Texto | Carolina Fioratti
Ilustração | Ju Sting
Design | Natalia Sayuri Lara
Edição | Bruno Vaiano
O navio zarpou do litoral francês faz duas semanas. Dos cem homens da tripulação, um se destaca: Jean Baret, assistente do naturalista Philibert Commerson. Nos primeiros dias, ele divide a cabine com seu chefe, mas logo é obrigado a se juntar aos outros criados no convés inferior. Baret nunca se deixa ver fazendo a barba ou indo ao banheiro. Comportamento discreto demais para um espaço tão pequeno – o Étoile tem 33 m de comprimento e 9 m de largura. Corre o boato de que Jean, na verdade, é Jeanne.
Certa noite, alguns marujos resolvem tirar a dúvida: a ideia era chegar à rede em que o suposto homem dormia e arrancar suas calças à força. Mas Baret carrega consigo uma pistola e afasta os marinheiros antes que eles revelem seu segredo. Jean era mesmo Jeanne. E nunca mais teve uma noite de paz.
O começo
Philibert Commerson não era apenas chefe de Jeanne Baret. Era seu amante. Eles se conheceram na Borgonha, interior da França, por volta de 1760. Baret era uma aldeã pobre, filha de camponeses famintos. A expectativa de vida, entre seus conterrâneos, era de 26 anos. Tornou-se uma herbolária autodidata: formada pela tradição oral, conhecia as propriedades terapêuticas das plantas e preparava medicamentos a partir delas.
Commerson estava na extremidade oposta da sociedade: de família abastada, era formado em Medicina e tinha reputação como naturalista na elite europeia – trocava cartas com o taxonomista sueco Lineu, criador dos nomes científicos em latim usados até hoje (Homo sapiens, Canis lupus etc.). Seus conhecimentos eram essencialmente teóricos. Homens liam sobre plantas, mas não eram tão bons em identificá-las na natureza. Na época, médicos, donos de farmácia e até barbeiros – que faziam pequenas cirurgias – dependiam de camponesas nos bastidores para coletar plantas e preparar remédios a partir delas.
Assim, tornou-se comum que caras como Commerson procurassem moças como Baret (às vezes, em segredo) para que elas compartilhassem sua sabedoria centenária. E aí essas mulheres acabavam tendo acesso a uma pontinha da ciência da época, ainda que fossem analfabetas e proibidas de frequentar universidades.
Lineu nutria um interesse especial pelos sistemas reprodutivos das plantas – e os utilizava como critério para classificá-las e determinar os graus de parentesco taxonômico entre diferentes espécies. Analogias com o sexo dos humanos rolavam o tempo todo, e às vezes eram francamente pornográficas. Em suas publicações, o autor utilizava frases como “que as anteras sejam as genitálias masculinas e seu pólen a verdadeira progenitora” ou “são nove homens em um mesmo quarto nupcial com uma só mulher”. Por essa razão, era considerado indecente que mulheres estudassem botânica.
Em 1762, a esposa de Commerson morreu; em 1764, ele tornou Jeanne governanta da casa. O casinho não era segredo. Ela mudou com o patrão para Paris – onde viveram no que hoje seria um apê hipster repleto de plantas.
Em 1766, Commerson foi convidado como botânico em uma expedição do navegador Louis Antoine de Bougainville. E convidou Baret para embarcar como sua assistente. Não era qualquer volta no quarteirão: o rei Luís 15 incumbiu o militar de realizar a primeira circunavegação do globo em um navio francês, com astrônomos, naturalistas e cartógrafos a bordo. Era uma forma de reparar o orgulho da França, ferido após a derrota recente na Guerra dos Sete Anos, contra a Inglaterra.
Começando com Portugal e Espanha ainda no século 16, aventureiros de outras potências europeias já haviam completado voltas ao mundo.O objetivo de expedições desse tipo era encontrar arquipélagos, mapear litorais e estrelas e encontrar novas plantas, animais e minerais. Essas descobertas podiam render novas especiarias para exportar, bases militares em locais estratégicos ou até métodos novos para calcular coordenadas geográficas e celestes, que facilitavam a cartografia e a navegação entre as colônias dos gigantescos impérios ultramarinos. Os holandeses, por exemplo, mantinham patrulhas em torno das ilhas no sudeste asiático de onde extraíam noz-moscada e cravo-da-índia, para evitar a espionagem por naturalistas estrangeiros.
O segredo
Mulheres eram proibidas por lei de embarcar em navios franceses. Para se disfarçar, Jeanne amarrou uma faixa sobre os seios e pôs roupas largas, como a heroína Mulan no filme homônimo da Disney. Mas o que veio depois não foi um conto de fadas. Em 15 de novembro de 1766, o La Boudeuse deixou o porto de Nantes, seguido pelo Étoile, em 1º de fevereiro de 1767, do porto de Rochefort. Juntos, carregavam 330 marinheiros.
Baret era a única mulher num navio com cem homens.
Para esconder seu segredo, Baret dificilmente saía dos aposentos de Commerson. No Étoile, os boatos logo se espalharam. Ou o botânico era homossexual, ou havia trazido uma mulher para a viagem – e é difícil dizer qual das alternativas renderia um escândalo maior. Logo, Baret foi proibida de dividir o quarto com seu chefe. As faixas de linho que comprimiam seus seios causavam erupções na pele, que ela própria tentava disfarçar improvisando remédios com as plantas disponíveis.
O navio tinha zarpado havia poucas semanas e Jeanne dormia no convés quando os marinheiros tentaram inspecionar sua genitália pela primeira vez. Após ameaçá-los com a pistola, ela explicou que era um eunuco. Um homem castrado. Ao longo da história, vários impérios adotaram a prática de decepar pênis e testículos de prisioneiros de guerra ou crianças abandonadas e torná-los criados da corte – serviçais que não incomodariam nos haréns palacianos. Por algum tempo, os marujos acreditaram que Baret fora vítima do Império Otomano, e a pouparam. Mas a ameaça de estupro permaneceu no ar.
A gota d’água foi um ritual de batismo de deixar trote universitário no chinelo. Os marinheiros que cruzavam a linha do Equador pela primeira vez precisavam ficar nus em uma piscina de cocô, besuntados de óleo e penas de galinha. Baret escapou de se despir com a desculpa de ser eunuco – mas teve que mergulhar.
Duas descobertas
O Étoile fez sua primeira parada sul-americana em Montevidéu, no Uruguai. Depois de passar nas Ilhas Malvinas, subiu para o Rio de Janeiro, onde aportou em junho de 1767. No Brasil, o objetivo era reabastecer as embarcações com comida suficiente para mais dez meses de viagem – tempo necessário para dar a volta pela Terra do Fogo e acessar o Oceano Pacífico.
As visitas ao Uruguai e às Malvinas tiveram motivação política e militar, os botânicos não puderam trabalhar. Commerson e Baret só começaram quando chegaram em terras fluminenses, buscando plantas que pudessem ser úteis para a agricultura ou medicina.
Bougainville proibiu os tripulantes de ir além dos limites da cidade do Rio. Commerson não era capaz de desobedecer à regra: tinha úlceras nas pernas que impediam longas expedições em terra. Sobrou para Baret, que, por estar sempre à disposição do chefe e carregar a parafernália científica, era chamada de “burro de carga”.
Ela coletou e classificou uma flor desconhecida para os europeus, mas familiar a nós: a primavera.
Hoje, as primaveras têm valor ornamental, mas na época, Jeanne parece ter sido atraída por seu potencial farmacêutico. Elas tinham aparência similar às flores de feijão, que eram usadas na Europa para tratar feridas inflamadas. Jeanne provavelmente pensou que a planta ajudaria com as úlceras de Commerson.
O nome científico ficou Bougainvillea brasiliensis, em homenagem ao capitão do navio. Commerson apresentou a flor a Bougainville para puxar seu saco, e o tiro saiu pela culatra. Ele comandava a expedição a partir do outro barco e nunca via a tripulação do Étoile. Percebeu na hora que Baret era mulher e pôs Commerson em prisão “domiciliar”, trancado em sua cabine.
Bougainville, porém, não abandonou a moça no Brasil. A historiadora britânica Glynis Ridley, autora da biografia O Segredo de Jeanne Baret, explica que o capitão, além de considerar desumano entregá-la à prostituição no cais, tinha preocupações práticas. Com Commerson doente, era Jeanne que fazia tudo. Deixá-la no Rio seria equivalente a perder a única pessoa capaz de encontrar novas plantas durante a expedição, coisa que as autoridades francesas cobrariam.
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As mentiras
Já era janeiro de 1768 quando o Étoile e o La Boudeuse chegaram ao Pacífico. Navegariam mais três meses até atracarem no Taiti. Não era a primeira vez que europeus pisavam na ilha, mas Bougainville não tinha como saber disso. Uma expedição britânica comandada por Samuel Wallis no HMS Dolphin havia desembarcado no arquipélago pouco tempo antes, em junho de 1767.
A visita ao Taiti rendeu a desculpa de que Bougainville precisava para limpar a própria barra por manter uma mulher a bordo. O capitão escreveria mais tarde: logo que Baret e Commerson pisaram na praia, um grupo de indígenas cercou a moça e gritou “É mulher!” – então foi necessário escoltá-la de volta ao navio. Com a lorota, Bougainville queria indicar que não havia percebido o sexo da viajante até aquele momento – e que então seus homens foram obrigados a salvá-la, como bons cavalheiros.
Esse episódio não aparece nos diários de outros tripulantes. Fora isso, a anotação ocupa a penúltima folha do caderno de Bougainville, em letras espremidas. Por fim, a ordem das páginas nesse trecho do caderno foi adulterada.
Uma versão mais verossímil do desembarque no Taiti chegou a nós por um ilhéu chamado Aotourou, que se familiarizou com a língua francesa e se uniu à expedição. Ele identificou Jeanne Baret como mahu, uma expressão usada pelos taitianos para denominar o que eles entendiam como um terceiro gênero. Em vários arquipélagos do Pacífico, existe até hoje uma tradição de homens que se vestem como mulheres desde pequenos e assumem funções tradicionalmente atribuídas a elas, como preparar alimentos e cuidar de crianças. Os mahu são aceitos e importantes nessas culturas; num país ocidental, seriam identificados como transgêneros.
Para os taitianos, Baret era um mahu branquelo, solitário e de gênero invertido que chegou pelo oceano – e coisas que vinham do mar eram divinas. Ou seja: é mais provável que a herbolária tenha sido objeto de curiosidade (talvez veneração) que de uma tentativa de agressão.
Quatro meses depois do Taiti, a expedição desembarcou em Nova Irlanda, uma ilha na Papua-Nova Guiné, ao norte da Austrália. Em julho de 1768, um grupo de tripulantes – que, tudo indica, incluía o cirurgião do navio – se juntou para “inspecionar” Jeanne na praia, enquanto ela lavava as roupas no mar. Ela geralmente andava com uma pistola na cintura, mas, nesse dia, não estava com a arma – e foi violentada pelo grupo.
A pena por estupro, na teoria, era enforcamento. Mas Bougainville sabia que, ao acusar os envolvidos – incluindo um médico –, eles se vingariam revelando que ele sabia da mulher escondida no navio e não fez nada. Assim, todos concordaram com um conveniente silêncio. Em seu diário, Bougainville disfarça o incidente dizendo que um tripulante não identificado foi mordido por uma cobra na praia, sofreu convulsões e perdeu a consciência diversas vezes.
Últimos anos
Em novembro de 1768, os navios alcançaram Port Louis, nas Ilhas Maurício, a leste de Madagascar. Nesse ponto, Jeanne estava visivelmente grávida e incapacitada pelo trauma do estupro. Passava boa parte do tempo trancada na cabine, dopada com opioides. Bougainville sabia que ocultar um parto em alto-mar nos seus diários seria arriscado demais – a história real se espalharia.
Quando Jeanne Baret foi estuprada e engravidou, Bougainville a deixou nas Ilhas Maurício para não ser obrigado a revelar ao governo que havia uma mulher no navio. Ela completou a viagem seis anos depois.
Commerson ficou muito próximo do botânico Pierre Poivre, que vivia confortavelmente num casarão no arquipélago africano. O chefe da expedição viu a amizade como uma chance para deixar o botânico e sua assistente grávida naquelas terras, e assim fez. A perspectiva de botanizar nas Ilhas Maurício e também em Madagascar animou Commerson, que não seria tão bem-vindo em Paris: ele se interessava por plantas com valor científico, não necessariamente comercial, como o governo gostaria.
Em uma expedição a Madagascar, Commerson batizou pela primeira vez uma planta em homenagem a Baret: um arbusto de 3 m com folhas escuras e plantas brancas, cujo gênero, na nomenclatura de Lineu, passou a ser Baretia. Hoje, conhecemos cerca de 50 espécies desse gênero, mas elas acabaram renomeadas. Hoje, as Baretia chamam Turraea, e nenhuma espécie encontrada na expedição leva o nome da herbolária.
Durante sete anos, as Ilhas Maurício foram a casa de Baret e Commerson. Eles nunca se casaram. Ela não criou o bebê do estupro, que ficou com uma família local. Quando Commerson morreu, em 1773, a grana rareou para Jeanne, que era tida apenas como criada – e não tinha como voltar à França para sacar a herança que o amante lhe deixou no testamento. Ela se casou com um militar chamado Jean Dubernat em 1774 e voltou com ele para a França. Em algum momento entre 1774 e 1775, ao pisar em solo francês com o marido, ela se tornaria a primeira mulher a completar uma volta no globo. Nessa jornada, coletou com Commerson cerca de 6 mil exemplares de plantas. Centenas eram espécies inéditas para os europeus, não se sabe o número ao certo.
De maneira improvável, Jeanne recebeu uma pensão do governo por sua participação na expedição. De 1785 em diante, a moça teve direito a um montante mensal equivalente ao que um homem receberia por seus feitos na época. Ela foi a primeira mulher de que se tem notícia a ganhar dinheiro do Estado por um trabalho científico.
Jeanne morreu anônima. Não deixou um único registro escrito de suas aventuras, e não sabemos nada de sua aparência. Bougainville se limitou a descrevê-la como “nem bonita, nem feia”. A única ilustração da herbolária data de 1816, nove anos após sua morte, em um livro italiano. Ela aparece com roupas de marinheiro largas e listradas, boina vermelha e um casaco verde-água. A boina, com certeza, não foi um acessório na vida real: entrou no desenho por ser um símbolo da Revolução Francesa, que ocorreria só em 1789.
A biógrafa Glynis Ridley não sabe o que levou o autor a retratá-la como revolucionária. Nenhum documento dá dicas sobre a participação de Jeanne no rebuliço mais importante do século 18. Talvez ela tenha mesmo pegado em armas, mas talvez seja “só” um símbolo sem igual: uma camponesa que desafiou a miséria, o machismo e a lei para conquistar liberdade e igualdade – e não encontrou muita fraternidade entre seus colegas tripulantes.
Jeanne Baret: a botânica que se disfarçou de homem para dar a volta ao mundo Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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