C“Como os soviéticos possuem a capacidade de reagir no nível mais alto de violência militar às operações previstas nos planos BERCON, é essencial que as nações da OTAN aceitem essa possibilidade, e reconheçam o fato de que todas as forças e países-membros devem estar preparados para ação máxima, incluindo uma guerra geral, antes que qualquer um destes planos seja implementado.”
Começa assim o documento SHAPE/70/62, elaborado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, no dia 24 de março de 1962. O texto, que tem 21 páginas, recebeu a classificação “Cosmic Top Secret”, o mais alto dos quatro níveis de confidencialidade adotados nas comunicações do grupo. Esse sigilo tinha razões de sobra: no documento, a OTAN descreve o que faria em caso de guerra nuclear entre ela (que naquela época era formada por 15 países-membros) e a URSS.
Era um momento delicado. Os soviéticos e o bloco ocidental tinham acabado de se estranhar na chamada Crise de Berlim, que foi até novembro de 1961. Ela começou no dia 4 de junho, quando o líder soviético Nikita Khruschev se encontrou com o presidente americano recém-empossado, John Kennedy, e comunicou a ele um ultimato: a URSS queria que os Estados Unidos, a França e o Reino Unido retirassem seus soldados de Berlim Ocidental (que era controlada por esses países).
A reivindicação em si não era nova – Khruschev vinha pedindo a retirada das tropas desde 1958 –, mas as condições sim. Agora, a URSS estava determinando que as tropas ocidentais deveriam sair da cidade até o dia 31 de dezembro de 1961. E se não saíssem? Ninguém teve coragem de perguntar o que aconteceria, mas a tensão foi crescendo ao longo do ano.
Até que, em 13 de agosto, os soviéticos fecharam a fronteira entre as duas metades de Berlim com uma cerca de arame farpado, e começaram a erguer o muro que separaria a cidade por décadas. Após um mal-entendido com diplomatas americanos, que foram barrados ao tentar atravessar a fronteira, os EUA chegaram a posicionar tanques do seu lado da cerca – e a URSS respondeu fazendo o mesmo. Qualquer imprevisto ou escorregada de um dos lados poderia começar uma guerra. Kennedy e Khruschev conversaram, aceitaram retirar seus respectivos tanques, e a crise acabou em novembro.
Mas os americanos não esqueceram o episódio, e começaram a trabalhar num plano de ação para um eventual conflito militar. Era o SHAPE/70/62 (a sigla é uma abreviação, em inglês, de “Quartel-General Supremo dos Poderes Aliados na Europa”, o nome da sede da OTAN, que fica na Bélgica). Uma óbvia resposta ao que acontecera poucos meses antes – tanto era assim que, internamente, o texto ficou conhecido como “Plano de Contingência de Berlim”.
No documento, a OTAN descrevia um problema (ela achava que os soviéticos poderiam atacar Berlim), e apresentava a solução: uma sequência de ataques, identificados pela sigla BERCON, em que os Estados Unidos enfrentariam a URSS em território alemão, primeiro com armas convencionais e depois com artefatos nucleares, detonando cinco bombas atômicas “de baixa potência” sobre “alvos estritamente militares”.
O objetivo era “demonstrar a determinação da OTAN e enfatizar aos soviéticos o risco e as consequências de um escalamento para guerra geral”. Ou seja, pretendiam usar armas nucleares para assustar os russos e dissuadi-los de fazer o mesmo. Só que o plano também previa a invasão da Alemanha Oriental por tropas ocidentais, algo que dificilmente a URSS aceitaria, e uma ação particularmente perigosa: a BERCON Delta. Nessa etapa, os EUA e aliados usariam suas forças navais para impedir o trânsito de navios soviéticos, inclusive não-militares.
Os americanos achavam que isso provocaria “um ataque soviético de larga escala”, com submarinos da URSS disparando em várias partes do mundo. E depois, o que aconteceria? O plano da OTAN (que foi “desclassificado”, ou seja liberado ao público, décadas mais tarde) não diz; ele termina aí. Só que os americanos tinham outro – que foi elaborado separadamente, sem a participação dos aliados europeus. Ele também foi redigido como resposta à crise de Berlim. Mas era ainda mais secreto. E sua estratégia era bem diferente.
O
“O peso do ataque lançado contra o bloco Sino–Soviético seria tão grande que, mesmo fortemente atingidos pela retaliação da URSS, os EUA claramente prevaleceriam.” Essa é uma das conclusões do JCSM-431-61, um relatório confidencial elaborado pelos Joint Chiefs of Staff, o comando supremo das Forças Armadas dos EUA, em junho de 1961. No documento, que tem 54 páginas (e, assim como o anterior, só foi revelado décadas mais tarde), os americanos avaliam seu poder nuclear e calculam o que aconteceria se ele fosse usado contra a URSS e a China.
O texto descreve cinco situações nas quais os EUA poderiam tomar “a decisão de iniciar uma guerra nuclear geral”. Ela poderia começar se: 1) os soviéticos invadissem a Alemanha Ocidental, 2) atacassem bases americanas por lá, 3) se metessem num eventual conflito para ajudar as tropas da Alemanha Oriental, 4) assumissem o controle de Berlim ou 5) se houvesse forças americanas “sob risco de aniquilação devido a ataques aéreos soviéticos”, inclusive do tipo não-nuclear.
Se qualquer uma dessas coisas acontecesse, os EUA colocariam em ação seu “Plano Operacional Integrado Único”, ou SIOP-62. Era um documento tão secreto que as Forças Armadas americanas criaram um novo nível de confidencialidade, o “Extremely Sensitive Information” (ESI), para protegê-lo. Só o presidente dos EUA e seus líderes militares podiam ter acesso.
Ele previa um ataque de proporções apocalípticas, com o uso de 1.706 armas nucleares de todos os tipos – bombas e mísseis de médio e longo alcance, disparados do solo, de submarinos e bombardeiros – contra 725 alvos na URSS e nos países pertencentes ao
Pacto de Varsóvia (uma espécie de OTAN soviética que incluía Bulgária, Checoslováquia, Hungria, Polônia e Romênia, além da Alemanha Oriental). E também na China, com quem os americanos tinham relações hostis – os EUA não reconheciam o governo de Mao Tsé-Tung, e os dois países haviam se estranhado na Guerra da Coreia.
Seria um all-in jamais visto, com toda a força nuclear americana mobilizada de uma só vez. O objetivo era aniquilar a URSS e a China, para que elas fossem incapazes de esboçar qualquer reação militar. O plano americano calculava que 37% da população soviética da época, ou 81 milhões de pessoas, morreria como consequência dos ataques. Na China, ‘só’ 10% – possivelmente porque ela era considerada uma ameaça menor (o país só teria a primeira bomba atômica em 1964), e por isso seria menos atacada. Nos países do Pacto de Varsóvia, haveria 1,4 milhão de mortos.
E isso se os EUA usassem apenas as forças nucleares que estavam “em alerta”, ou seja, prontas para disparar. Mas havia mais. Se o país também empregasse mísseis e bombas que estavam guardados (sem capacidade operacional imediata), poderia lançar 3.200 artefatos nucleares contra 1.060 alvos na URSS e na China. O número de vítimas fatais seria ainda maior: 54% da população soviética (em áreas urbanas, 71%) e 16% da chinesa. Só na URSS, seriam mais de 100 milhões de mortes.
Um cenário apavorante. Assustou até altos oficiais do Exército e da Marinha dos EUA, que expressaram preocupação com o número de vítimas civis, o ataque a países comunistas que não estavam em conflito com os EUA, e a contaminação radioativa que poderia se espalhar pelo mundo.
Mas o SIOP-62 continuou em vigor, e estava valendo quando americanos e soviéticos atingiram o ponto mais crítico da Guerra Fria: a Crise dos Mísseis de 1962. Desde a Revolução Cubana, três anos antes, a ilha vinha estreitando laços com a URSS. Isso perturbava os EUA, que em abril de 1961 haviam montado uma operação fracassada, com exilados cubanos, para tentar invadi-la e derrubar Fidel Castro. Em outubro de 1962, os americanos descobriram que a União Soviética estava instalando mísseis nucleares em Cuba. Era uma resposta aos EUA, que haviam feito o mesmo na Itália e na Turquia.
Cuba está a apenas 140 km da costa americana, uma distância que os mísseis atravessariam em menos de cinco minutos, e a 2.000 km da capital Washington. Moscou fica a 1.600 km da fronteira turca. Ou seja: na prática, os soviéticos estavam apenas empatando o jogo nuclear. Mas a população americana ficou apavorada, e as tensões cresceram.
Os EUA cercaram Cuba com navios de guerra e prepararam um plano de bombardeios aéreos. Os militares achavam que a URSS não reagiria, mas Kennedy discordava. Ele achava que os soviéticos poderiam tomar Berlim como resposta. Exatamente o que, um ano antes, quase iniciara um conflito global.
No dia 27 de outubro, a URSS fez uma proposta: removeria seus mísseis de Cuba se os EUA fizessem o mesmo na Itália e na Turquia. Os americanos toparam e a crise acabou. Mas a tensão não. Ambos os lados continuaram fazendo planos para uma grande guerra.
O “Os 6 a 12 lançadores [dos mísseis americanos Atlas] ficam em torno de uma base central. Para destruí-la, uma ou duas explosões nucleares de alta potência serão suficientes”, escreve o coronel soviético Pyotr Ivashutin no documento #24762, de 28 de agosto de 1964.
É um relatório confidencial de 25 páginas preparado para Matvei Zakharov, então o mais alto líder militar da URSS. Nele, Ivashutin reflete sobre o uso de bombas atômicas (“a história das guerras não conhece nada parecido”) e faz previsões. “Os estados imperialistas possuem um grande número de bases militares, mas isso não dá a eles nenhum tipo de superioridade. Ao contrário, essas bases se transformarão em ímãs, atraindo mísseis com ogivas nucleares.”
Esse relatório foi acompanhado por outro documento, também elaborado em agosto, com os planos concretos para uma guerra. Ela começaria com os EUA, a França e a Alemanha Ocidental atacando a Checoslováquia, que fazia parte do bloco soviético, com grande força aérea e terrestre, incluindo armas nucleares. Os russos responderiam no mesmo dia, com a invasão imediata da Alemanha. Ela seria puxada por tropas checas, cujo caminho Moscou abriria lançando mísseis e bombas atômicas.
Em seguida, a URSS invadiria a Áustria (onde os soviéticos não esperavam encontrar resistência) e a França, numa operação pensada para durar nove dias – e empregar ao todo 131 mísseis e bombas nucleares [veja quadro abaixo]. O plano acaba aí. Ele não previa mais ataques, nem a ocupação de outros países da Europa continental ou do Reino Unido.
O documento (que foi encontrado nos arquivos militares da República Checa, no ano 2000) só prevê o uso de armas nucleares “táticas”, de menor potência, e não inclui as “estratégicas”, muito mais devastadoras. Ele é menos extremo que a proposta do coronel Ivashutin.
O plano não menciona potências específicas, mas é provável que os soviéticos pretendessem usar artefatos de fissão nuclear com 10 a 20 kilotons (1 kiloton equivale à explosão de 1.000 toneladas de TNT), similares aos detonados em Hiroshima e Nagasaki, e não as superbombas de fusão que eles possuíam (em 30 de outubro de 1961, os russos detonaram a Bomba Tsar, de 50 megatons, até hoje o maior dispositivo nuclear já construído).
O conflito não aconteceu, mas as duas superpotências seguiram aumentando seus arsenais nucleares, como preparação para uma guerra total. Até que, em 1974, o jogo mudou de tom. Foi quando o então secretário de Estado dos EUA, James Schlesinger, criou uma nova estratégia nuclear para o país – que ficou conhecida como “doutrina Schlesinger”.
Ela não previa mais um ataque com força máxima, como os planos anteriores: dizia que os americanos poderiam usar armas nucleares “táticas” contra alvos específicos ao longo de um conflito, enquanto negociavam um cessar-fogo com o inimigo.
Nesse aspecto, era mais parecida com a estratégia soviética, e também levava em conta os avanços tecnológicos. Isso porque, nos anos 1970, americanos e russos já tinham um grande número de silos: túneis verticais escavados no chão, capazes de resistir a explosões (inclusive nucleares), que guardavam mísseis.
Os silos garantiam que, mesmo se um país recebesse uma chuva de ataques, ele conseguiria responder. Não adiantava disparar todo o arsenal nuclear de uma só vez, na esperança de aniquilar o inimigo para que ele não pudesse revidar. Ele iria revidar.
Desde os anos 1960 os americanos tentavam desenvolver um sistema de defesa contra ataques de ICBMs (mísseis intercontinentais) da URSS antes que chegassem aos EUA. O relatório de Pyotr Ivashutin, de 1964, já alerta sobre esse objetivo – mas o considera “uma tarefa muito difícil”.
Isso porque os americanos só detectariam o ataque quando as ogivas nucleares já estivessem reentrando na atmosfera, e cada uma delas tem “superfície refletiva de apenas 0,5 m2 e viaja a 25 mil quilômetros por hora”. Era um pontinho pequeno e rápido demais para ser interceptado por mísseis disparados do solo.
Em março de 1983, os EUA encontraram uma possível solução: usar canhões laser montados em satélites, que disparariam contra os mísseis soviéticos quando eles ainda estivessem subindo, e portanto bem mais lentos. O projeto, que se chamava Strategic Defense Initiative (SDI) mas recebeu o apelido de “Guerra nas Estrelas”, também previa uma rede de lasers disparados do solo: eles refletiriam em espelhos orbitais, para então acertar os mísseis soviéticos [veja infográfico abaixo]. Ao anunciar a construção do sistema, o então presidente Ronald Reagan afirmou que ele tornaria as armas nucleares “impotentes e obsoletas”.
O Kremlin respondeu com dureza. Disse que o SDI violava o Outer Space Treaty, um acordo de 1967 que baniu a militarização do espaço, colocava em xeque os programas de redução do arsenal nuclear que americanos e russos vinham conduzindo e tornaria inevitável uma guerra nuclear no futuro.
É que, se os EUA se tornassem imunes aos mísseis soviéticos, teriam condições de atacar a URSS sem temer uma retaliação. Moscou jamais aceitaria aquilo – se o SDI fosse de fato construído, os russos poderiam tentar destruir os satélites, o que começaria um confronto. Na prática, o escudo antimísseis desfazia o equilíbrio nuclear entre as duas superpotências, e colocava o planeta mais perto da Terceira Guerra.
Ela foi evitada, mas não por esforços diplomáticos – e sim porque a rede de satélites era tecnologicamente inviável. Os americanos passaram anos tentando construí-la, mas nunca conseguiram. O SDI acabou abandonado, e o mundo foi salvo mais uma vez. Até surgir a próxima crise nuclear – um fantasma que, cedo ou tarde, sempre reaparece.
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