domingo, 17 de abril de 2022

Desafios no sangue: pesquisa faz um retrato da hemofilia no Brasil

Uma falha de origem genética no processo de coagulação do sangue faz com que cerca de 13 mil brasileiros convivam com a hemofilia, uma doença hereditária rara e predominantemente masculina marcada por hemorragias frequentes e prolongadas, muitas vezes espontâneas.

Diante dos riscos e dos receios que envolvem a condição e da necessidade de um controle rigoroso, é de imaginar que não são poucas suas repercussões na rotina dos pacientes e familiares. Para entender a fundo esse cenário, VEJA SAÚDE, a farmacêutica Roche e a Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) se uniram e realizaram a pesquisa Um Retrato da Hemofilia no Brasil.

Feita pela internet entre janeiro e fevereiro de 2022, ela conta com a participação de 65 cuidadores de crianças e adolescentes de até 16 anos com hemofilia tipo A moderada ou grave, contemplando respondentes de todas as regiões, mais de 90% mães.

“Dar voz à comunidade que vive com hemofilia permite conhecer o verdadeiro impacto que essa doença pode gerar a todos em seu entorno e buscar soluções que garantam mais qualidade de vida e inclusão aos pacientes”, diz Michelle Fabiani, diretora médica da Roche Farma Brasil.

O desafio começa cedo para os pequenos e sua família.

Os episódios de sangramentos mais difíceis de estancar costumam ocorrer logo no início da vida, e o aparecimento de manchas roxas pelo corpo — sinal de sangue que extravasou internamente — se intensifica quando o bebê dá seus primeiros passos e fica mais sujeito a quedas e trombadas pela casa. Outra característica é a demora na cicatrização de cortes e machucados.

A desordem hemorrágica é causada por uma mutação genética que leva à escassez ou à ausência de proteínas responsáveis pela coagulação do sangue. No caso da hemofilia tipo A, a mais comum, o problema se encontra no fator VIII — na do tipo B, o organismo não produz o fator XIX.

“O tratamento se baseia na reposição do fator faltante, que é feito de forma endovenosa. Isso por si só já é uma dificuldade para as famílias. Se alguns adultos sentem medo até de tomar vacina, imagine o que é para uma criança ser espetada para receber as infusões três vezes por semana”, conta a hematologista pediátrica Christiane Maria da Silva Pinto, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

No estudo de VEJA SAÚDE, 98% dos entrevistados relatam atribulações com a terapia, sobretudo a frequência e a forma de aplicação. “O choro dos filhos chega a desestruturar os pais”, nota a médica.

<span class="hidden">–</span>Gráficos: Thiago Lyra/SAÚDE é Vital

As raízes da hemofilia

A doença até pode ocorrer em meninas, mas isso é bem raro. É que a produção do fator de coagulação decorre de uma mutação no cromossomo X. Para uma mulher ter a doença, a alteração precisaria estar nos dois cromossomos X. Por isso, em geral, ela é apenas portadora do gene da hemofilia.

No homem, por sua vez, basta um X alterado herdado da mãe para a doença se manifestar.

“O sangue precisa ser fluido para correr nas artérias. Os fatores coagulantes é que impedem um sangramento incessante diante de qualquer corte”, explica Christiane Pinto. Na hemofilia grave, a pessoa produz menos de 1% de um fator. Na forma moderada, até 5%. Acima disso, o distúrbio é classificado como leve.

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Rotina de tratamento

Os medicamentos para o controle da hemofilia são oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e distribuídos por uma rede de hemocentros. Entre os participantes da pesquisa, um terço visita essas instituições pelo menos uma vez ao mês.

Somando o tempo de deslocamento e o de consulta, gastam pelo menos meio período do dia nessa função. Nas idas aos centros de referência, os responsáveis recebem o treinamento para fazer eles próprios a aplicação das infusões na veia.

Isso já virou rotina para 65% dos entrevistados — mas quase metade deles relata que demorou mais de seis meses até ter confiança para assumir a tarefa em casa.

“É importante destacar que, embora o tratamento seja complexo, também é muito efetivo. Sem ele, não seria possível garantir o bom estado de saúde das crianças”, diz a hematologista Francine Doty Campoy, do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc).

“Desde 2011, o Ministério da Saúde provê o tratamento profilático a todos aqueles com hemofilia moderada e grave. São aquelas infusões que antes eram fornecidas apenas sob demanda, quando havia algum sangramento aparente”, contextualiza Tatyane Rebouças, coordenadora de enfermagem do Ambulatório de Coagulopatias do Hemoce, a unidade de referência do Ceará. “Os centros contam ainda com cuidado multidisciplinar, com fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo, dentista, ortopedista, enfermeiros, além dos médicos”, ressalta.

Seguir à risca as orientações dos profissionais e nunca deixar de fazer a reposição do fator coagulante é fundamental para evitar as repetidas perdas de sangue e as hemorragias internas, capazes de afetar músculos e articulações dos punhos, joelhos e cotovelos e comprometer irreversivelmente os movimentos de pernas e braços.

“Uma boa abordagem, feita por uma equipe apta a informar e envolver os pais, faz toda a diferença para conseguir a adesão a um tratamento que exige dedicação diária dos familiares”, pontua Francine.

Apesar da vontade expressa de que os pequenos possam ter mais liberdade para brincar e fazer exercícios, oito em cada dez cuidadores avaliam como boa ou ótima a qualidade de vida das crianças. Nesse sentido, reconhecem o papel da tecnologia na estrutura de cuidados, como os aplicativos de celular que ajudam a calcular a dose e os intervalos das infusões.

“São recursos muito bem-vindos. Aqui no Hemoce estamos desenvolvendo uma ferramenta própria para facilitar os registros do dia a dia. Quanto mais informação o paciente traz para a consulta, melhor é o ajuste do tratamento”, conta Tatyane.

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O que será do amanhã?

De fato, a via injetável e as múltiplas aplicações do medicamento incomodam as famílias, e 95% das crianças dependem de ajuda para o manejo correto das infusões. Ainda assim, o maior desejo dos cuidadores é por soluções capazes de acabar com os sangramentos. A medicina vem correndo atrás.

“De uns dez anos para cá, inovações terapêuticas têm contribuído cada vez mais para o bem-estar dos pacientes. Hoje, por exemplo, há o fator de meia-vida estendida, que dura mais tempo na circulação e proporciona menos infusões e picadas na rotina”, observa Christiane.

Além de progressos nas medicações de uso contínuo, as promessas para o controle da hemofilia envolvem terapias gênicas. O objetivo é corrigir erros no DNA que, em última instância, interferem na produção adequada dos fatores de coagulação.

Um estudo recente, capitaneado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), traz a esperança de que, no futuro, uma única intervenção no genoma possa manter a doença silenciada por anos.

Em outra frente, esta uma realidade para pessoas que têm a hemofilia A, já está disponível um novo anticorpo monoclonal que imita a ação do fator VIII e reduz substancialmente as taxas de sangramento com só uma picadinha semanal. Trata-se de uma injeção subcutânea, não na veia, o que contribui para a aceitação e a realização do tratamento.

“Por uma questão de custo, o SUS vem fornecendo essa terapia apenas àqueles que deixam de responder às infusões convencionais”, explica Francine. Se depender do empenho da FBH, a restrição deve cair por terra.

“Compreendemos que o orçamento do governo é finito, mas, se temos uma medicação subcutânea que facilita a aplicação, queremos que todos tenham acesso. Precisamos avançar e atender logo crianças de até 12 anos, que têm mais dificuldade com a técnica endovenosa”, defende Tania Pietrobelli, presidente da entidade que representa os pacientes.

A associação, aliás, é reconhecida pelos entrevistados pelo protagonismo na conscientização sobre a doença, inclusive nas escolas. E o trabalho continua… Para seis em cada dez respondentes, falta conhecimento para acolher estudantes com hemofilia — e há relatos inclusive de rejeição de crianças em colégios em função disso.

“É por essa razão que preparamos cartilhas para serem distribuídas nas escolas a partir de 17 de abril, o dia mundial da hemofilia”, revela Tania.

A crença geral, das famílias, dos profissionais e dos grupos que lutam pelos pacientes, é que a disseminação de informações corretas derrube mitos e preconceitos, dando a oportunidade para que essas crianças se desenvolvam plenamente, felizes e com qualidade de vida.

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De olho nos sinais da hemofilia

O que pode dedurar essa doença rara hematológica

Buscar o diagnóstico da hemofilia e iniciar a terapia o mais cedo possível é essencial para evitar sequelas. Um exame chamado coagulograma mostra se há alterações suspeitas no sangue.

Se a resposta for positiva, para confirmar a doença é feito um teste específico de dosagem dos fatores de coagulação. Alguns sinais dão a pista de que se deve procurar o médico:

• Hematomas mais frequentes que o habitual e em lugares menos comuns, como no tórax.
• Dificuldade em estancar o sangue ao fazer exames ou após picadas de injeções e vacinas.
• Juntas doloridas, inchadas e quentes sinalizam sangramentos internos nas articulações.

Dia a dia protegido

Alguns ajustes na rotina garantem uma vida mais tranquila aos pacientes e cuidadores

Consultas e exames: as avaliações regulares servem para checar o estado geral e se a reposição do fator de coagulação (o tratamento) está adequada.

Gerenciamento das infusões: costumam ser feitas antes de ir à escola ou mais próximo da hora de se exercitar — as atividades diárias são referência para o melhor horário das aplicações.

Organização em casa: armazenar o medicamento na geladeira, lavar bem as mãos e escolher um local calmo para as aplicações são dicas para não ter erro com as infusões.

Cuidados ao se exercitar: com a reposição do fator feita de forma correta, a atividade física está liberada, mas é bom evitar esportes de alto contato.

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Desafios no sangue: pesquisa faz um retrato da hemofilia no Brasil Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

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