Shannah Swan é uma epidemiologista experiente, que há décadas se debruça sobre a fertilidade humana.
É professora da Escola de Medicina do Hospital Monte Sinai, em Nova York, e considerada uma autoridade no estudo da relação entre o ambiente e a capacidade de ter filhos.
As credenciais são necessárias porque seu discurso poderia soar sensacionalista se não viesse de uma referência da área. No livro Contagem Regressiva (clique para comprar*), publicado no Brasil pela Alaúde, ela alerta para uma queda vertiginosa na fertilidade, dando destaque para o abalo que ocorre entre os homens.
Há risco, inclusive, de se chegar a um nível crítico para a continuidade da espécie lá na frente.
A obra, produzida em parceria com a escritora especializada em saúde e ciência Stacey Colino, conjuga uma série de pesquisas que corroboram o alarme, entre elas investigações sobre o papel de agentes químicos a que estamos expostos pelo contato com produtos muito utilizados no dia a dia.
Essas e outras questões foram abordadas por Shannah em um bate-papo exclusivo com VEJA SAÚDE. Confira!
VEJA SAÚDE: Quando esse assunto começou a te preocupar?
Shannah H. Swan: Quando li um estudo publicado em 1992. Esse trabalho, de cientistas dinamarqueses, apontava para uma queda dramática na contagem de espermatozóides no semên masculino.
Naquele momento, fui cética. Estava menos preocupada com o resultado e mais em encontrar explicações para ele.
Como epidemiologista, me perguntei se fatores como estresse, idade, saúde dos homens ou mesmo a metodologia do estudo poderiam ter influenciado os achados. Então fiz outro estudo e considerei todos esses aspectos.
E foi muito impressionante, porque cheguei ao mesmo resultado que os dinamarqueses: uma queda anual de cerca de 1% na concentração de espermatozoides no sêmen masculino.
Isso significava que era preciso levar o assunto mais a sério.
E aí em 2000, depois de estudar por anos esse tema, comecei a ficar realmente preocupada.
Quando essa queda na contagem de espermatozoides começou? E ela ocorre na mesma velocidade desde então?
Há evidências de que o declínio começou nos anos 1950, mas a maioria dos estudos analisa dados a partir dos anos 1970.
Entre 1973 e 2018, a diminuição na contagem ficou na média de 1% ao ano. Só que, se considerarmos de 2000 em diante, essa média quase dobra.
As pesquisas ainda são insuficientes para fazer grandes conclusões, mas parece haver uma aceleração, sim.
Quando falamos em diminuição da fertilidade, muito da responsabilidade ainda recai sobre a mulher. Sobre o fato de ela querer ter filhos mais tarde, por exemplo, o que diminui as chances de engravidar. Essa questão masculina é tão importante quanto?
O declínio na quantidade de espermatozoides e a queda na fertilidade não são o mesmo problema. Entretanto, eles se sobrepõem, e a diminuição de ambos ocorre em uma velocidade semelhante.
Assim como a contagem de gametas masculinos, o número de filhos que uma mulher tem ao longo da vida caiu mais de 50% nas últimas décadas.
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Há duas coisas para dizer sobre essa intersecção. Primeiro: questões sociais de fato fazem as mulheres terem filhos mais tarde, e o sistema reprodutor delas envelhece mais rápido do que o dos homens.
Segundo: é preciso duas pessoas com sistemas reprodutores saudáveis para que uma gravidez aconteça.
E aqui quero mencionar uma coisa muito importante aqui, que não é muito discutida. Parte da queda na contagem de esperma ocorre por conta de uma diminuição generalizada nos níveis de testosterona [hormônio sexual masculino] nos homens.
A que fatores se deve essa queda na testosterona?
Para começar, um que eu não considero relevante é a genética, porque a queda foi muito rápida, ocorreu em duas gerações. Se não é genético, então é ambiental.
Divido os fatores ambientais em duas seções. Primeiro, os de estilo de vida, como cigarro, álcool, uso de drogas, sedentarismo e dieta desequilibrada. Há uma literatura científica considerável dizendo que tudo isso pode afetar a contagem de espermas no homem.
E todos estamos muito estressados agora, a obesidade está aumentando, temos menos tempo para nos exercitar….
Entretanto, a parte da história na qual realmente estou focada é nas mudanças que ocorrem muito cedo, em especial no útero da mãe. Quando a mulher está grávida e sofre a influência do ambiente, alterações na sua prole são muito significativas e permanentes.
E não podem ser consertadas, até onde sabemos.
Que tipo de alterações são essas?
No início da gestação, os testículos são formados e o feto começa a secretar testosterona. Essa produção inicial é a chave para diferenciar o sexo masculino do feminino, não só nos genitais, mas no cérebro. Há outros fatores, mas vamos focar no hormonal.
Se falta testosterona, o desenvolvimento masculino não ocorre como deveria.
Essa falta acontece, entre outras razões, pela exposição a agentes químicos, como alguns tipos de ftalatos, classe usada para amolecer plásticos, e outros componente comuns de cosméticos, perfumes, batons, esmaltes, garrafas…
Essas moléculas entram na corrente sanguínea da mãe, atravessam a barreira da placenta, entram no feto e atrapalham a diferenciação entre os sexos. Não parece muito, mas significa tudo para essa história que estamos contando.
Como jornalista, sempre ouvi dizer que não sabemos exatamente o quanto essas substâncias químicas do ambiente podem afetar nossa saúde, nem por quais mecanismos isso acontece. O que você tem a dizer sobre isso?
Além dos efeitos no desenvolvimento do feto, esses compostos impactam a própria vida sexual. Estudos mostram que mulheres com níveis altos de ftalatos na urina tinham menos satisfação sexual e uma frequência menor de penetração.
E homens mais expostos ao bisfenol A, outro tipo de plástico, têm mais disfunção erétil.
Nós conseguimos conectar diretamente o nível de algumas substâncias, como os ftalatos, na urina, ao desenvolvimento dos genitais do bebê.
Não é uma questão de “se” algo acontece. Com certeza acontece. O que pode ser discutido é o tamanho desse impacto, mas com certeza ele está ali.
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Quais são as substâncias químicas que mais te preocupam?
São aqueles que têm a capacidade de mudar os níveis dos nossos próprios hormônios ou atuam como eles, os chamados disruptores endócrinos, que estão nos produtos que usamos todos os dias.
Para mim, como pesquisadora do sexo masculino, os ftalatos são os mais importantes.
Há uma linha direta entre a exposição pré-natal a eles e diminuição de fertilidade. Sei que nem todos vão aceitar isso, mas temos mais de 25 anos de estudos nessa área.
São muitos tipos de ftalatos, presentes, por exemplo, em produtos de cuidado pessoal. E há ainda os fenóis, particularmente o bisfenol A, ou BPA, que já tem sido substituído de produtos por demanda popular.
Devo mencionar os PFOs e PFAs, compostos que atuam como barreira químicas em panelas antiaderentes, roupas impermeáveis e outros itens. Eles são hormonalmente ativos e estão ligados a danos á fertilidade.
Fora os pesticidas, que foram os primeiros disruptores endócrinos ambientais a serem estudados.
Medimos seus níveis na urina de homens em cidades americanas (somente uma delas com forte presença da agricultura), e pelo menos cinco destes produtos estavam muito ligados à queda na contagem de esperma.
E o que podemos fazer para nos proteger de tudo isso? A exposição parece inevitável, já que essas substâncias estão em todos os lugares…
Em primeiro lugar, eu diria para olhar para a comida, privilegiando alimentos minimamente processados e, quando possível, orgânicos.
Depois, armazenar essa comida de uma forma melhor. Se puder, não guardando em potes plásticos, e especialmente não aquecendo em plástico no micro-ondas. Também recomendo evitar panelas com camadas antiaderentes.
Também há a questão dos cosméticos. Nesse sentido, o que podemos fazer é checar a lista de ingredientes no rótulo. Mas isso não é nada simples e não é 100% confiável, então depende também de ação do governo.
Na verdade, eu diria para tentar simplificar a vida, usando poucos produtos. E não se martirizar. Não podemos evitar toda a exposição, mas sim fazer o melhor possível dentro do nosso alcance e cobrar uma regulação melhor.
No seu livro, você diz que a diminuição da fertilidade é algo negativo para a humanidade. Mas muita gente diz que seria melhor para o mundo termos menos crianças. Porque você alerta para essa questão?
É claro que é o direito de alguém não ter filhos. O problema é não poder ter filhos por causa de produtos vendidos por empresas interessadas em lucros. Ter filhos também é um direito fundamental, assim como não ter. Essa é a primeira questão.
Além disso, o ideal para a humanidade seria uma estabilidade: um humano “substituindo” o outro. Se um país tem uma taxa de fertilidade muito baixa, e muitos estão nos níveis mais baixos já registrados, podemos chegar a um ponto de não retorno [onde a população cai a zero].
Se isso é uma coisa boa ou ruim, é uma questão mais filosófica. Porém, quando você reduz o número de crianças e aumenta o de idosos, a pirâmide se inverte. E o que acontece é que, economicamente, não há pessoas o suficiente no meio para sustentar as pontas.
Não há dinheiro o suficiente para assistir aos idosos e nem para cuidar das crianças. Socialmente, é um desafio enorme.
E quando essa possível “extinção” aconteceria?
Não tenho a resposta, mas acredito que é um problema iminente que logo se tornará crítico. E não tão longe quanto pensamos. Basta pensar na queda da contagem de espermatozoides, que foi de 1% para 2,6% ao ano em menos de 50 anos.
Contagem regressiva (Alaúde)
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Contagem regressiva para a espécie humana? Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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