Você já viu alguém enfezado? Quando uma pessoa está irritada, sem paciência e descontente com o mundo sem motivo nenhum? Olha, nem dá para julgar: é exatamente assim que se sente alguém cheio de fezes — e é justamente daí que vem o termo.
Na verdade, o significado soa até brando, porque a constipação pode gerar mais que irritabilidade: pode prejudicar o sono e o apetite, causar dores abdominais e provocar um estresse generalizado — físico e mental.
Para a maioria das pessoas, fazer cocô é algo absolutamente trivial. Afinal, mesmo nosso organismo sendo bem eficiente na absorção de nutrientes, ele não consegue aproveitar tudo o que ingerimos. Sempre sobra aquele resto, misturado a um monte de micro-organismos, que acaba indo parar na privada.
Mas, para cerca de 30% dos brasileiros, evacuar é uma verdadeira batalha que envolve imprevisibilidade, força, desconforto e paciência.
“Muita gente fica com receio de ir ao médico porque acha que intestino preso é coisa simples, não é nada sério. Mas só quem passa por isso constantemente sabe o grande comprometimento na qualidade de vida”, comenta o clínico e cirurgião do aparelho digestivo Samuel Okazaki, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
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Apesar de o acúmulo de fezes não gerar problemas imediatos ao organismo — não, cocô preso não vai intoxicar seu corpo —, a prisão de ventre não deve ser subestimada, mas, sim, tratada, para não acabar gerando condições bem mais penosas.
O primeiro passo para reconhecer e combater a constipação intestinal é entender propriamente o que caracteriza esse enrosco. Hoje, para definir e identificar o problema, os médicos utilizam as normas do Consenso de Roma, uma reunião de especialistas que estabeleceu critérios a fim de auxiliar no diagnóstico de transtornos gastrointestinais.
A prisão de ventre envolve múltiplos fatores, e oito em cada dez cidadãos experimentam um episódio pelo menos uma vez na vida. Mas nem sempre é uma doença crônica: pode acontecer de forma pontual e esporádica, em viagens, por traumas emocionais ou pelo uso de remédios.
Um dos critérios que o profissional de saúde usa para detectar a condição é a frequência com que se faz cocô. No entanto, seu intestino não precisa ser um “reloginho”: ninguém é obrigado a evacuar todo dia.
“Muito paciente chega dizendo que está preocupado porque vai ao banheiro a cada dois ou três dias e aquilo não seria normal. Não é assim. Outros fatores importam mais que a frequência de evacuações”, afirma o coloproctologista Alexandre Bertoncini, membro do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD).
“É fato que 80% da população evacua entre uma vez a cada três dias e três vezes por dia, só que isso não é uma regra. Se uma pessoa defeca a cada três dias sem fazer força e tem fezes macias, aquele é o normal para ela. Assim como um indivíduo que evacua três vezes por dia e passa a fazer aquilo uma vez só pode estar com algum problema, mesmo indo ao banheiro todos os dias. É tudo relativo”, explica o médico.
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Fazer cocô poucas vezes por semana só vira um problema mesmo caso venha acompanhado de incômodos como distensão abdominal, cólica, sensação de entupimento… Até porque o que cada um come pode alterar a necessidade e a frequência das idas ao banheiro.
“Uma pessoa que tem uma dieta rica em carboidratos, alimentos de alta absorção, muitas vezes não produz tantos resíduos para serem evacuados. Assim como alguém que come pouca quantidade de comida geralmente produz menos bolo fecal. Isso tudo influencia a rotina de evacuações”, esclarece Bertoncini.
Outro fator determinante na identificação da prisão de ventre é o aspecto das fezes. As aparências importam. E são tão importantes que existe até uma tabela de classificação, a escala de Bristol. Ela vai do tipo 1 (fezes em bolinha, bem endurecidas e ressecadas) até o 7 (evacuação completamente líquida).
As fezes rotuladas como 4, que são longas, macias, lisas e de fácil expulsão, são consideradas as ideais. Já as do tipo 1 ou 2, longas mas compactas, podem indicar constipação.
Além da frequência e da aparência, fazer muito esforço para defecar, sentir que não saiu tudo ou que o ânus está obstruído também são características pontuadas pelo Consenso de Roma para o diagnóstico da prisão de ventre.
Tudo isso é avaliado pelo médico na primeira via de detecção do problema: a conversa com o paciente. Por isso é muito importante observar esses detalhes na própria rotina intestinal, e informar tudo detalhadamente ao especialista durante a consulta.
A boa notícia é que, em 80% das ocorrências, a constipação é do tipo funcional. Traduzindo: não há nada de errado no organismo. Nesses casos, a dificuldade está associada a velhos fatores conhecidos do estilo de vida.
“O movimento normal do intestino depende de líquidos, de fibras e de motilidade. Por isso, o primeiro passo é aconselharmos uma melhor ingestão de fibras e de água e a prática de atividade física”, diz a gastroenterologista Vanessa Prado, da Sociedade Brasileira de Cirurgia do Aparelho Digestivo (SBCD).
Dentro dessa orientação, vale a pena saber de antemão alguns detalhes. “As fibras são essenciais porque, como não somos capazes de digeri-las, elas acabam formando o esqueleto do nosso bolo fecal. Mas é preciso saber que nem todos os alimentos de origem vegetal têm fibras e que métodos de preparo, como refogar, assar, cozinhar ou grelhar verduras e legumes, podem quebrar essas substâncias antes de as aproveitarmos”, alerta Bertoncini.
Além disso, essa constipação mais comum é diretamente afetada pelo estado de espírito. “Há bastante influência de razões psicológicas e emocionais, que devem ser investigadas e tratadas juntamente com as medidas comportamentais e a ajuda de laxativos, se necessário”, afirma a gastroenterologista Cristiane Nagasako, professora do Departamento de Clínica Médica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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Mudar hábitos e cuidar da saúde mental já dão uma mão para o intestino funcionar. Só que tem outro fator decisivo nessa história: não prender ou postergar a vontade de se aliviar.
“Todos temos um reflexo evacuatório quando as fezes chegam à parte final do intestino. Os famosos ‘movimentos peristálticos’ nada mais são que contrações coordenadas e sucessivas do intestino, estimuladas pelo bolo alimentar ou pelo bolo fecal, dependendo de onde ele estiver”, explica a docente da Unicamp.
“Se esse estímulo é ignorado repetidamente, a inibição pode levar a uma perda do reflexo. E, aí, a pessoa acaba não sentindo mais vontade de evacuar e ficando com constipação”, conclui a médica.
No entanto, sintomas como não sentir vontade de ir ao banheiro ou demorar muito para conseguir expulsar o cocô podem ter uma razão mais complexa do que o normal.
“Em alguns casos, pode haver um problema nos músculos do períneo. Se eles não estiverem coordenados corretamente, o intestino não consegue ter forças para eliminar as fezes. É o caso de pessoas que ficam sentadas na privada horas tentando evacuar e o cocô tá lá, preso na saída”, descreve Vanessa.
“Mulheres que têm parto normal, por exemplo, podem ter problemas na musculatura pélvica, e isso levar à constipação. Mas fortalecer esses músculos já melhora a força e a capacidade de eliminação das fezes”, completa a gastro.
Esse é um exemplo do que os especialistas chamam de constipação secundária, ou orgânica. “Mesmo sendo saudável, tendo uma alimentação boa e fazendo exercícios, o indivíduo pode sofrer de prisão de ventre. Então é preciso fazer uma investigação mais profunda da causa”, diz Okazaki.
“O intestino é influenciado por vários fatores ou problemas metabólicos, fisiológicos e até neurológicos. E tudo isso tem de ser averiguado”, acrescenta o especialista.
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O que respinga lá dentro da barriga? Doenças tão diversas como hipotireoidismo, Parkinson, diabetes e câncer de intestino podem acarretar constipação.
Outra causa não incomum é a síndrome do intestino irritável. “Cerca de 60% das pessoas com a condição manifestam a doença mais em forma de diarreia, mas 30% apresentam uma forma mais constipante”, relata Bertoncini.
Mulheres jovens, que evacuam até uma vez por semana, estão entre as principais candidatas à constipação crônica. E a situação pode ser resolvida com uma intervenção dietética ou, em casos mais complicados, na mesa de cirurgia.
“É um problema motor intestinal. Diversos medicamentos já ajudam a melhorar a motilidade, mas, em casos extremos, temos que recorrer a um procedimento para retirar a região do intestino em que o trânsito é mais lento”, detalha Okazaki.
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Uma ocorrência mais grave, por exemplo, é uma doença conhecida como inércia colônica — nela, a velocidade do trânsito local é bem reduzida porque a inervação intestinal está praticamente ausente. Resultado: os portadores sofrem com uma ou duas evacuações por mês, náuseas, distensão e fortes dores abdominais. Não é raro ter que recorrer a uma cirurgia.
No Brasil, uma causa que também deve ser considerada é a doença de Chagas, ainda endêmica no país. Sim, o mal provocado por um parasita frequente em regiões com baixa infraestrutura não afeta só o coração.
“Ele pode acometer o intestino, e o sujeito experimenta uma constipação progressiva que, com os anos, piora com a perda da inervação intestinal”, diz Bertoncini. Outra consequência séria é a formação do megacólon chagásico, dilatação e alongamento anormais do intestino grosso, que geralmente só se resolve com o bisturi.
Falamos bastante das possíveis origens da constipação, mas não podemos esquecer o que o intestino preso pode desencadear. A condição aumenta o risco de aparecerem divertículos, hemorroidas, fissuras anais… “Esses problemas nem sempre surgem devido à constipação, mas ela com certeza predispõe seu desenvolvimento e as complicações que podem vir com ele”, explica Cristiane.
Da infância para a vida
Muito adulto constipado foi uma criança com dificuldade para ir ao banheiro. Por isso, é essencial dar atenção a momentos marcantes como desfralde, rejeição a usar o banheiro e episódios dolorosos de evacuação.
“Segurar o cocô é importante para o desenvolvimento porque a criança está ganhando autonomia. Aos poucos, ela vai percebendo que o controle das fezes dá algum controle sobre a própria vida, e isso pode fazer com que ela aja diferente” analisa Guilherme Polanczyk, professor de psiquiatria da infância e adolescência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
“Existe também a fantasia infantil de que o cocô é algo que sai de dentro, que ela está perdendo alguma coisa, que pode se esvaziar, e isso tudo pode tornar o processo um pouco mais difícil”, completa.
Essa é, portanto, uma fase que exige a compreensão, a paciência e o acolhimento dos pais. “Não adianta querer controlar local ou ocasião para os mais novos evacuarem. Quem faz isso pode despejar uma ansiedade sobre a criança, que acaba ou fazendo cocô em todo lugar ou se segurando sempre”, avisa Polanczyk.
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O comportamento de retenção é bem comum na infância: além da vergonha, pode estar ligado ao medo da dor após uma evacuação mais sofrida. Mas dá para notar alguns sinais de que a criança está vivendo sob contenção.
“Sabe aquela que vai pro canto e se abaixa, se espreme e fica bem encolhidinha, enquanto a mãe diz ‘Olha, ela tá tentando fazer cocô’? É justamente o contrário: um exemplo comum de quando a criança está se concentrando para a vontade passar”, esclarece Mariana Deboni, gastroenterologista pediátrica do Instituto da Criança da USP.
Outra chateação entrelaçada com esse comportamento é a incontinência fecal. Calma! Incontinência não é o oposto de prender o cocô? Sim, Mariana explica que o reto, ampola que fica após o intestino grosso, é considerado uma cavidade “virtual”, ou seja, foi feita para ficar vazia e distender apenas na hora que as fezes chegarem.
Quando isso acontece, sentimos vontade de evacuar e o ideal é atender o chamado. Só que a criança, ao associar a evacuação a algo ruim, opta por prender, transformando o reto numa cavidade “real” e cheia de fezes.
“Assim, o músculo que forma o reto acaba aumentando de tamanho, e as fezes lá dentro irritam a mucosa. Daí o pequeno começa a ter retenção e perdas involuntárias de um cocô líquido, malcheiroso e socialmente inaceitável”, descreve a médica. Não adianta brigar com a criança: ela perdeu o controle sobre o processo e precisa de ajuda especializada.
Para resolver situações afins e não levar a constipação anos à frente, nada melhor do que habituar o intestino e ir conversando com o pediatra.
“Existe uma técnica chamada treinamento de toalete. A família estabelece um horário fixo para levar a criança ao banheiro e deixar que ela se concentre naquilo todos os dias. Ali pode não acontecer uma evacuação, mas é importante ela criar o hábito de ir ao banheiro, usar o redutor de assento no vaso sanitário, não levar celular ou nada que a distraia e usar um banquinho para apoiar os pés, simulando a posição de cócoras”, ilustra a gastropediatra Maria Tereza Guiotti, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Não importa a idade: ninguém merece (nem precisa) viver refém da constipação.
Chega de constipação: como liberar o trânsito Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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