Imagine a seguinte situação: você ligou a TV e está passando um filme natalino. O longa começa com cenas de Nova York. O protagonista, provavelmente, tem um trauma do passado, como a morte do marido/esposa ou de algum familiar. A história se desenvolve com alguns clichês, decorações deslumbrantes e, no final, o casal principal se apaixona ou há uma lição sobre o verdadeiro significado do Natal – ou, ainda, as duas coisas.
Caso a descrição acima tenha se encaixado em mais de um filme que você tenha visto, não se assuste. A responsável por isso é a Hallmark, um canal de TV dos EUA que descobriu a fórmula do sucesso: lançar dezenas de filmes natalinos por ano, a um custo baixíssimo – ainda que a qualidade não seja lá essas coisas.
Criado em 2001, o Hallmark Channel pertence à Hallmark Cards, a empresa de cartões (de Natal, de aniversário, etc.) mais antiga dos EUA – tem 110 anos. O canal nasceu de outras emissoras religiosas, que, na década anterior, mudaram algumas vezes de nome (e de proprietário). O espírito cristão da programação, contudo, permaneceu.
A empreitada da Hallmark na televisão é antiga, vale dizer. Desde 1951, eles possuem um programa, o Hallmark Hall of Fame, que adapta histórias consagradas, como as peças de William Shakespeare. Hoje, o canal por assinatura da empresa alcança cerca de 85 milhões de residências nos EUA – quase 75% do público total do país.
O conteúdo do Hallmark Channel é baseado em valores considerados conservadores, que valorizam estruturas tradicionais de família americana, não criticam a religião e não tocam em temas espinhosos, como política e violência. É o canal para quem busca conteúdos com o clássico final feliz.
E pode apostar: os executivos da Hallmark andam tão felizes quanto os seus personagens, uma vez que o canal, ao contrário de outras emissoras dos EUA, cresce de vento em popa. Segundo o jornal Los Angeles Times, em 2016, a audiência do Hallmark Channel aumentou 36%, enquanto a do canal Movies & Mysteries, que pertence à Hallmark, cresceu 46%.
Em 2017, o Hallmark Channel se tornou a terceira maior emissora a cabo dos EUA – atrás apenas de ESPN e Fox News. Naquele ano, o canal faturou cerca de US$ 390 milhões em publicidade. Em grande parte, graças ao Natal.
Contagem regressiva
Assim como os cartões comemorativos, boa parte dos programas da Hallmark se baseia em feriados ou datas especiais: Dia das Mães, Dia dos Namorados e por aí vai. Mas a emissora encontrou a galinha dos ovos de ouro em 2009, quando começou com o Countdown to Christmas (“contagem regressiva para o Natal”).
A premissa é simples: lançar uma série de filmes e especiais no fim do ano – um esquenta para a noite de Natal. Via de regra, as produções seguem enredos bastante similares, usam os mesmos cenários e locações e, não raro, o mesmo grupo de atores. Tudo para caber no enxuto orçamento de aproximadamente US$ 2 milhões – shows como The Crown e Stranger Things, da Netflix, gastam pelo menos o quádruplo, por episódio.
Não demorou para que a temporada especial logo virasse tradição – e crescesse. Em 2020, a Hallmark planejou 40 filmes de Natal (há também episódios natalinos de When Calls the Heart, série de maior sucesso do canal). A cada dia, desde 24 de outubro, um deles é lançado. Em uma rápida olhada nas sinopses de cada um, é possível encontrar pérolas como um longa natalino de viagem no tempo e títulos, no mínimo, peculiares, como Never Kiss a Man in a Christmas Sweater (algo como “Nunca Beije um Homem com um Suéter de Natal).
Mas não se engane. Por mais mirabolantes que possam parecer, as produções seguem a mesma fórmula. Como o site ScreenRant resumiu: “Os filmes excessivamente sentimentais da Hallmark são projetados para não desafiar ou perturbar seus espectadores, que suspendem a descrença para entrar em uma realidade onde as tragédias só acontecem no passado e o equilíbrio emocional é sempre mantido em favor do romance e da alegria do feriado”.
É algo tão manjado que, nos EUA, há um “drinking game” para os filmes da Hallmark. É como um bingo etílico: a história se passa em Nova York? Tome uma dose de vodca (ou qualquer outra bebida). Algum ator recorrente dos especiais deu as caras? Vire o copo. Veja a lista completa, em inglês, aqui.
Nem a Covid-19 atrapalhou o especial deste ano. Os novos filmes têm menos cenas de multidão e poucos (ou nenhum) beijo. Ninguém, contudo, aparece de máscara. Ao The Hollywood Reporter, Michelle Vicary, vice-presidente executiva de programação da Crown Media (que controla a Hallmark) explicou que essa foi uma decisão editorial, uma vez que o intuito dos programas é servir de escape da realidade – algo que, convenhamos, tornou-se indispensável em 2020.
No Brasil, os filmes da Hallmark são exibidos pelo canal a cabo Studio Universal. E apesar das críticas negativas, eles continuam extremamente populares (e rentáveis, já que custam uma merreca). Alguns especialistas dizem que o fenômeno tem forçado plataformas de streaming como a Netflix a aumentar a produção de filmes do gênero. Notou uma oferta maior de especiais de Natal por lá? Não é por acaso.
Contudo, há uma crítica que extrapola a qualidade dos filmes: a falta de representatividade. Não raro, circula pela internet montagens com dezenas de cartazes das produções da Hallmark. Em todos, há decorações de Natal, roupas verdes e vermelhas e um casal branco heteronormativo (um homem e uma mulher cisgêneros e heterossexuais). Dá uma olhada:
A temporada de 2020 promete ser menos conservadora: haverá o primeiro filme da Hallmark com um casal gay e outro sobre o Chanucá, a festa judaica celebrada no fim do ano. Ainda há um longo caminho a percorrer, é claro, mas já é alguma coisa.
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