quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Livro da Semana: “Testosterona Rex”, de Cordelia Fine

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Primeiro, o americano John Gray acumulou anos de experiência com meditação. Depois, obteve um doutorado por correspondência em psicologia – concedido por uma universidade picareta na costa oeste dos EUA que não preenchia requisitos mínimos para operar (o local foi fechado pela Suprema Corte da Califórnia no ano 2000).

Então, em 1992, publicou Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus, um monumento à pseudociência que vendeu 7 milhões de cópias até 1999 só nos EUA, e passou 235 semanas (mais de quatro anos) na lista de mais vendidos do New York Times.

Gray foi – e ainda é – um dos principais propagadores da ideia de que há diferenças de fundo biológico entre os cérebros de homens e mulheres, e que tais diferenças explicam os papéis tradicionalmente atribuídos a cada um dos sexos nos relacionamentos heterossexuais.

Baseado em uma dolorosa ausência de fontes, Gray garante que há algo de inato em cada uma das assimetrias comportamentais entre esposas e maridos. Inclusive no hábito supostamente masculino de se retrair e pensar nos problemas vs. o hábito supostamente feminino de falar incessantemente sobre eles (por esse critério, o redator que vos fala conclui facilmente que é a mulher de sua relação).

Gray é uma caricatura bem cringe (rs), mas ele ilustra um problema sério que assombra a biologia e a psicologia desde que essas ciências existem: elas foram fundadas por homens, e muitas conclusões que guiaram e moldaram as pesquisas nessas áreas ao longo dos últimos 150 anos acabaram se revelando erradas ou incompletas porque estão impregnadas de machismo.

Às vezes, os erros do passado ficam escancarados sob o olhar do presente: em 1887, o respeitado fisiologista canadense George Romanes escreveu que era de se esperar uma “perceptível inferioridade no intelecto” das mulheres pelo fato de seus cérebros serem, em média, menores – e seus corpos, menos robustos. Por esses critérios, é de se imaginar o quanto Romanes se sentia humilhado ao observar um elefante, com 4,7 kg de massa cinzenta e toneladas de robustez.

Noutras vezes, afirmações de teor parecido permanecem à venda em livrarias comuns, camufladas dentro de títulos bem mais sérios do que porcarias de auto-ajuda para casais. O psicólogo britânico Simon Baron-Cohen, embora um respeitado investigador do autismo em Cambridge, escreve que “O cérebro feminino é predominantemente projetado para a empatia. O cérebro masculino é predominantemente projetado para entender e construir sistemas.”

Em Testosterona Rex, a psicóloga Cordelia Fine usa uma bibliográfia extremamente sólida (e humor ácido) para demonstrar que muitas pré-concepções conhecidas sobre diferenças inatas entre os sexos estão erradas, e que essas ideias nascem de experimentos científicos questionáveis – seja por problemas no método, seja por um viés machista na interpretação dos dados após a coleta. A biologia é uma atividade humana; como tal, suas conclusões sofreram dos defeitos e se beneficiaram das virtudes dos humanos que a praticaram ao longo dos séculos. 

Os argumentos de Fine nem sempre são expostos de maneira cristalina – a leitura às vezes empaca numa frase muito comprida ou num raciocínio com meandros demais. Porém, isso também é parte do que torna o livro interessante: máximas simplórias sobre as diferenças entre os sexos são substituídas por uma observação bem mais cuidadosa da literatura da área. A ciência nunca foi algo simples – certamente não tão simples quanto a metáfora de que cada metade da humanidade veio de um planeta. 

 

 

 


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