Tudo o que é raro chama a atenção. Sempre foi assim, uma mistura de medo e fascínio. Em saúde, entretanto, o termo “raro” costuma estar associado à exclusão e à invisibilidade. Doenças raras são definidas pela baixa quantidade de pessoas afetadas em determinada área. Elas deveriam convocar o olhar atento do sistema de saúde por serem “diferentes”, mas o que ocorre é exatamente o contrário.
As doenças raras costumam ser esquecidas nos currículos dos cursos da saúde em prol do estudo de problemas mais frequentes, o que aumenta ainda mais a sua invisibilidade. E os sistemas de saúde tendem a negligenciá-las ao aplicar os recursos econômicos prioritariamente em doenças mais prevalentes, o que colabora para a piora das condições de saúde já debilitadas dessa comunidade.
Não existe um número que defina o que é “ser raro”. Raciocinar em termos numéricos é complexo, já que existem outras características comuns às doenças raras: a maioria é genética, afeta crianças, demora a ser diagnosticada, tem tratamento, mas não cura. As doenças raras também são crônicas.
A Política Nacional de Atenção Integrada às Pessoas com Doenças Raras define como raras as doenças que atingem no máximo 65 pessoas a cada 100 mil brasileiros. Muitas doenças podem ser incluídas no grupo, como a hipertensão arterial pulmonar primária, a fenilcetonúria e a síndrome de Williams. Os nomes podem soar estranhos, mas não são mais do que “pneumonia”: é apenas uma questão de nos acostumarmos com eles.
Quem entre os leitores conhece um membro da comunidade de doenças raras? Não se sabe o número de brasileiros nessas circunstâncias, mas estima-se que sejam entre 7 e 13 milhões de pessoas. Se você disse “não”, talvez conheça alguém dessa comunidade, mas não saiba.
Se a pandemia de Covid-19 afetou a comunidade dos não raros, imagine como afetou os raros. Estudo liderado pelo nosso grupo e realizado em junho incluindo 1 466 brasileiros representando 192 doenças raras mostrou o incremento da vulnerabilidade dessa comunidade no contexto atual: 93,6% dos participantes não saíram da residência ou saíram só quando era essencial e em torno de 70% tiveram consultas e terapias canceladas ou adiadas.
Não sabemos, ainda, quanto a pandemia e a falta de acesso à saúde atrasaram o diagnóstico de indivíduos com doenças raras e seu tratamento, colaborando, consequentemente, com o surgimento de sequelas evitáveis.
É necessário que o termo “doença rara” seja incluso em nosso cotidiano mesmo na pandemia. O alcance de iniciativas como o Festival Raridades, que ocorre em novembro, é muito maior do que ampliar o conhecimento sobre essas condições. É uma forma de tornarmos o mundo pandêmico mais colorido, diverso e alegre. Ao mesmo tempo em que salvamos vidas. Pois raros somos muitos.
* Ida Vanessa Doederlein Schwartz é médica geneticista, professora do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe do Serviço de Genética Médica e do Serviço de Referência em Doenças Raras do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Festival expõe nossa relação contraditória com o raro Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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