Após um dia comum de trabalho, a inglesa Wendy Mitchell saiu de seu escritório e se deparou com uma situação incomum: ela não sabia onde estava, não reconhecia nada nem ninguém à sua volta.
Episódios como esse voltaram a acontecer, então ela passou a procurar médicos para entender a causa do problema. Em 31 de julho de 2014, aos 58 anos, Wendy foi diagnosticada com demência precoce.
A condição se caracteriza pela perda progressiva da memória e da capacidade cognitiva, e é considerada precoce quando aparece antes dos 65 anos. A partir dessa idade, o Alzheimer e outros tipos de demência se tornam mais comuns.
O diagnóstico foi uma surpresa para a inglesa, que trabalhou com saúde a vida inteira. Por vinte anos, ela atuou como líder de uma equipe de profissionais de enfermagem no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido.
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Com sua vasta experiência profissional, somada ao apoio da família, amigos e especialistas, Wendy encontrou estratégias para lidar com a demência e tem compartilhado sua trajetória com milhares de pessoas.
Em nove anos convivendo com a condição, ela se tornou embaixadora da Alzheimer’s Society, recebeu o título honorário de doutora em Saúde pela Universidade de Bradford e publicou três livros sobre demência. Um deles ganhou tradução brasileira em maio pela BestSeller, do Grupo Editorial Record.
O que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre demência narra como a doença afeta pacientes para além dos prejuízos à memória, transformando as percepções de seus cinco sentidos e as relações com o mundo ao redor.
Em entrevista por e-mail, ela conta à VEJA SAÚDE como tem lidado com a demência e deixa mensagens às pessoas que também foram diagnosticadas com a condição.
VEJA SAÚDE: Uma pesquisa de 2022 mostrou que brasileiros diagnosticados com demência enfrentam dificuldades para achar centros de referência e equipes multidisciplinares de apoio ao tratamento. Quais foram os principais desafios que você encontrou no seu país? O que precisa ser melhorado, na sua opinião?
Wendy Mitchell: Aqui acontece o mesmo. Recebemos um diagnóstico, mas nenhuma ajuda, exceto em raras circunstâncias. Varia em todo o país, o que também é um problema. Alguns lugares têm um sistema de suporte, mas são poucos e distantes entre si.
Infelizmente, o mundo clínico está preso em uma distorção do tempo.
É preciso haver grandes melhorias no processo de diagnóstico, dando-nos esperança de uma vida ainda a ser vivida, em vez da mensagem de desgraça e melancolia que recebemos.
Os médicos e profissionais precisam equilibrar sua experiência clínica de diagnóstico e ver que, à sua frente, há uma pessoa com talentos e que ainda tem muito a oferecer à sociedade.
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O livro O que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre a demência é muito esclarecedor. O que a levou a escrevê-lo?
Eu queria dizer às pessoas que a demência é muito mais do que memória, pois muitos de nossos sentidos também são afetados. Então, com a ajuda dos meus amigos, quis dar a outras pessoas que vivem com demência uma plataforma para terem voz.
Quis mostrar aos leitores que eu não era a única lidando com a demência da melhor maneira possível. Outros também têm estratégias de enfrentamento para permitir que vivam melhor.
Além disso, o livro mostra como somos individuais, inclusive nas formas como a demência nos afeta.
Em junho, você lançou mais um livro, One Last Thing (“Uma última coisa”, em tradução livre). Qual mensagem você deseja compartilhar com o público nesta obra? Sabe se terá edição em português?
Quero compartilhar a mensagem de que o meio de comunicação mais poderoso é a fala.
Falar sobre o futuro, incluindo seus desejos e necessidades, é o maior presente que você pode dar aos seus filhos, para que, mais tarde, eles não tenham que tomar decisões sobre seus cuidados sem orientações.
Falei com muitas famílias que se desentenderam e não se falaram por anos, só porque essas conversas desconfortáveis não aconteceram.
Sobre a tradução, só poderia ser publicada se uma editora comprar a ideia, como aconteceu com O que eu gostaria… Espero que assim seja.
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Você lançou três livros desde o seu diagnóstico. Como era sua relação com a literatura antes disso e como ela mudou desde que você se tornou escritora?
Antes da demência, eu lia antes de dormir todas as noites. Mas, com esta condição, não leio mais romances, pois não consigo me lembrar do que li de uma noite para outra.
Agora prefiro contos ou peças biográficas, em que não preciso lembrar o que li para virar a página.
No entanto, digitar é minha fuga da demência. Posso digitar mais rápido do que consigo pensar e falar, porque essa parte do meu cérebro ainda não foi afetada.
Minha parceira na escrita, Anna Wharton, me ensinou muito sobre como escrever, então, acho que minhas habilidades melhoraram.
Além de escrever livros e manter o blog Which me I am today (“Qual versão de mim sou hoje?”), que outras atividades você faz para se manter ativa?
Amo fotografia e caminhadas.
Caminhar é outra das minhas fugas. Quando estou dentro de casa, a demência é minha única companhia e não é um hóspede muito agradável; ao passo que, ao ar livre, sinto que ela se dilui e posso me concentrar na natureza e no mundo maravilhoso ao meu redor.
Eu ando quilômetros todos os dias e minha câmera está sempre comigo para capturar aqueles momentos mágicos que desaparecem em um segundo se não olharmos.
Como uma entusiasta da pesquisa científica, fale sobre a importância de participar de ensaios clínicos para tratamentos de demência. Como é a sua experiência pessoal?
Não podemos mudar o futuro sem pesquisa, então, os ensaios clínicos são fundamentais.
Não apenas estudos com medicamentos, mas pesquisas sociais e tecnológicas para obter evidências sobre a melhor forma de viver e cuidar de alguém que não pode mais cuidar de si mesmo.
Participei de pesquisas porque nunca mudaremos a percepção da demência, a menos que arregacemos as mangas.
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Qual é a sua mensagem para as pessoas que acabaram de ser diagnosticadas com demência? E os cuidadores?
Eu diria: pense no diagnóstico como o início de uma forma diferente de viver.
Nenhum de nós escolheria ter demência, mas a vida ainda pode ser cheia de risos e aventuras. Não há nada que os médicos possa fazer por você, mas ainda há muito o que você possa fazer, talvez de forma diferente e com apoio.
A demência não acontece de repente, é progressiva. Então, aproveite cada dia e, se hoje for um dia ruim, bem, amanhã pode ser melhor.
Para os cuidadores, eu diria para evitar pensar muito no futuro. Fale sobre isso, preencha toda a papelada necessária, arquive e concentre-se em viver. Por favor, não seja superprotetor.
Pelas mais gentis razões, as pessoas começam a fazer coisas para nós. Mas, se não fizermos algo dia após dia, logo esquecemos e, então, o cuidador terá que fazer aquela coisa para sempre.
Em vez disso, nos dê tempo. O que importa se levamos o dobro do tempo para vestir um casaco? Você pode fazer outras coisas enquanto isso.
Se tivermos dificuldade com algo, ajude-nos a encontrar uma nova solução. Não consigo amarrar cadarços, então, minha filha encontrou sapatos que não precisam deles, o que significa que ainda posso me calçar sozinha.
Isso tudo não é culpa de ninguém. Acima de tudo, lembre-se de cuidar de você [cuidador] também.
O que eu gostaria que as pessoas soubessem sobre demência: De alguém que convive com o diagnóstico (BestSeller)
Entrevista: “Demência é muito mais do que perder a memória” Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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