Nota: este texto foi modificado em relação ao publicado na revista impressa para incluir a segunda observação, realizada no Fermiab – que ainda não havia sido anunciada até a data de conclusão da edição de abril, mas que em termos estatísticos é ainda mais relevante.
Você é feito de órgãos e tecidos. Que são feitos de células, como os neurônios ou os glóbulos vermelhos. Que são feitas de moléculas, tipo o DNA ou as proteínas. Que, por sua vez, são conjuntos de átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio etc. Até o século 19, pensava-se que tudo terminava aí. Que não seria possível dividi-los em componentes menores.
Na verdade, é. Átomos são formados de prótons e nêutrons, cercados por uma nuvem de elétrons. E mesmo prótons e nêutrons ainda não são as menores coisas que existem. Em 1964, Murray Gell-Mann e George Zweig previram que ambos seriam compostos cada um por três partículas menores, os quarks. (O elétron ficou na dele: nada indica que seja feito de algo menor.)
Em 1973, após lidarem com um zoológico de centenas de partículas recém-descobertas, os físicos finalmente isolaram um conjunto de 17 delas que são realmente indivisíveis e compõem todas as outras. O conjunto de equações e parâmetros que descreve matematicamente essas partículas – e a maneira como elas interagem para construir a realidade – tem o nome de Modelo Padrão (MP).
Os testes mais exaustivos para verificar se o que o Modelo Padrão prevê está correto têm ocorrido desde 2008 no Grande Colisor de Hádrons (LHC), um túnel circular de 27 km e US$ 5 bilhões na fronteira entre a França e a Suíça. Ele acelera prótons à velocidade da luz para que eles colidam com o ímpeto de um stock car desgovernado. Os estilhaços da colisão são dezenas de partículas subatômicas, que decaem em outras, menores.
Quase todo decaimento que o LHC detecta já havia sido previsto no papel com precisão equivalente a medir a distância do Oiapoque ao Chuí com margem de erro de um fio de cabelo. Mas esse sucesso estrondoso traz um problema. O único jeito de avançar além do Modelo Padrão é trabalhar em cima das lacunas na teoria. Sem falhas, fica difícil saber qual caminho seguir. Nas palavras do Nobel Enrico Fermi: “Um experimento que confirma uma predição é só uma medição. Um experimento que contradiz uma predição é uma descoberta.”
A notícia boa é que, recentemente, surgiram dois fortes candidatos a grandes descobertas – no sentido Fermi do termo. Um decaimento observado com frequência no LHC desde 2014 parece se desviar do Modelo Padrão. E uma partícula chamada múon demonstrou comportamentos magnéticos peculiares no Fermilab, em Chicago. Essas anomalias podem sementes para um novo passo na física de partículas. Para entender a importância desses passos, vamos primeiro explicar o que o MP não faz, e que uma nova teoria poderia fazer.
Um dos problemas do MP são os chamados parâmetros livres. Existem 29 valores que sabemos que estão certos e são dados de antemão – como a massa do elétron: 9,1093837015(28) · 10−31. O problema é que não se sabe por que a massa dele é essa – e cientistas, ainda bem, se preocupam em saber os por quês de tudo.
Um segundo problema é o da hierarquia. De maneira muito simplificada, esse é o fato de que não há uma lógica aparente por trás das relações entre esses números. Por exemplo: por que a gravidade é uma força 10.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 (são 40 zeros) mais fraca que o eletromagnetismo se ambas são forças fundamentais da natureza?
O Modelo Padrão também não fala de partículas que precisariam existir, mas cuja identidade é um mistério. Os quarks, elétrons e afins são a chamada matéria bariônica, que corresponde a apenas 5% do conteúdo total de matéria e energia do Universo. Os 95% restantes são as chamadas matéria escura (que apesar de indetectável tem uma influência gravitacional perceptível na rotação das galáxias) e a energia escura, responsável pela expansão acelerada do Universo.
Além de não dizer nada sobre essa dupla, o Modelo Padrão não incorpora a força da gravidade. Quem descreve essa força é a Relatividade Geral de Einstein, que não fala de partículas. Enquanto o Modelo Padrão não explicar a matéria escura, a energia escura e a gravidade, ele estará incompleto.
As anomalias
As anomalias descobertas no LHC e no Fermilab não resolvem as questões acima. Ela são só pistas. Vamos entendê-las. Os dois tipos de quark que compõem nossos átomos foram batizados de quark up e quark down. Mas existem outros quarks mais pesados no Modelo Padrão, como o quark bottom. Tudo indica que, em certas circunstâncias, o quark bottom deveria decair em quantidades idênticas de elétrons e múons – uma versão elefante, mais pesada, dos elétrons. Mas o que os resultados do LHC vêm revelando desde 2014 é que algo desfavorece os múons: para cada 100 elétrons, só 85 múons saem do forno.
Observações realizadas desde então reduziram o grau de incerteza dessa observação para um valor bastante animador de 3,1 sigma. “Esse é o jeito dos cientistas de dizer que há apenas uma chance em mil de que o resultado seja uma flutuação aleatória nos dados”, explicam os físicos Harry Cliff, Konstantinos Petridis e Paula Cartelle, do LHC. “Mas nós ainda estamos longe de uma observação confirmada, que requer 5 sigma.” Sigma vêm e vão. Observações de 3,1 já deram em nada. Mas, caso dê em algo, que algo seria esse?
A anomalia pode indicar a presença do hipotético leptoquark – uma espécie de fusão entre partículas como os elétrons e os múons (chamados léptons) e os quarks que se manifestaria apenas em altas energias. Também é possível que o desequilíbrio indique uma nova força fundamental da natureza, transmitida por uma partícula hipotética chamada Z-prime. Ela pode ser uma peça do quebra-cabeça da matéria escura.
Você pode estar pensando: “uma diferença sutil na proporção entre duas partículas é suficiente para um rebuliço desses?” Talvez seja, porque a física trabalha com sutilezas. A primeira comprovação da Relatividade Geral foi que ela conseguia descrever uma característica da órbita de Mercúrio chamada precessão do periélio melhor que a gravitação de Newton, que errava por apenas 43 segundos de arco. A mudança no número foi pequena; a revolução no pensamento, enorme. Einstein precisou reimaginar o espaço e o tempo como um tecido maleável. A moral da história é que é impossível prever como um gênio resolverá um problema até que ele resolva.
Agora, o caso Fermilab, que envolve os múons – e alcançou um valor bem mais alto, de 4,2 sigma.
Os físicos do Fermilab estavam testando uma características dos múons chamada “momento magnético”. Eles queriam descobrir se a observação dessa partícula na prática correspondia às previsões de um cálculo feito por uma colaboração internacional com 132 cientistas. Para fazer isso, eles verificam o quanto o múon oscila (como um quadril de sambista) conforme dá voltas em torno de um anel magnetizado.
Partículas muito pequenas estão sujeitas a fenômenos quânticos que não ocorrem na escala humana. Elas produzem pares de partículas e antipartículas menores que brotam do nada e se aniquilam rapidamente (porque são, por assim dizer, opostos complementares). Esses acontecimentos efêmeros mexem com o momento magnético. Como os múons são particularmente gordos, eles também geram partículas gordas com mais frequência, e nisso pode brotar algo que nunca observamos – e que explique, de alguma forma, fenômenos como a matéria escura.
Neste momento, há um debate nos bastidores sobre se de fato houve uma anomalia de 4,2 sigma na sambadinha do múon – o que significaria a certeza quase absoluta de encontramos física além do Modelo Padrão – ou se novos métodos para calcular o momento magnético do múon que não existiam na década de 90 (quando esse experimento foi idealizado e iniciado) podem explicar essa observação sem abalar os pilares do arcabouço matemático atual.
Enquanto isso, ao longo dos próximos dias, uma enxurrada de papers com propostas para explicar a misteriosa observação deve inundar os servidores de pre print – que funcionam como fóruns de discussão altamente qualificados, onde cientistas podem ler e discutir trabalhos ainda não revisados nem publicados. A comunidade dos físicos está ouriçada, apesar da pandemia ter praticamente interrompido o trabalho prático: podemos estar diante de nada – ou de um evento histórico.
Ernest Rutherford, pioneiro dos estudos sobre o núcleo do átomo, disse certa vez que a única ciência de verdade é a física – o resto é “coleção de selos”. O que ele quis dizer é que químicos, geólogos e biólogos dedicam um enorme esforço a coletar e classificar moléculas, rochas e seres vivos. A ironia é que, hoje, a física está em uma situação parecida: colecionou selos de todas as partículas com o Modelo Padrão, mas agora precisa dar mais sentido a essa coleção. Como Darwin fez em 1858 ao encontrar uma teoria capaz de explicar todos os seres vivos; os selos da biologia.
Essa teoria unificada, capaz de abrigar toda a realidade sob o mesmo manto teórico, é o Santo Graal da física do século 21. Mas seu descobridor provavelmente não será um Einstein solitário. Serão quiçá centenas de pesquisadores trabalhando em grupo – combinando cérebros, orçamentos e equipamentos caríssimos. A ciência, hoje, é menos romântica. Mas o entusiasmo permanece.
A melhor teoria da física pode ter falhado. E isso é ótimo. Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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