segunda-feira, 26 de abril de 2021

Brasileiro descobre uma nova doença ultrarrara

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma doença é considerada rara quando afeta até 65 em cada 100 mil indivíduos. Descobrir uma nova enfermidade do tipo, portanto, é como buscar uma agulha no palheiro. E foi isso que o médico brasileiro Salmo Raskin fez, junto com outros especialistas espalhados pelo globo.

A partir de exames genéticos de última geração, esse time conseguiu encontrar alterações comuns no DNA de nove pessoas com convulsões, atraso no desenvolvimento, deficiência cognitiva… Eles batizaram esse problema ultrarraro de distúrbio progressivo do neurodesenvolvimento por mutação no gene VPS41. É, ficou comprido mesmo.

“Hoje é cada vez mais raro dar nomes que não trazem informação alguma”, explica Raskin. O termo basicamente remete ao pedaço do código genético afetado, e ao que isso provoca no corpo.

De Araquari para o mundo

O achado ajudou a dar respostas para uma família de Araquari, pequeno município no nordeste de Santa Catarina. Após uma odisseia para tentar entender o que estava acontecendo com dois filhos — uma menina de 11 anos e um menino de 8 —, Elaine, a mãe da família, acabou chegando ao Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, em Curitiba (PR).

Foi lá que Raskin, o diretor da clínica, ajudou a resolver o mistério. E a genética está por trás da descoberta, mas o que a história torna mais fascinante é o fato de que, três anos atrás, ela não seria possível, como destaca o médico, que já possui 30 anos de carreira.

O segredo está num exame chamado sequenciamento do exoma, que transforma os genes humanos em um “mapa” abrangente o bastante para que os cientistas possam localizar anomalias. Tudo a partir de uma simples coleta de sangue. “Até poucos anos atrás, podíamos testar qualquer gene, mas não vários ao mesmo tempo”, explica Raskin, que é presidente do departamento científico de genética da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Isso mudou com o sequenciamento do exoma. O avanço beneficia especialmente os indivíduos com doenças raras. O exame não é barato: custa cerca de 6,5 mil reais. Mas a boa notícia é que, recentemente, o sequenciamento passou a fazer parte do rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), coberto pelos planos de saúde em casos de deficiência intelectual.

Quando Elaine levou os dois irmãos à clínica, Raskin conseguiu mapear os genes por completo e verificar, em ambos, alterações no tal gene VPS41. Em um comunicado da assessoria de imprensa do médico, a mãe disse não ter sido fácil receber o diagnóstico. “Mas tenho certeza de que fazer o exame genético salvou a vida dos meus filhos”, comentou.

Raskin diz que, mesmo sem um tratamento, ter um diagnóstico preciso é importante: “Entender o que ocorre sempre traz alívio”. Além disso, torna-se possível conter melhor os sintomas e descartar outras condições que poderiam causar o quadro.

A descoberta também ajuda a criar, no futuro, possíveis tratamentos para conter ou, eventualmente, até curar o distúrbio. Raskin se diz confiante de que em até 15 anos vai existir uma forma de repor a proteína que fica em falta no corpo por causa dessa doença e impedir um quadro tão grave quanto o das crianças que examinou.

E mais: “Com a descoberta da mutação, se esse casal quisesse ter outros filhos, daria para evitar a doença por meio da fertilização in vitro”, conta o médico.

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O distúrbio progressivo do neurodesenvolvimento por mutação no gene VPS41

Ele provoca atraso global no desenvolvimento, deterioração das funções do cérebro e convulsões. Além dos irmãos brasileiros, há casos na Turquia (um homem de 28 anos), no Irã (duas irmãs adolescentes, de 11 e 15), e na Arábia Saudita, com duas famílias (uma com um menino de 2 anos e outra com três irmãos de 13, 22 e 27 anos). Em comum, todos têm desenvolvimento motor atrasado, deficiência cognitiva, alterações ou ausência de fala, descoordenação motora e nistagmo (movimento involuntário dos olhos). Alguns também manifestam a hipotonia, que é a perda de força muscular.

Um fato chamou a atenção de Raskin: em todos os casos, inclusive o brasileiro, os pais são primos entre si. Mas o médico reluta em relacionar isso diretamente à descoberta: “Com apenas nove pacientes, temos uma amostra muito pequena. Não dá para afirmar categoricamente que o casamento entre primos está na raiz da alteração do gene”, pondera.

Trabalho em conjunto

O exame feito nas crianças brasileiras mostrou uma alteração em um gene que, na literatura médica, não estava associado a nenhuma doença, conta Raskin. “Talvez o problema estivesse em outro local, mas chamava a atenção que os dois irmãos tinham a alteração no mesmo gene”.

Ao conversar com colegas da Alemanha, Inglaterra, França e Holanda, o médico soube que, naquele exato momento, eles estavam descobrindo alterações no mesmo gene. Não fosse o trabalho em rede, a descoberta dessa doença ultrarrara talvez fosse inviável. “Eu teria que fazer uma profunda e longa pesquisa científica para saber se a alteração naquele gene deixaria de produzir uma determinada proteína”, exemplifica Raskin.

Segundo ele, essas contribuições em rede têm se tornado mais fáceis por causa de projetos que unificam as bases de mapeamento genético existentes no mundo inteiro. “Estamos caminhando no sentido de ter duas ou três bases da população em geral e duas ou três de cada doença”, celebra. “Vai ser mais fácil de procurar”.

O artigo com o relato de descoberta foi publicado no respeito periódico científico Brain.

O silêncio ensurdecedor das doenças raras

Embora raras quando isoladas, essas enfermidades, juntas, fazem um baita. A Eurordis, ONG que representa pacientes europeus, estima que entre 24 e 36 milhões de pessoas sofrem delas no Velho Continente. Nos Estados Unidos, são de 25 a 30 milhões de indivíduos, de acordo com o National Institutes of Health. No Brasil, a Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa) calcula cerca de 13 milhões — o que equivale a quatro brasileiros em cada ônibus lotado.

Não é pouca gente.

A literatura médica lista entre 6 e 8 mil doenças raras, a depender da fonte. A maior parte, como o caso do achado de Raskin, tem origem genética (72% a 80%) e afeta crianças (70% a 75%).

Na maioria das regiões do país, doenças raras são a maior causa de mortalidade infantil até os 5 anos de idade. Elas têm distintos sinais e sintomas, que variam não apenas de doença a doença, mas entre pessoas com a mesma condição.

“Todos estamos ligados a alguém com uma doença rara”, afirma, em um material informativo, a Rede Nacional de Doenças Raras, dos Estados Unidos. “Doenças raras são uma importante preocupação de saúde pública”.

Raskin concorda: “Unidas, elas são tão comuns quanto diabetes ou asma, por exemplo. Mas com o agravante de que exigem odisseias para serem descobertas”.

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