Nova York é uma cidade curiosa. Manhattan, a ilha central onde estão o Central Park, o Empire State e tantos outros pontos turísticos, parece um tabuleiro de batalha naval, com avenidas verticais e ruas horizontais que formam satisfatórios quarteirões retangulares.
O lugar é o paraíso para os metódicos. As ruas não têm nome, mas números, que seguem para o norte em sentido crescente. A mão para os carros também obedece um padrão e vai se alternando, enquanto as estações de metrô pipocam aos montes (algo impressionante mesmo para um paulistano acostumado com trens).
O sentido das linhas, aliás, é fácil de decorar: ou vai de norte a sul, ou de leste a oeste. Quem visita a cidade, mesmo que por pouco tempo, sai de lá com a sensação de entender bem como as engrenagens funcionam.
Foi até Nova York, lar de personagens da Marvel como os Vingadores e o Homem-Aranha, que viajei, em janeiro, para conversar com o elenco de Novos Mutantes, novo filme da Fox a explorar o universo dos X-Men. Bem, não necessariamente novo. Você já vai entender.
Eram outros tempos. Um mundo pré-pandemia, em que Manhattan não havia se tornado o epicentro do problema e a Covid-19 era apenas uma gripe misteriosa de Wuhan. Dava para viajar sem preocupações e, pasmem, cumprimentar pessoas com um aperto de mão.
Fazia frio em Nova York, e o vento cortava o rosto deste repórter que, até então, nunca havia experimentado o inverno de uma zona temperada. As entrevistas aconteceram em um hotel ao sul da ilha – onde também, curiosamente, um casal de noivos posava para um simpático álbum de casamento.
A volta dos que não foram
Se Novos Mutantes desperta em você uma sensação de déjà vu, é compreensível. Afinal, o filme já foi adiado diversas vezes – e por diversos motivos.
Três anos atrás, em 2017, o diretor Josh Boone e parte do elenco vieram ao Brasil para participar da CCXP e promover o filme. Àquela altura, os primeiros materiais de divulgação já haviam saído, e Boone aproveitou o evento para exibir cenas inéditas.
#NewMutants Pushed To February 14, 2019 Taking Over The #Gambit Release Date pic.twitter.com/sSJCMEiTw2
— The Playlist (@ThePlaylist) January 11, 2018
Foi um sucesso. Além do diretor e do roteirista Knate Lee, Alice Braga e Henry Zaga também marcaram presença. A relação com o Brasil, aliás, é estreita: além dos dois atores nacionais, um dos mutantes do filme, Mancha Solar (papel de Zaga), também é brasileiro. Como se não bastasse, Boone atiçou os fãs, sugerindo que a continuação de Novos Mutantes poderia se passar por aqui.
Tudo parecia certo para a estreia em 13 de abril de 2018. Mas o que Boone e cia. não contavam era que um acordo comercial bilionário atrasaria o lançamento do filme.
Uma semana após aquela CCXP, a Disney anunciou a compra da 21st Century Fox em uma das maiores transações da indústria do entretenimento: o processo, que se estenderia por mais alguns anos, custou, ao todo, US$ 71,3 bilhões. Com isso, Os Simpsons, Avatar e até o canal National Geographic. passaram a pertencer ao Mickey Mouse.
Certo, mas onde entra Novos Mutantes? Desde 2009, a Marvel pertence à Disney, que criou, nos últimos anos, o universo cinematográfico (MCU) ao qual pertencem os filmes dos Vingadores. O problema: a Fox, até então, detinha os direitos sobre os personagens dos X-Men e, desde 2000, havia criado um universo próprio para eles no cinema.
Com a aquisição da Fox, ficou a dúvida: o que fazer com esses dois universos? Eles irão se conectar? Novos Mutantes, então, entrou em um limbo: os executivos decidiram segurar o lançamento do filme até decidir o que fazer com os mutantes no cinema – algo que, por ora, ainda não foi oficialmente resolvido.
O mistério continuou até o começo de 2020, quando e a Disney e 21st Century Studios (que sofreu um “rebranding” que limou o nome “Fox”) anunciaram uma data de estreia: 2 de abril. Um final feliz, não fosse a pandemia, que colocou Novos Mutantes novamente no limbo. Haja azar.
Depois de especulações que iria para o streaming via Disney+, o filme finalmente estreou nos EUA em 28 de agosto e, agora, chega ao Brasil em 22 de outubro. Rolou até piada: um julho, durante um painel na San Diego Comic-Con, houve uma brincadeira com as inúmeras datas de estreia que Novos Mutantes já teve. Depois de toda essa novela, talvez rir da própria desgraça seja mesmo o melhor remédio.
O (super) Clube dos Cinco
Criados em 1982, os Novos Mutantes nasceram quando Charles Xavier achou que a equipe principal dos X-Men havia morrido – e a única solução era remontar o grupo com adolescentes que ainda estavam aprendendo a lidar com os seus poderes.
O supergrupo foi desenhado por Bob McLeod e escrito por Chris Claremont, roteirista que cuidou dos X-Men de 1975 a 1991. Ele foi o responsável por catapultar os mutantes para o primeiro escalão da Marvel com histórias consagradas como Dias de Um Futuro Esquecido e A Saga da Fênix Negra – ambas já adaptadas para o cinema.
O projeto para levar os Novos Mutantes às telonas começou em 2014, quando Boone lançou A Culpa é das Estrelas, adaptação do romance homônimo de John Green e que foi um sucesso de bilheteria. Após a repercussão, o diretor, que sempre quis trabalhar com algo do universo de quadrinhos da Marvel, pensou que seria uma boa continuar a investir no filão teen.
Junto à Lee, eles bolaram a ideia de adaptar a história dos mutantes adolescentes – inicialmente, em uma trilogia. Os dois escreveram uma HQ e a levaram para Simon Kinberg, produtor de vários longas dos X-Men, e Emma Watts, então líder da 20th Century Fox e que, hoje, preside a Paramount Pictures.
“Foi um longo processo. Só o roteiro demorou anos até ficar pronto”, contou Boone, nitidamente animado em finalmente lançar o filme. Além da história dos adolescentes desajustados, descobrindo os seus poderes, o projeto quis experimentar um gênero pouco explorado em longas de super-heróis: o terror.
“Nosso objetivo foi sempre fazer algo na linha de ‘John Hughes encontra Stephen King'”, explica Lee. A inspiração é óbvia: Hughes ficou famoso nos anos 1980 por dirigir clássicos dos filmes adolescentes, como Curtindo a Vida Adoidado e Clube dos Cinco. Já King escreveu obras-primas do horror, como Carrie, a Estranha, sobre uma jovem que sofre ao descobrir poderes telecinéticos.
A temática, então, estava definida. Os super poderes iriam funcionar como metáforas para falar sobre insegurança, aceitação e os medos de crescer – com uma pitada de suspense. Faltava apenas definir o elenco. E um dos primeiros atores a se envolver na produção, ironicamente, não foi nenhum dos jovens – mas a adulta da história.
Ordem na casa
Alice entrou para a equipe de Novos Mutantes a convite do próprio Josh. “Ele já havia me visto em Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira. Topei na hora”, disse. A atriz, que já participou de filmes de zumbis (Eu Sou a Lenda) e de ficção científica (Elysium), confessou que sempre quis participar do universo dos super-heróis – da saga X-Men, Logan é o seu favorito.
Em Novos Mutantes, ela vive a dra. Cecilia Reyes, uma mutante capaz de gerar campos de força. Nos quadrinhos, a personagem, de origem porto-riquenha, já se juntou aos X-Men – mas prefere o cargo de médica ao de super-heroína. Em Novos Mutantes, Reyes é a responsável por cuidar dos jovens que chegam ao hospital psiquiátrico em que a história se passa.
“Ela é uma tutora, que cuida e guia os mutantes para que eles controlem os seus poderes”, conta. Mas não esperam por um mentor à la professor Xavier: Reyes possui uma postura dura e fria, sem passar a mão na cabeça. “É como se fosse uma bedel que mantém a ordem da escola”.
Para o papel, Josh recomendou que Alice buscasse inspirações em filmes de suspense e terror, como O Iluminado e Um Estranho no Ninho (que se passa em uma clínica psiquiátrica) – neste último, em particular, o diretor pediu atenção na enfermeira Ratched, o que só comprova que a relação entre Reyes e os jovens será, no mínimo, complicada: Ratched foi escolhida pelo American Film Institute como a quinta maior vilã da história do cinema. Recentemente, a personagem ganhou uma série na Netflix, estrelada por Sarah Paulson.
Fã de quadrinhos, Alice adora ler obras nacionais, como as dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá e de outros artistas independentes. Ela também trabalha atrás das câmeras (foi produtora executiva de séries como Samantha!, Sintonia e A Rainha do Sul), e disse que as HQs brasileiras são uma boa matéria-prima para obras audiovisuais. “Eu adoraria produzir algo do tipo. É importante que a gente impulsione a cultura brasileira e enxergue, ali na tela, nossas próprias histórias.”
Enquanto isso não acontece, Alice fez uma dobradinha: além de Novos Mutantes, ela aparecerá, em 2021, em O Esquadrão Suicida, a versão do diretor James Gunn (Guardiões da Galáxia) do grupo de anti-heróis da DC Comics. Já sobre personalidades da vida real que gostaria de interpretar, a atriz já tinha seus nomes na ponta da língua: “Tarsila do Amaral e Maria Bonita, com certeza.”
Mutantes novinhos
A feiticeira Illyana Rasputin, irmã do x-man Colossus, é a única mutante do filme que não estava na primeira formação da equipe nos quadrinhos. Mas a atriz que a interpreta, a argentina-britânica Anya Taylor-Joy, foi uma das primeiras escolhas da produção. “Consegui assistir A Bruxa, estrelado por Anya, antes mesmo de entrar em cartaz”, relembra Josh. “Naquele momento, soube que ela seria perfeita para o filme.”
Anya, contudo, não deu entrevistas naquele dia. O primeiro a conversar comigo foi Charlie Heaton, o Jonathan de Stranger Things. Ele chegou eufórico e animado – talvez pela combinação perigosa que trazia: uma lata de Coca-Cola em uma mão e uma caneca cheia de café na outra.
Charlie interpreta Sam Guthrie, o Míssil. O nome é sugestivo: ele consegue projetar o seu corpo a uma grande velocidade, tornando-se resistente e praticamente impenetrável. É como uma bala de canhão (que, aliás, é o nome original do personagem, em inglês).
Apesar de poderoso, Sam é um garoto tímido e atormentado. “Ele está machucado por traumas do passado”, disse Charlie, dando a entender que o mutante foi parar no hospital após ferir alguém. Novos Mutantes parece se aprofundar nos conflitos internos que personagens como a Vampira viveram nos primeiros filmes dos X-Men, há vinte anos. Ter poderes não é, necessariamente, uma coisa legal.
É uma abordagem interessante. Quem tentou algo similar foi o diretor Josh Trank no reboot de Quarteto Fantástico, em 2015. À primeira vista, os poderes foram vistos quase como uma doença, uma maldição. Pena que o filme foi um fiasco.
Para Charlie, que é britânico, um dos principais desafios foi reproduzir o sotaque do personagem, que nasceu no interior do Kentucky, nos EUA. “Todos os dias, no set de filmagem, eu ouvia diversas gravações com o meu fone de ouvido, para me familiarizar com o jeito de falar.”
A nacionalidade dos mutantes, aliás, é diversa. “O cerne dos X-Men é a diversidade, então buscamos personagens de etnias, orientações sexuais e países diferentes”, explica o diretor. Um desses países é o Brasil.
Roberto da Costa é o brazuca mais famoso dos quadrinhos da Marvel. Carioca e herdeiro milionário, ele tem a habilidade de absorver e canalizar a energia do Sol – o que faz seu corpo ficar em chamas. Seus poderes se manifestaram pela primeira vez em um jogo de futebol (onde mais?).
Não é a primeira vez que o Mancha Solar aparece no cinemas. Em 2014, ele fez uma ponta em X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, interpretado pelo mexicano Adan Canto. Em Novos Mutantes, Josh fez questão que o ator fosse brasileiro.
“Ao todo, as audições levaram quase um ano, mas, no final, consegui o papel”, disse o brasiliense Henry Zaga. Aos 27 anos, ele não é muito conhecido no Brasil, mas já acumula alguns trabalhos nos EUA, onde vive desde os 18, como participações nas séries Teen Wolf e 13 Reasons Why. “Vim de uma família de advogados, e tinha vergonha de dizer que queria ser artista”, comenta. Henry é filho de Admar Gonzaga, que já foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral.
O ator descreve Roberto como alguém que busca constantemente ser o líder do grupo. “Mas, por trás dessa autoconfiança, ele esconde vários medos e traumas.” Henry disse que ajudou Josh e Knate a construir um personagem genuinamente brasileiro – com direito a uma fala em português. “Isso foi fácil, já que o Josh está sempre aberto a ouvir as sugestões dos atores. Difícil foi atuar com um apertado macacão de lycra, para simular os efeitos especiais.”
X-Men e a diversidade
A próxima pessoa com quem conversei foi a atriz Blu Hunt. Simpática, ela me recebeu em seu quarto do hotel, e fez questão de dividir as frutas que estava comendo. “Tá tudo bem, eu pretendo almoçar um belo prato de macarrão depois que tudo isso acabar.”
Blu havia acabado de começar sua carreira de atriz quando soube dos testes para Novos Mutantes – que, na época, era tratado como um projeto ainda sem nome. “As audições aconteceram logo depois que consegui meu primeiro papel remunerado”, relembra.
Ela só soube seu papel três meses depois, em um teste final com a presença de Josh e da atriz Maisie Williams, a Arya Stark de Game of Thrones e que, aqui, vive a mutante escocesa Rahne Sinclair, a Lupina, que consegue se transformar tanto em lobisomem quanto um lobo completo.
Blu interpreta Danielle Moonstar, também conhecida como Miragem, capaz de manifestar medos e desejos das pessoas na forma de ilusões. “Ela é a mutante recém-chegada no hospital, pela qual o público vai compreender o que está acontecendo”, explica. Danielle é figura-chave na história, pois é ela quem mostra aos outros, já conformados pelo tempo que vivem ali, que eles não são culpados pelos problemas que aconteceram.
Os poderes de Miragem também estão relacionados ao Urso Místico, o vilão da The Demon Bear Saga, a HQ dos Novos Mutantes que serve de base para o filme. A história foi escrita por Chris Claremont e ilustrada por Bill Sienkiewicz. Bill, inclusive, esteve envolvido com a produção: visitou o set, conheceu o elenco e ajudou Josh a definir o tom e o visual do longa.
Danielle ajuda também a entender as diversas camadas de representatividade que Novos Mutantes tentou trazer. Nos quadrinhos, ela é descendente de nativos-americanos, algo que Blu também é – e faz questão de apoiar a causa nas redes sociais.
Além disso, Dani viverá um romance com Lupina. “O mais interessante dessa relação é que ela não é a parte central da trama e nem há um alarde em torno dela – é apenas mais um elemento da história”, disse Maisie. Já sua personagem possui uma ligação conflituosa com religião, pois, no passado, ela foi abusada por um padre. O clímax do filme, vale dizer, acontece em uma igreja. “Fui criado por pessoas muito religiosas e, para mim, foi importante falar sobre uma tema sensível como esse”, disse Josh.
Todos com quem conversei fizeram questão de ressaltar que, por trás dos poderes e da ação, os X-Men sempre falaram sobre igualdade e diversidade desde sua origem, nos anos 1960, na época da luta dos negros pelos direitos civis nos EUA. “A metáfora é clara: todos os mutantes precisam se aceitar e se assumir como tal, e querem que a sociedade os vejam sem preconceitos”, disse Blu.
Bem, talvez todos menos o Magneto.
Nesse quesito, Novos Mutantes já larga na frente dentro do gênero de super-heróis. Apesar do sucesso e das bilheterias bilionárias, em todos os 23 filmes do MCU, há apenas um personagem abertamente gay – e que sequer possui um nome.
Gravações mal-assombradas
Quando perguntei sobre momentos divertidos durante as filmagens, os atores relembraram alguns, mas com dificuldade – afinal, tudo tinha acontecido há mais de dois anos. Blu me contou que, entre uma cena e outra, a equipe costumava ouvir Humble, disco do rapper Kendrick Lamar que saiu na época das gravações.
“O Josh também nos passava muita música para ouvir, para que entrássemos no clima. Eu, por exemplo, escutei bastante Kate Bush”, disse Maisie, que incorporou uma habilidade pouco usual para sua personagem. “Eu consigo mexer as orelhas, algo que, de certa forma, combina com alguém que se transforma em lobo”. Ela repetiu o movimento assim que acabou a frase, para provar que era verdade.
Mas algo que todos se lembram com clareza é o hospital psiquiátrico, que existe de verdade. Ele se chama Medfield State Hospital e foi fundado em 1892. Em 2003, foi permanentemente fechado. Antes de Novos Mutantes, o lugar serviu de cenários para filmes como Entre Facas e Segredos e Ilha do Medo, de Martin Scorsese.
A equipe ficou hospedada por seis meses em um hotel nos arredores de Boston, próxima ao hospital, e juram que o lugar é mal-assombrado. “Teve gente que disse ter ouvido vozes pelos corredores”, disse Blu. “É um lugar com várias histórias sinistras, dava pra sentir um clima diferente por lá.” Por outro lado, os atores disseram que gravar em um cenário real ajudou a criar a atmosfera do filme. “Trouxe mais realidade para o longa, tornou-o mais palpável”, afirma Alice.
Apesar da locação e dos efeitos práticos, parte do orçamento de US$ 67 milhões foi destinado aos efeitos visuais dos superpoderes. “Era muito engraçado ver o Charlie balançando as mãos para simular as habilidades do Míssil”, relembra Maisie, rindo.
Naquele sábado de entrevistas, todos tinham um motivo a mais para estarem felizes: na noite anterior, eles haviam assistido, pela primeira vez, a versão final do filme. Animados, a impressão é de que um peso saíra de suas costas.
Mais tarde, decidi sair para conhecer Nova York. Do lado de fora do hotel, avistei Alice, Josh e Charlie, conversando. Entre um cigarro e outro, eles faziam planos para aquela noite: beber com o resto da equipe ali, no bar. Depois de quase três anos, eles finalmente puderam comemorar – e nem pareciam notar o frio que fazia na cidade.
Novos Mutantes: um papo com Alice Braga e o elenco do filme Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
Nenhum comentário:
Postar um comentário