Ao liberar o uso de testes de Sars-CoV-2 com prazo de validade vencido, agência cede a pressões, coloca a própria credibilidade científica em risco – e ameaça o combate à pandemia no Brasil
No final de novembro, o jornal “O Estado de S. Paulo” apurou que 6,8 milhões de testes de Sars-CoV-2 comprados pelo Ministério da Saúde estavam prestes a estragar: seu prazo de validade se encerrava em dezembro a janeiro de 2021. É muita coisa -supera com folga os 5 milhões de testes aplicados, até agora, pelo SUS-, e colocou o governo em situação constrangedora. Mas, hoje, a Anvisa desfez esse embaraço com uma medida chocante: irá prorrogar a data de validade dos testes, ou seja, permitirá que os brasileiros sejam diagnosticados com testes vencidos.
A validade será estendida em quatro meses. Os testes que vencem em dezembro, portanto, poderão ser usados até abril (e aqueles que estragam em janeiro serão permitidos até maio). A Anvisa declarou à “Folha de S. Paulo” que isso será feito em caráter excepcional, porque é importante aplicar testes para conter a pandemia, e os técnicos da agência irão elaborar uma estratégia para monitorar a qualidade dos kits vencidos.
Mas não é difícil perceber que, na verdade, a manobra tem motivação política. Desde o mês de novembro, a agência é presidida por um militar: trata-se do tenente-coronel Jorge Luiz Kormann, que foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o cargo. Além de não ser médico nem cientista, Kormann já endossou publicamente opiniões contrárias à OMS e à vacina Coronavac. Em 9 de novembro, por exemplo, Kormann curtiu um tuite que dizia “Todo mundo sabe que o Dória é o ‘China Boy’. Mas essa história de vacina, tá ficando até constrangedor”. O post, publicado pelo influenciador digital Leandro Ruschel, celebrava a interrupção dos testes com a vacina chinesa.
A postura ideologizada de Kormann tem alimentado o receio, desde sua nomeação, de que a Anvisa -formada por técnicos sérios e com reputação construída ao longo de décadas- venha a ter a credibilidade científica arranhada ou destruída por ações de caráter político. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, onde o governo Trump forçou a FDA a aprovar a hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19 – sendo que ela é comprovadamente ineficaz contra a doença, e pode ter efeitos colaterais perigosos. A FDA acabou revertendo a decisão e se insurgindo contra o governo.
Não há razões científicas, e nem mesmo logísticas, que justifiquem a utilização de exames fora do prazo de validade. Os testes de Sars-CoV-2 não são mais um produto escasso, e podem ser facilmente comprados no mercado nacional e internacional. Logo, o raciocínio sanitário invocado pela Anvisa (de que usar testes vencidos é melhor do que não fazer teste nenhum) não se sustenta.
Os testes de coronavírus -inclusive os do tipo RT-PCR, como os 6,8 milhões que estão prestes a estragar- já são sujeitos a imprecisões: podem dar falso negativo ou falso positivo. Com o uso de exames vencidos, o grau de confiabilidade despenca. Imagine, por exemplo, que você faça um teste e ele dê positivo. Para confirmar o diagnóstico, o procedimento padrão é sempre refazer o exame. Mas e se o primeiro, o segundo ou ambos os testes estiverem fora do prazo de validade? Como o médico irá interpretar os dados? Qual deles carregará maior peso? Como obter um resultado minimamente confiável sem realizar um terceiro teste – com um kit de exame que esteja dentro do prazo de validade?
O uso em larga escala de exames vencidos pode gerar dados distorcidos, com duas consequências graves: colocar em dúvida a credibilidade dos diagnósticos de Covid-19, estimulando o negacionismo de boa parte da população, e deixar o Brasil no escuro sobre a real evolução da pandemia. Ao liberar testes inadequados para uso, a Anvisa exibe sintomas de contaminação pelo vírus da política, como já acontecera com o Ministério da Saúde. Em outubro, ao dar um giro de 180 graus e dizer que o SUS não iria adquirir nem fornecer a Coronavac (24h após anunciar que iria fazê-lo), o ministro Eduardo Pazuello declarou, ao lado do presidente Jair Bolsonaro: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Havia, ali, uma nítida mensagem nas entrelinhas, deixando clara a insatisfação do próprio Pazuello, que é general da ativa. Kormann está na reserva. Ambos são militares.
Ter disciplina para acatar ordens, mesmo quando não se concorda com elas, é uma qualidade essencial a qualquer militar. O juramento à Bandeira, que todo jovem faz ao se alistar, prevê “cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado” e “respeitar os superiores hierárquicos”. Porém, ele também fala em dedicar-se “inteiramente ao serviço da Pátria”, cuja “honra, integridade e instituições” devem ser defendidas – se necessário, inclusive, “com o sacrifício da própria vida”.
A coisa certa a se fazer, no caso dos testes vencidos, está absolutamente clara: jogar fora os kits estragados, assumir o prejuízo e comprar novos exames. Isso, sim, é servir à Pátria – e à própria consciência.
A Anvisa foi contaminada por um vírus: o da política Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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