiro partido, o Verde), os dois se uniram pela primeira vez em uma coalizão para o governo da Irlanda.

Compartilhe essa matéria via:

 

Continua após a publicidade

“Os Banshees de Inisherin”: entenda o que foi a guerra civil irlandesa, pano de fundo do filme Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed

Nenhum comentário:

Postar um comentário