sexta-feira, 25 de junho de 2021

“Inside” é uma comédia musical gravada durante a pandemia – e é incrível

A Netflix é um prato cheio para quem gosta de especiais de comédia. Há os clássicos, como Richard Pryor: Live in Concert, de 1979, apresentações de artistas “pratas da casa”, como Aziz Ansari (de Master of None) e John Mulaney (a voz do Andrew de Big Mouth) – e toneladas de shows de stand-up.

À primeira vista, Inside, que chegou recentemente ao catálogo da plataforma, pode parecer como mais um desses especiais: um comediante debochado, piadas ácidas sobre a cultura americana e risadas estridentes da plateia. Mas é bem mais do que isso.

Inside é composto, majoritariamente, de números musicais – e foi gravado durante a pandemia. O resultado dessa mistura são canções sobre os mais variados perrengues de quem está há um ano e meio trancado em casa, das tentativas (por vezes difíceis) de conversar em videochamada com os pais às tentativas (por vezes frustrantes) de fazer sexting com o contatinho.

As músicas são hilárias, e só elas já valem o play. Mas Inside dá um passo além: tudo foi gravado dentro de um apartamento, ao longo de um ano. Maçante? Nem um pouco: o ritmo, os truques de iluminação e a edição não ficam atrás de outras produções de Hollywood. E entre as canções (ou mesmo durante elas), há interessantes reflexões sobre o momento que estamos vivendo – e a bagunça de pensamentos e sentimentos provocada pelo isolamento.

<span class="hidden">–</span>Inside, Bo Burnham/Reprodução

O gênio por trás de Inside é Bo Burnham, que, aqui, leva a expressão “banda de um homem só” ao pé da letra. Bo fez tudo: escreveu, dirigiu, filmou e editou o especial do início ao fim. É o Rodrigo Hilbert da comédia – os cabelos e a barba loiros só estreitam a comparação. Hora de conhecer esse cara.

Bo quem?

Robert Burnham (Bo é apelido) nasceu em 1990 nos arredores de Boston, nos EUA. Quando criança, tirava boas notas e participava de musicais no teatro da escola. Fã de comédia (como os filmes da série Austin Powers), costumava dizer que viraria humorista – ou, veja só, pastor. Graças a Deus, ele escolheu a primeira opção.

Em 2006, nos primórdios do YouTube, Bo começou a postar alguns vídeos cantando e tocando violão; alguns, repletos de piadas, viralizaram. Um deles é “My Whole Family… Thinks I’m Gay” (“Toda minha família… acha que sou gay”), em que Bo, com uma camiseta de uma peça de Shakespeare, grava a si mesmo tocando piano dentro do seu quarto – basicamente, uma versão júnior de Inside. O vídeo ainda está disponível na internet, e acumula 11 milhões de visualizações.

Pelo seu bom desempenho no colégio, Bo foi aceito para cursar teatro em universidades prestigiadas, como Harvard, Brown e a New York University. Mas nunca chegou a cursar nenhuma: na mesma época, foi procurado por um agente de Hollywood, que se ofereceu para representá-lo. Bo também chamou a atenção do diretor e comediante Judd Apatow (Freaks and Geeks, O Virgem de 40 anos) enquanto se apresentava num festival em Montreal, no Canadá.

<span class="hidden">–</span>Inside, Bo Burnham/Reprodução

Bo assinou contrato com uma gravadora e lançou o seu primeiro álbum, Bo Fo Sho, em 2008, aos 18 anos. De lá para cá, continuou fazendo shows, especiais de comédia e até estrelou uma série da MTV, Zach Stone is Gonna Be Famous, em 2013. Também exercitou o seu talento atrás das câmeras na direção de alguns especiais, como Tamborine (2018), de Chris Rock (sim, o de Todo Mundo Odeia o Chris).

Em um perfil sobre Bo publicado pela revista New Yorker, Chris conta que conheceu o trabalho do colega de profissão em outro especial de comédia para a HBO – e que, depois disso, implorou para que Burnham o dirigisse. “Foi surpreendente. A iluminação, o ritmo… Me lembrou Martin Scorsese filmando Bob Dylan”, elogiou Chris.

Na TV e no cinema, Bo fez algumas pontas aqui e ali. O seu maior papel, até agora, foi em Bela Vingança, no qual interpretou Ryan, namorado da protagonista Cassie (Carey Mulligan). O filme foi indicado a cinco prêmios no Oscar 2021 e levou um, o de Melhor Roteiro Original.

No momento, Bo está envolvido em uma série da HBO sobre basquete – mais especificamente, sobre os trunfos do Los Angeles Lakers na NBA dos anos 1980. Ela será dirigida por Adam McKay (A Grande Aposta, Vice), e Bo interpretará o lendário jogador Larry Bird, que jogava no Boston Celtics (Bo tem quase dois metros, o que deverá vir a calhar).

“Fiz um conteúdo para você”

Como já adiantei, Inside foi gravado 100% durante o isolamento, ao longo de um ano. Pela sua complexidade, fica claro o quanto ele demorou para ser feito. Mas, caso alguém ainda duvide, a barba e o cabelo de Bo, que vão ficando cada vez maiores no decorrer do especial, deixam o processo evidente.

“Perdoem-me se estou todo bagunçado”, pede Bo logo na primeira música. “Eu reservei um horário no barbeiro, mas foi reagendado.” Burnham faz piada com o “novo normal” da pandemia sem nunca mencionar essa palavra. Ele brinca, inclusive, com o fato de fazer esse tipo de conteúdo enquanto o mundo está de cabeça para baixo. “Deveria estar fazendo piadas num momento como esse?”, canta em Comedy, uma das melhores faixas do especial.

<span class="hidden">–</span>Inside, Bo Burnham/Reprodução

Fora o talento musical (todas as canções são facilmente decoráveis, mesmo para quem não domina o inglês), Bo tem um olhar atento e ácido para o mundo moderno. Ele tira sarro do bilionário Jeff Bezos, dos vídeos de react do YouTube e das obsessões do Instagram. Em Welcome to the Internet, ele faz um verdadeiro musical com todas as peculiaridades (e bizarrices) que qualquer um pode encontrar na rede. 

Tópicos sociais como sexo, religião, diversidade e racismo também não escapam do texto de Bo. Um de seus temas favoritos é ironizar as “dificuldades” de homens heterossexuais brancos nos dias de hoje. “Caras brancos americanos, o direito de falar tem sido nosso por, pelo menos, 400 anos. Talvez eu devesse apenas calar a p**** da boca.”

Outro assunto abordado por ele é saúde mental – e em um especial sobre a pandemia, isso não ficaria de fora. Aqui, vale explicar algo sobre Bo: ele sofre de ansiedade e, desde 2013, tem ataques de pânico. Em algumas ocasiões, inclusive, o problema aconteceu em cima do palco, enquanto se apresentava. “Um lugar não muito bom para tê-los, vamos combinar”, relata em All Eyes On Me, já próximo do fim do especial.

Por causa disso, Bo se afastou das apresentações ao vivo. Na época em que gravou Inside, o humorista já estava há cinco anos longe dos palcos para, justamente, tentar controlar o problema. O que, de fato, ele conseguiu – e aí veio a pandemia.

Cena de

A ansiedade de Bo adiciona uma camada extra de interpretação a Inside. Como aquele amigo que se inscreveu em dezenas de cursos à distância ou começou a fazer pão, Burnham parece ter criado o especial na tentativa de se ocupar ao máximo e não pensar na quarentena. Em alguns momentos do filme, ele desabafa sobre não saber quando as gravações – e até diz temer que elas estão se aproximando do fim.

Inside, contudo, não é um escapismo de Bo. O que ele faz, na verdade, é usar as músicas e o humor para criar um retrato fiel dos problemas e aflições do isolamento. No caminho, criou uma obra-prima – e o que talvez seja o melhor registro do que a nossa geração atravessou com a Covid. “Foi como enxergar como o interior da minha cabeça se sentiu nesse último ano”, escreveu a jornalista Linda Holmes em uma crítica da NPR

Vida e obra

<span class="hidden">–</span>Divulgação/Reprodução

No streaming brasileiro, há outras produções de Burnham disponíveis – e igualmente excelentes. 

A primeira indicação é Make Happy (2016), especial de comédia que também está na Netflix. Nela, é possível ver Bo em uma apresentação ao vivo, interagindo com a plateia. O talento se mantém: as músicas são engraçadas, há ótimos jogos de luzes em cima do palco e diversas piadas com referências à cultura pop, do rapper Kanye West ao Cheetos super-apimentado.

Make Happy diverte tanto quanto Inside – e, assim como o seu sucessor, te deixa com algumas pulgas atrás da orelha com as reflexões apresentadas por Bo em meio às piadas.

“Se você consegue viver a sua vida sem uma plateia, então você deveria fazer isso”, diz ele em determinado ponto do especial. Nessa hora, Bo reflete com a plateia sobre o ato de se apresentar – o que talvez fosse uma antecipação à seu afastamento dos palcos. E não dá para ignorar o fato de que o conselho também diz respeito às plateias virtuais das redes sociais.

<span class="hidden">–</span>Filme: Eighth Grade./Reprodução

Se o lado reflexivo e introspectivo de Inside foi o que te chamou a atenção, vale a pena assistir à Oitava Série, longa-metragem escrito e dirigido por Bo e que integra o catálogo do Telecine Play.

O filme conta a história de Kayla (Elsie Fischer), uma jovem de 13 anos que mora numa pequena cidade dos EUA. Viciada em apps como Instagram e Snapchat, ela é tímida e se esforça para fazer amigos na escola – ainda que, paradoxalmente, mantenha um canal no YouTube no qual da conselho para outros adolescentes.

Logo de cara, Oitava Série parece ser mais um daqueles filmes de colégio de Hollywood, ao estilo coming of age (histórias sobre amadurecimento durante a juventude). Mas ele é bem mais um drama do que uma comédia, com momentos bem sensíveis de Kayla e a relação com seu pai, o pessoal do colégio – e consigo mesma. É um belo retrato da geração Z – nem um pouco cringe.

Para criar o filme, Bo assistiu a centenas de vlogs de adolescentes, visitou colégios nos EUA (incluindo o que estudou) e conversou com vários jovens – ao todo, quase 300 estiveram envolvidos no projeto. Para o roteiro, ele não se baseou exatamente nas suas experiências de vida – mas sim em sua relação com a tecnologia e os seus problemas de saúde.

“A ansiedade me faz sentir como um garoto apavorado de 13 anos”, contou Bo à New Yorker, onde também falou sobre como a internet desempenha um papel vital na saúde mental dos jovens – e que ninguém está falando sobre isso corretamente. “Vocês têm o bem-estar de uma geração inteira em suas mãos. Espero que vocês façam a coisa certa com isso”, disse o humorista durante uma palestra na Califórnia; na plateia, pessoas que trabalhavam no Vale do Silício.

Oitava Série estreou em 2018 no Festival de Sundance e foi bem-recebido pela crítica. Ganhou diversos prêmios. Bo, em especial, levou o troféu de roteiro original do Sindicato dos Roteiristas (a WGA) e o de melhor filme para um diretor estreante do Sindicato dos Diretores (DGA). Nada mal para colocar no LinkedIn.

Uma última dica: as músicas de Inside estão disponíveis nas mais diversas plataformas (Spotify, Apple Music, Tidal, Deezer). Confie, é bom saber que elas estão por lá. Nas últimas semanas, é só o que tem tocado aqui em casa.


“Inside” é uma comédia musical gravada durante a pandemia – e é incrível Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed

Nenhum comentário:

Postar um comentário