domingo, 22 de novembro de 2020

Márcia Barbosa estuda a água – a substância mais estranha da face da Terra

A física Márcia Barbosa se interessou pela água muitos anos atrás, quando estudava transições de fase: as passagens de uma substância do estado líquido para o sólido, do gasoso para o líquido etc.

Até então, Márcia só pensava em água quando sentia sede: originalmente, seu objeto de estudo eram moléculas grandes, como proteínas e DNA, que têm milhares de átomos. Uma molécula como o H2O – com seus humildes hidrogênios e um oxigênio solitário – não parecia tão digna de atenção. Tanto é que, quando precisava simular o comportamento da água, a pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) usava um modelo computacional, em suas palavras, “vagabundo”. 

O problema é que o modelo vagabundo fazia juz à ofensa e não funcionava: as previsões que envolviam água começaram a dar errado. Márcia, então, decidiu fazer uma pausa para modelar a água decentemente.

A pausa já dura 20 anos. O líquido mais comum da Terra, Márcia descobriu, é também o mais estranho.

Uma das anomalias da água (ao todo, são mais de 70) é a seguinte: quanto mais comprimidas estão as moléculas de água, mais rápido elas se locomovem. Pode não parecer grande coisa. Mas se ponha no lugar de uma molécula: é como se, quanto mais lotado estivesse o ônibus, mais fácil fosse se mexer.

O segredo está nas pontes de hidrogênio: ligações efêmeras que os átomos de hidrogênio de uma molécula de H2O gostam de formar com o oxigênio de outra molécula de H2O. Isso acontece porque o oxigênio é eletronegativo, o hidrogênio é eletropositivo, e os opostos se atraem. Moléculas de água gostam de formar essas pontes não só com a própria água, mas com qualquer outra molécula que esteja dando sopa. 

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Essa mania de grudar de levinho em tudo que está em volta – e depois soltar rapidamente – faz a molécula de H2O agir como um personagem clássico: o passageiro de ônibus que vai apoiando a mão nos ombros de todo mundo para cavucar um caminho e descer do coletivo. Mais eficaz que o cidadão educado, que pede licença e espera o Mar Vermelho abrir dois pontos depois. 

“O que nós mostramos é que, quando a água está compactada, ela passa a fazer mais pontes”, explica Márcia. “Quando eu coloco seis vizinhos muito próximos dela, a água alterna de um pro outro, fazendo seis, oito ligações. Eu chamo de efeito Ricardão”.

O próximo passo foi analisar o fluxo da água em nanotubos – cilindros com espessura mil vezes menor do que um fio de cabelo. A água flui muito bem nesses espaços minúsculos. Por estarem em um espaço muito pequeno, as moléculas desistem de fazer um monte de ligações de hidrogênio. Passam a se organizar em uma fila indiana, fazendo apenas duas ligações: uma com o H2O que está na frente, uma com o que está atrás. As moléculas perdem as ligações laterais porque elas são repelidas pelo minúsculo cano.

Márcia volta a usar o exemplo do ambiente abarrotado de gente: “essa fila indiana anda super rápido, como se fosse um corredor polonês no carnaval. Todo mundo de mão dada”. O fluxo de água em nanotubos chega a ser centenas ou até milhares de vezes maior do que o previsto pelas leis da hidrodinâmica.

Apenas 2,4% da água do planeta é doce, e 70% dessa água doce está em locais de difícil acesso, como as geleiras. Diversos países já enfrentam escassez hídrica, e a ONU estima que metade da população mundial sofrerá com a falta de água até 2050.

A física estuda diferentes materiais e espessuras de tubos procurando a melhor estratégia para dessalinizar a água. Uma possibilidade é passá-la por nanotubos: só o H2O entra, os sais ficam de fora. Essa nanotecnologia poderia reduzir as plantas de dessalinização a um décimo do tamanho atual.

Atualmente, Márcia Barbosa é professora de física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e faz parte da Academia Brasileira de Ciências.

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