O empresário austríaco Dietrich Mateschitz tinha um problema sério: viajava muito a negócios e sofria com jet lag. Cansaço, indisposição, perda de foco… Tudo isso era péssimo para o trabalho. Mas, em 1984, numa viagem à Tailândia, ele conheceu uma bebida típica que rapidamente curou seu mal-estar, a Krating Daeng, ou “touro vermelho”.
Mateschitz imediatamente procurou o fabricante para conseguir levar aquela fórmula ao Ocidente. E assim nasceu o Red Bull. A sacada do austríaco criou a categoria dos energéticos — antes disso, nenhuma empresa ousara botar tanta cafeína num produto industrializado.
E a classe, associada à melhora da performance, se consolidou mundo afora. Só o Red Bull vendeu quase 8 bilhões de latinhas pelo planeta em 2020.
No Brasil, apesar de uma redução das vendas no início da pandemia pela restrição às festas — energéticos também são muito consumidos com bebidas alcoólicas, o que é altamente contraindicado —, o país produz cerca de 110 milhões de litros de energéticos por ano, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcoólicas (Abir).
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Mas nem só de gaseificados vive esse mercado. Quem procura um estimulante mais natural costuma optar por chás, pelo cafezinho ou pela mais nova sensação nesse departamento, os chamados supercafés.
A onda começou graças a outro empresário que trouxe do Oriente uma “bebida milagrosa” — desta vez, o americano Dave Asprey. Em uma viagem aos Himalaias, ele penou com a média de temperatura de 23 °C negativos, mas o Pa Cha tibetano (uma infusão de manteiga de iaque) revitalizou suas forças.
Ao voltar para casa, o fascinado Asprey passou anos adaptando a receita para o Ocidente — trocou o chá por café, a manteiga de iaque por manteiga ghee, e adicionou óleo de coco. Assim surgiu, em 2010, o Bulletproof Coffee.
A fórmula se popularizou e foi se ajustando ao gosto dos fregueses, dando origem aos supercafés, que nada mais são que cafés turbinados com diversos compostos, prometendo melhorar o vigor físico e a cognição.
O Supercoffee, marca brasileira mais popular do ramo, começou vendendo 70 mil latas em dezembro de 2018 e chegou a 720 mil em 2020 — um aumento de quase 1 000%. Segundo Bruno Lima, fundador da marca, as vendas já chegam a 180 mil latas por mês em 2021. O produto decolou entre os adeptos da academia.
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Apesar do sucesso, é preciso colocar os pés no chão quanto aos efeitos dessas bebidas. São iguais para todos? O que há na composição? Existem riscos à saúde?
Antes de mais nada, há dois pontos que precisamos entender quando se fala em suplementos energéticos. Primeiro, a despeito do marketing, só dá para melhorar o desempenho nos estudos ou no trabalho se você descansar também.
E só turbina a performance na academia quem se dedica ao treino. “O que faz diferença é se você procura um treinamento adequado aos seus objetivos. A suplementação é um suporte. Sem um bom treino, não tem estimulante que dê jeito”, diz a nutricionista e triatleta Luiza Di Bonifácio, de Ribeirão Preto (SP).
O segundo ponto é que praticamente todo o efeito de uma bebida energética se deve a um só ingrediente, a cafeína. Após a ingestão, ela é absorvida e transportada para todos os tecidos e órgãos do corpo, onde exerce um efeito estimulador sobre os músculos, ao mesmo tempo que diminui a percepção do esforço.
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“A cafeína ativa a atenção e a vigilância e reduz a sensação de fadiga, fazendo com que a pessoa consiga treinar mais’’, explica a nutricionista Tainá Carvalho, especialista em nutrição aplicada ao exercício físico pela Universidade de São Paulo (USP).
Mas tem um detalhe que costuma passar batido quando essa substância está em pauta, e nunca é lembrado pelas propagandas: a ação dela varia de pessoa para pessoa. “Há um gene, o CYP1A2, responsável pela metabolização de 95% da cafeína ingerida, e nem todo mundo tem (a variante que metaboliza rápido)’’, revela Luiza. “Para quem apresenta essa deficiência, os chamados metabolizadores lentos, a cafeína pode ser tóxica e não deve ser administrada’’, completa a nutricionista.
Um estudo publicado pela Associação Médica Americana revela que pessoas com esse perfil genético — a minoria na população — correm maior risco de infarto ao ingerir cafeína com frequência na comparação com os metabolizadores rápidos.
E olha a ironia: uma pesquisa divulgada no periódico Medicine & Science in Sports & Exercise constatou que indivíduos sem o “gene da cafeína” tiveram um desempenho esportivo 14% pior ao tomar a substância. Assim, cai por terra a história de que a turma dos energéticos faria bem para todo mundo.
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Para deixar as coisas no devido contexto, a cafeína tem benefícios reconhecidos, desde que o corpo a tolere numa boa e não se exagere na dose. A Anvisa, seguindo o padrão de diversas outras agências regulatórias pelo mundo, recomenda a ingestão diária de no máximo 400 mg.
Mas os profissionais sugerem prestar atenção a eventuais efeitos colaterais mesmo diante de uma quantidade menor — dor de cabeça, tremores, insônia e taquicardia são algumas das reações.
“A hipervigilância causada pela cafeína nem sempre é positiva. Ela faz o cérebro trabalhar mais, mas não de forma saudável e com qualidade’’, explica o neurologista Kelson Almeida, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI). “A cafeína também mexe com o nosso mecanismo do sono, o que pode acabar resultando em cansaço depois, justamente o que a pessoa não quer’’, avisa.
E você faz ideia de quanto de cafeína tem em cada bebida de ação energética? Uma xícara de 150 ml de chá-preto pode ostentar até 40 mg; 30 ml de café expresso conta com cerca de 65 mg; uma lata de 250 ml de energético dispõe, em média, de 90 mg; e a dose da maioria dos supercafés varia entre 67 e 80 mg.
Vendo esses números, fica a sensação de que um cafezinho entrega mais energia que um energético em si, não? Sim, alguns especialistas até defendem isso, mas vale a pena analisar outros ingredientes dessas bebidas que podem contribuir para deixar o corpo ligadão.
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Além da tão citada cafeína, os energéticos comuns vêm com um combo que leva o aminoácido taurina, vitaminas do complexo B e açúcar, fonte elementar de combustível para as células. Já os supercafés recorrem aos triglicerídeos de cadeia média (TCM) como fonte extra de energia e, entre outros componentes, reúnem L-carnitina, cromo, canela, gengibre, pimenta, cúrcuma etc.
De forma geral, não há um consenso científico sobre a eficácia desses componentes, seja para o desempenho físico, seja para o intelectual.
“Existe muita controvérsia no campo da suplementação’’, afirma o farmacêutico Marcelo Polacow Bisson, vice-presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo. “Da mesma maneira que temos estudos indicando que determinado composto auxilia na melhora da performance e da atenção, há outros mostrando que não existe esse benefício”, completa.
Embora alguns dos itens isolados presentes nesses produtos sejam essenciais para o organismo, ainda não está claro se turbinar seu aporte trará os resultados esperados. Polacow dá o exemplo das vitaminas do complexo B, encontradas em vários alimentos e na maioria das bebidas energéticas.
Esses nutrientes são caros à regulação do metabolismo e ao sistema nervoso, mas… “Apesar de existir uma fundamentação teórica, não temos evidências de que uma pessoa que suplementou a substância vá render mais que outra que não fez isso”, esclarece o farmacêutico.
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Os estudiosos também pedem cautela com as extrapolações. O TCM, que é uma das gorduras do óleo de coco e do supercafé, é, de fato, absorvido mais rápido pelo organismo em comparação com as outras gorduras. Mas alegar que ele aprimora o resultado dos treinos, estimula o emagrecimento ou consegue interferir na forma com que a cafeína é aproveitada carece de comprovação.
“O consumo de TCM não é levado a sério como suplemento dentro da comunidade científica porque os estudos mostram que ele não está ligado a esses efeitos’’, informa Guilherme Artioli, professor da Escola de Educação Física e Esportes da USP.
Outro ponto polêmico relativo às bebidas de efeito energético são as dosagens de alguns de seus componentes, consideradas insuficientes para promover os benefícios alardeados. “Às vezes são tão baixas que servem mais para marketing do que qualquer outra coisa’’, opina a nutricionista esportiva e comportamental Desire Coelho, de São Paulo.
Ela cita o exemplo da pimenta, que integra a receita de alguns supercafés e congêneres. Sabe-se que o vegetal oferta capsaicina, um termogênico. “Mas quanto de pimenta é necessário para o organismo produzir calor? Bastante. E inclusive isso pode vir junto de efeitos colaterais. Como a quantidade nessas bebidas é baixíssima, acaba que não fornecem o que prometem”, analisa.
Para Desire, as pessoas acham que estão consumindo um monte de nutrientes embutidos nessas fórmulas, mas, na verdade, o que mexe o ponteiro é só a cafeína.
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A nutricionista Alessandra Luglio, consultora da marca A Tal da Castanha, que participou do desenvolvimento do UltraCoffee, afirma que existe um motivo para as dosagens mais baixas: a combinação de funcionalidades. “Há uma ação sinérgica. Os ativos atuam juntos para a funcionalidade acontecer, por isso as doses não são altas’’, justifica.
Por outro lado, pesquisadores questionam a carência de estudos demonstrando resultados dessa sinergia. Essa é, aliás, uma das grandes controvérsias envolvendo certos suplementos. Na teoria, tudo faz sentido. Na prática, não se vê tanta pesquisa clínica examinando e batendo o martelo sobre os benefícios.
Em algumas situações, só recorrendo mesmo aos profissionais para entender se algo tem chance de funcionar. Eis o exemplo da L-carnitina, amina presente na família dos supercafés. Ela participa do transporte de gordura para dentro da mitocôndria, a usina de energia das células. Então, se você quer queimar os pneuzinhos nos exercícios, seria bacana suplementar a substância para os tecidos torrarem a gordura ali dentro, certo?
Não, porque ninguém nos avisou antes que os músculos já estão naturalmente lotados dessa molécula. “Daí que colocar carnitina dentro do músculo é tão difícil quanto colocar uma pessoa dentro de um metrô superlotado. Não dá’’, compara Artioli.
Na visão de Desire, os supercafés surfam numa onda que envolve, na realidade, efeito placebo e outras mudanças de comportamento. “A pessoa toma acreditando que vai ser efetivo e, aí, passa a cuidar mais da alimentação, deixa de pegar aquele docinho depois do almoço e acaba sentindo uma diferença. Mas é mais pela mudança na rotina do que por um efeito direto do suplemento’’, opina.
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No fundo, tudo é uma questão de alinhamento de expectativas. Não adianta encarar bebidas estimulantes como o segredo de uma nova vida.
Para Artioli, essa ideia surge porque muitas pessoas tendem a olhar para os alimentos como se fossem medicamentos e ficam esperando uma ação imediata. “Elas esquecem que não existe saúde numa pílula. O que traz resultados é a dieta como um todo mais seus hábitos de exercício. Não tem segredo”, afirma o educador físico.
Agora, não dá para botar o supercafé no mesmo balaio de gatos das latinhas de energético. Elas são basicamente refrigerantes recheados de cafeína, açúcar (ou adoçante artificial), conservantes, aromatizantes, corantes, entre outros elementos utilizados pela indústria. Tem mais: especialistas desaconselham o consumo rotineiro para evitar de comprometimentos no sono a piripaques cardíacos — e nunca misturar com álcool.
É um cenário diferente do supercafé, ainda que nem ele nem o cafezinho sejam bem-vindos em altas doses. “Para alguém que quer praticidade, não tolera comer de manhã, gosta do sabor e tem dinheiro para investir, é uma opção. Mas eu sempre explico que não é algo milagroso’’, conta Tainá Carvalho.
Nesse contexto, e diante do sucesso da categoria no mercado e na internet, o ideal é consultar um profissional antes de sair comprando.
“Às vezes uma pessoa decide tomar um supercafé sem saber que tem contraindicações’’, comenta a nutricionista Ágatha Crystian, mestre em Alimentos e Nutrição pela UFPI. “Nem todo mundo deve consumir essas bebidas estimulantes, uma vez que podem fazer mal a pessoas com ansiedade, hipertensão, arritmia cardíaca, entre outras condições”, completa.
O acompanhamento nutricional não só ajuda a visualizar se o produto está liberado como a definir limites e combinações. Até porque existem estratégias para manter a disposição que não dependem de bebidas de ação energética.
Ágatha indica quatro delas: manter a hidratação; buscar um sono de qualidade; equilibrar a alimentação, de preferência com um profissional que individualize suas necessidades e possíveis restrições; e cuidar de desgastes diários relativos a trabalho, estudos ou problemas pessoais, que consomem a saúde mental e pioram o desempenho em geral.
Ok, convenhamos que nem sempre vai ser tranquilo fazer tudo isso, mas, em matéria de performance e energia, não existe atalho. “E, muitas vezes, a automotivação acaba influenciando muito mais do que qualquer estimulante’’, diz a nutricionista.
Nem toda bebida é igual!
Entenda o que é e para que serve cada categoria de suplemento apreciada por quem busca energia e se exercita
+ Energéticos
Estimulam o metabolismo, ativando o estado de alerta e reduzindo a moleza. Quase todos são à base de cafeína. Podem ser ingeridos antes e durante o treino.
+ Isotônicos
Repõem os sais minerais perdidos, evitando câimbra e desidratação. Contêm sódio, potássio, cloreto e glicose na composição. São indicados durante e depois de treinos longos.
+ Termogênicos
Aumentam a temperatura corporal, acelerando o metabolismo. Não há consenso entre os especialistas se ajudam na prática esportiva e na perda de peso.
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Desvendando os supercafés
Fora a cafeína, eles trazem diversos outros componentes na fórmula. Conheça um a um
+ L-carnitina: Auxilia na produção de energia a partir da queima de gorduras. Mas não há benefícios comprovados da suplementação visando ao emagrecimento.
+ Colina: Age na cognição. Experimentos com animais indicam resultados com suplementos, mas é preciso validação robusta em seres humanos.
+ TCM: São os triglicerídeos de cadeia média, facilmente absorvidos pelo organismo. Dão energia, só que não há pesquisas cravando efeito emagrecedor.
+ Cromo: O mineral potencializa a ação da insulina, equilibrando a carga de glicose no sangue. Especula-se que ajude a regular o apetite, mas faltam estudos.
+ Canela e gengibre: Têm propriedades termogênicas e antioxidantes. O rótulo dos produtos não informa suas dosagens, o que dificulta a avaliação da eficácia.
+ Pimenta e cúrcuma: A pimenta é termogênica e a cúrcuma tem ação anti-inflamatória. Apresentam a mesma questão dos outros ingredientes naturais — as doses não são informadas.
Energéticos naturais
Além do café, outros ingredientes contam com propriedades estimulantes
+ Infusões: Os chás da Camellia sinensis (preto, verde, branco e oolong) e também o chá-mate contêm doses generosas de cafeína — uma xícara de 200 ml de chá-preto tem até 40 mg.
+ Matcha: Feito de folhas jovens da Camellia sinensis, é um concentrado do chá-verde e tem quase o dobro de cafeína que ele. Por isso, recomenda-se tomar no máximo duas vezes ao dia.
+ Pó de guaraná: Obtido a partir de sementes secas, torradas e moídas, pode ser adicionado a sucos. Possui alto teor de cafeína, variando entre 2 e 5% do peso seco — maior que do café, que é de 1 a 2%.
+ Chocolate amargo: O cacau também carrega cafeína. Então o teor no chocolate é diretamente proporcional ao poder estimulante. Uma barra de chocolate amargo concentra até 40 mg.
Os supercafés e a nova onda das bebidas energéticas Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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