terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A infectologia de The Last of Us: as diferenças entre ficção e realidade

Produções de ficção tem esse nome por um motivo. A palavra serve para afastar a obra da realidade pura e, muitas vezes, permitir que ela burle algumas leis da física ou princípios biológicos sem ser questionada. Não existem capacitores de fluxo como em De Volta Para o Futuro (1985), mas você aceita que é por causa dele que a viagem no tempo é possível; assim como não existem vírus que transformem as pessoas em zumbis, mas você não critica The Walking Dead (2010) pela falta de realismo.

Em The Last of Us, jogo lançado pela desenvolvedora Naughty Dog em 2013, a história é um pouco diferente. Na trama, o mundo foi destruído por um fungo bizarro, que infecta as pessoas e as transforma em hospedeiros agressivos e irracionais – de certa forma, semelhantes a zumbis. Você acompanha Joel e Ellie, um homem e uma garota que atravessam os Estados Unidos em meio a esse apocalipse. Podem até existir alguns desvios ficcionais, mas grande parte da narrativa tem embasamento científico.

O fungo responsável por dizimar 60% do planeta na ficção é do gênero Cordyceps, um tipo de fungo que, na vida real, também controla suas vítimas – mas, felizmente, só atingem insetos. Neil Druckmann, criador do jogo, teve a ideia para a ameaça fúngica enquanto assistia a um episódio do documentário de 2006, “Planeta Terra”, da BBC (exibido pelo Fantástico no Brasil). O trecho abaixo mostra o fungo agindo em uma formiga da espécie Paraponera clavata. 


A equipe de desenvolvimento do jogo buscou se inspirar na bizarrice real para criar seu fungo mortífero. A preocupação com a fidelidade foi tanta que eles chamaram o biólogo David Hughes, pesquisador especializado na relação do Cordyceps com formigas, para servir de consultor no processo criativo.

Agora, com a recente adaptação do primeiro jogo para uma série da HBO, a infecção pelo Cordyceps ficou mais famosa do que nunca: as pesquisas no Google relacionadas ao fungo e à série aumentaram drasticamente desde o primeiro episódio, no dia 15 de janeiro. Confira algumas das semelhanças e diferenças entre o Cordyceps da vida real e da ficção.

Infecção

No jogo, as principais formas de infecção são pela inalação de esporos ou pela mordida de um infectado. Leva cerca de um a dois dias para que o fungo tome controle do hospedeiro.

Na série, os produtores acharam melhor não incluir esporos; tanto por questões técnicas quanto criativas.

“No mundo que estamos criando, se colocarmos esporos no ar, ficaria bem claro que eles se espalhariam por toda parte e todos teriam que usar uma máscara o tempo todo e provavelmente todos estariam completamente infectados a essa altura. Então, nos desafiamos a criar uma nova forma interessante de propagação do fungo”, comenta Craig Mazin, co-criador da série.

Sendo assim, na adaptação, a principal forma de infecção é a mordida. Apesar de fungos não morderem, essa forma de contaminação também não é tão viajada: a esporotricose humana é um tipo de micose subcutânea que surge quando o fungo do gênero Sporothrix entra no organismo – geralmente através de pequenos cortes e arranhões de espinhos de plantas contaminadas. Não é a mesma coisa que uma dentada, mas é o mais perto de um rasgo na pele humana.

Na realidade, os esporos são indispensáveis. Ao atravessar uma área contaminada, os esporos exercem uma combinação de pressão mecânica e ação enzimática (de enzimas como a quitinase, lipase e protease) para atravessar o exoesqueleto do inseto. Cada tipo de Ophiocordyceps ataca e parasita um inseto em específico. 24 horas depois do contato, a formiga já está infectada.

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<span class="hidden">–</span>Leonardo Caparroz/Natalia Sayuri Lara/Superinteressante

Desenvolvimento

Dois dias após a infecção, o hospedeiro humano perde suas funções cerebrais superiores; entre elas, a capacidade de pensar, lembrar e raciocinar. Sem poder pensar e agir racionalmente, torna-se hiper agressivo. Dentro de duas semanas, a visão do hospedeiro começa a ser comprometida devido a corrupção do córtex visual – uma área do cérebro que processa a informação visual, localizado no lobo occipital.

Após um ano de infecção, o fungo já tomou controle completo do corpo hospedeiro e, desfigurando totalmente o seu rosto, o deixa completamente cego. Sendo assim, o hospedeiro desenvolve uma audição aguçada e forma primitiva de ecolocalização para compensar a falta de visão. Muito famosa em morcegos, a ecolocalização consiste em emitir um ruído e usar essas ondas sonoras para criar uma espécie de reconstrução do ambiente. As ondas batem nos objetos ao redor e voltam como ecos; se algo está longe, seu eco demora para voltar e se está perto, não. Infectados nesse estágio produzem um som característico, semelhante a um estalo – daí vem o seu apelido de “estaladores”. 

Se sobreviver por mais de uma década, o fungo se espalha pela superfície da pele e o hospedeiro desenvolve placas fúngicas endurecidas na maior parte do corpo. São extremamente fortes e pesados – porém, bem menos ágeis do que os estágios anteriores.

Na vida real uma formiga não dura muito tempo infectada. Diferente do jogo, o Cordyceps real não contamina o cérebro dos insetos, controlando apenas o corpo dela. Segundo uma pesquisa de 2017, as células do fungo estavam por toda a parte do corpo da formiga, praticamente como se ele tomasse conta da carcaça dela. Contudo, elas não invadiram o cérebro.

“Normalmente, o comportamento em animais é controlado pelo cérebro enviando sinais para os músculos, mas nossos resultados sugerem que o parasita está controlando o comportamento do hospedeiro perifericamente”, afirma David Hughes, biólogo consultor do jogo e principal autor do estudo. “Quase como um ventríloquo puxa as cordas para fazer um movimento de marionete, o fungo controla os músculos da formiga para manipular as pernas e mandíbulas do hospedeiro”.

Depois de dois dias, a formiga deixa a colônia de forma desengonçada e sobe até um lugar em que a umidade e a temperatura sejam favoráveis para o crescimento do fungo – a uma altura de aproximadamente 26 cm acima do solo da floresta, em ambiente com 94 a 95% de umidade e temperaturas entre 20 e 30 °C.

No fim da escalada, a formiga infectada trava suas mandíbulas em uma folha com força suficiente para impedi-la de cair e prendê-la firmemente no lugar. Isso é resultado da atrofia dos músculos mandibulares da formiga causada pela secreção de compostos pelo fungo. Uma hipótese comum entre os pesquisadores é que as células fúngicas se infiltrem entre as fibras musculares e então secretem substâncias químicas que causem a atrofia muscular, fixando a mandíbula da formiga na folha. Esse comportamento é chamado em inglês de “death grip”, ou “aperto da morte”; e é isso que acontece, ela morre pendurada de cabeça para baixo, permitindo o crescimento adequado do corpo frutífero do fungo. 

Morte

Quando está perto do fim, um humano infectado, seja lá em qual estágio de desenvolvimento estiver, encontrará cantos escuros e úmidos para morrer. Por causa disso, as regiões com maior quantidade de esporos são os esgotos, túneis e casas abandonadas. O fungo também parece ter dificuldade para se espalhar em áreas abertas e campos. Embora isso signifique o fim para o hospedeiro, o fungo continua a crescer e se espalhar até estar pronto para liberar os próprios esporos.

Já as formigas morrem depois de algumas horas da sua mordida final. Mesmo assim, o fungo continua a crescer, invadindo tecidos, se alimentando do interior do defunto e fortalecendo estruturalmente o exoesqueleto da formiga. Micélios, vários ramos de hifas emaranhadas, brotam do inseto, prendendo ele à planta e secretando substâncias antimicrobianas para proteger o cadáver da decomposição. Quando o fungo está pronto para se reproduzir, seus corpos frutíferos crescem da cabeça da formiga; e quando estão maduros, eles se rompem, liberando os esporos. Formigas mortas costumam ser encontradas em “cemitérios” contendo altas densidades de outras vítimas do mesmo fungo que também tiveram a infelicidade de cruzar com os esporos do Cordyceps.

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