quinta-feira, 17 de março de 2022

Burnout: como lidar com ele

VVocê deve conhecer alguém que esteja soterrado por uma rotina estafante, marcada por compromissos inadiáveis e maus hábitos. Talvez seja você mesmo quem vem trabalhando além dos limites. Esse estilo de vida é um passaporte para o colapso físico e mental. O problema tem nome: síndrome de burnout. Vem da expressão to burn out, que significa queimar por inteiro, em inglês. O termo se popularizou há pouco tempo – mas o fenômeno vem fritando cérebros pelo mundo há quase meio século.

Em 1974, o psicanalista alemão Herbert Freudenberger passava 12 horas por dia em seu consultório e, depois, emendava trabalho voluntário numa clínica para dependentes químicos em Nova York. Foi em meio a essa rotina que ele começou a sentir alterações no humor, falta de motivação e cansaço físico e emocional. Outros funcionários da clínica tinham sintomas parecidos.

Como consequência, rendiam pouco – reduzindo a eficácia dos tratamentos. “Mais e mais demandas são feitas para cada vez menos pessoas; você tem um sentimento de comprometimento total, até que finalmente se encontra, como eu me encontrei, em um estado de exaustão”, escreveu Freudenberger, em artigo de 1973. Era o prenúncio do que ele chamaria de síndrome de burnout em um texto publicado no ano seguinte, no Journal of Social Issues.

Inicialmente, o burnout era considerado um problema típico dos profissionais que trabalham na área da saúde. De fato, existem muitos estudos científicos voltados à incidência do problema entre médicos, enfermeiros e psicólogos. Mas qualquer um pode entrar em parafuso por conta das pressões do trabalho.

Uma pesquisa da consultoria Kronos ouviu 614 gestores de RH dos EUA em 2017. Para 95% deles, o burnout fazia suas empresas perderem talentos. Entre os fatores que mais alimentam a síndrome estão compensação injusta (apontada por 41% deles), carga de trabalho excessiva (32%) e excesso de horas extras (32%).

No Brasil, a crise econômica que parece não ter fim levou o País a somar mais de 13 milhões de desempregados. Quem tem um emprego agarra-se a ele com unhas e dentes. De quebra, se vê obrigado a render sempre mais. “A falta de consciência tem sempre dois lados: o das empresas, que criam pressões insuportáveis, e o das pessoas, que não têm consciência de que entram em estresse prolongado”, explica Luiz Edmundo Rosa, diretor nacional da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH).

Para dar conta do recado, muita gente abusa do açúcar, do café, de energéticos e de outros estimulantes. Vira um vale-tudo para ficar sempre alerta. Algumas pessoas, inclusive, passam a consumir mais álcool.

Acrescente a esse contexto a onipresença que o trabalho ganhou com a chegada dos smartphones. Agora, a mesa do escritório acompanha o profissional em toda parte. Disponibilidade permanente, cobranças irrazoáveis, metas inatingíveis, excesso de expectativa e falta de reconhecimento.

Eis aí o combo da exaustão. “A necessidade de estar sempre ativo e conectado cria uma sensação de ineficácia”, explica a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente do capítulo brasileiro da International Stress Management Association (Isma-BR). Em algum nível, o burnout atinge hoje um em cada três trabalhadores no País.

“A situação é tão grave que tem levado muita gente a se licenciar do trabalho para tratar da exaustão”, diz a psicóloga Ana Kernkraut, coordenadora do Serviço de Psicologia e Experiência do Paciente do Hospital Israelita Albert Einstein. Mas os efeitos do burnout extrapolam o ambiente profissional. A síndrome deixa o paciente desanimado e irritadiço. Aos poucos, atividades prazerosas – como praticar esportes e até fazer sexo – perdem a graça.

Diversos médicos e psicólogos associam o burnout à depressão. Ainda que tenham os mesmos sintomas, não são a mesma coisa. A raiz do burnout é o estresse crônico originado no trabalho. Já a depressão pode ter outras causas e afetar qualquer pessoa. “A sensação do burnout é de um esgotamento que não passa em um dia de folga ou um final de semana, e cresce até se tornar uma experiência depressiva”, explica o psicólogo Fernando Gastal de Castro, autor de Fracasso do Projeto de Ser – Burnout, Existência e Paradoxos do Trabalho.

Embora relacionados, estresse e burnout não são sinônimos. O estresse é uma reação fisiológica do organismo a situações de excitação emocional – agindo como um choque que leva o sujeito a buscar a superação. Além da mente exaurida, o corpo implora por socorro.

Quem tem burnout tende a sofrer com insônia, falta ou excesso de apetite, enxaqueca, dor muscular e redução na imunidade. Um simples resfriado pode levar mais de uma semana para passar. O estresse faz o organismo perder o equilíbrio, e a pessoa entra em curto-circuito: o coração dispara, surgem esquecimentos, desmaios e crises de pânico.

Crash em Miami

A rotina de Jaqueline Rocha era frenética havia mais de uma década. Mas ela não se importava. Liderava grandes equipes, viajava ao exterior a trabalho com frequência. Era a encarnação da profissional de sucesso. Aos 48 anos, passar noites imersa em projetos e responder e-mails na madrugada fazia parte do jogo.

Até que a saúde cobrou seu preço numa reunião em Miami, em 2016. Então diretora de operações comerciais da Globosat, Jaqueline sentiu-se mal quando falava sobre as Olimpíadas do Rio de Janeiro. Veio uma pressão insuportável na cabeça, um calor anormal. As palavras não fluíam. Ela pifou.

“Eu sofria com enxaqueca, enjoos e dispersão havia meses, e insistia em trabalhar mais. Mas daquela vez foi diferente, algo grave estava acontecendo”, relembra. Um amigo a levou até um hospital, onde ela fez exames e foi atendida por um psiquiatra. Era a primeira vez que ouvia falar em burnout.

Na volta ao Rio, os sintomas explodiram. Ao incômodo físico – como sudorese, vômitos diários e falta de ar – somaram-se lapsos de memória. Dessa vez, um psicólogo confirmou o diagnóstico. Era mesmo exaustão laboral. Sabendo que não podia mais empurrar o problema, Jaqueline ficou quase um ano em licença-médica. Chegou a tomar oito medicamentos por dia.

Na hora de retornar, sentiu que não tinha mais clima para seguir na empresa. Estava incomodada pelo modo como vinha sendo tratada. Não queria, e nem podia, voltar ao ritmo de antes. A solução foi tirar o time de campo. “Hoje as pessoas se permitem escravizar pela cultura do sempre posso fazer mais.”

A mudança foi radical. Jaqueline saiu da Barra da Tijuca para morar numa casa em plena zona rural da Serra Fluminense. Hoje, trabalha como consultora de projetos e uniu-se a um grupo de profissionais vítimas de burnout. Juntos, eles militam contra o excesso de trabalho, com campanhas e palestras Brasil afora. Entre essas pessoas está a jornalista Izabella Camargo, que sofreu um apagão ao vivo quando apresentava a previsão do tempo na Rede Globo, em 2018.

SEIS GATILHOS

Situações que costumam exaurir o ânimo e podem levar a pessoa à síndrome de burnout.

1. POUCA GENTE
Quando há muitas tarefas acumuladas e poucas pessoas responsáveis por executá-las.

2. FALTA DE CONTROLE
Existem muitas coisas para fazer, mas não há uma agenda organizada ou lista de prioridades.

3. FALTA DE RECOMPENSA
A pessoa gosta do que faz, se esmera e dá o seu melhor, mas não é reconhecida por quase ninguém.

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4. INJUSTIÇA
Quando alguém menos capacitado recebe melhores oportunidades e promoções.

5. FALTA DE VALOR
O trabalhador se vê obrigado a fazer algo em que não acredita (como vender um seguro que nem ele compraria) apenas para cumprir metas.

6. PERFECCIONISMO
As pessoas que se esforçam mais, e levam o trabalho mais a sério, correm maior risco de adquirir a síndrome.

Sapo na panela

Reza a lenda que um sapo, ao ser colocado em uma panela com água, nada tranquilamente. Se alguém acender o fogo, ele não percebe a água esquentar. Fica ali, curtindo o quentinho. Até que a panela ferve, e ele morre cozido. Essa metáfora é associada a quem não nota a própria fadiga laboral. O exemplo de Jaqueline mostra que é preciso uma sequência de más experiências para que a pessoa dê a devida importância à situação.

O primeiro indício do burnout é a noção de estar acima dos limites. Sabe aquela pessoa que está sempre “na correria”, sem tempo para nada? É candidata ao burnout. A competitividade exagerada entre os colegas também potencializa o estresse crônico. “O culto da excelência propagado pelas empresas, em que o empregado precisa sempre estar acima de todos, produz um excesso de atividade que leva ao esgotamento físico e psíquico”, afirma Gastal de Castro.

Outro perfil vulnerável é o perfeccionista: o sujeito dedica-se ao máximo às tarefas propostas, se sacrifica para entregar o melhor resultado possível e, muitas vezes, não recebe um mísero elogio.

Uma dica difícil de seguir tem a ver com o celular. O simples fato de ter um smartphone à mão te deixa alerta. Estudos da Apple revelam que desbloqueamos a tela do aparelho 110 vezes por dia, em média.

Na França, uma em cada três pessoas admite usar ferramentas de trabalho fora do serviço com regularidade. Por isso, o país criou uma lei para impedir que as companhias contatem os funcionários em suas folgas. Algumas empresas estão até desativando os servidores de e-mails. Tudo para promover o devido descanso.

“A pessoa sente que deveria estar produzindo mais e passa a trabalhar além dos seus limites”, salienta Ana Rossi, do Isma-BR. Nesse momento, há quem duvide de suas próprias capacidades e se torne relapso com colegas e clientes. Em casos de professores e profissionais de saúde, a perda da empatia com alunos e pacientes é um sintoma clássico.

Quem vive uma rotina de trabalho exasperante sofre alterações em hormônios vitais ao corpo e à mente. O mais crítico é o cortisol – o hormônio do estresse. Vinculado ao medo e à preocupação, ele é essencial para sustentar a imunidade, mas se estiver em excesso joga contra a saúde.

A pressão sanguínea e o ritmo cardíaco aumentam. Quando isso acontece, está na hora de procurar ajuda. Além da terapia e das medicações, mudar a rotina é essencial para que tudo não desabe novamente. Também recomenda-se praticar esportes, alimentar-se adequadamente e adotar técnicas de relaxamento, como respirar profundamente 10 minutos ao dia. Mas nem sempre isso é suficiente. “Muitas vezes, o paciente jamais conseguirá voltar a trabalhar na mesma empresa”, diz Ana Kernkraut, do Hospital Albert Einstein.

Perigo no ar

Os primeiros estudos sobre burnout datam dos anos 1960, ainda antes de Freudenberger dar nome ao problema. Doutora em psicologia aplicada e especialista em burnout, Rajvinder Samra conta que, naquela década, houve um movimento de demissão em massa entre os controladores de tráfego aéreo dos EUA.

Uma pesquisa feita com 400 deles concluiu que o principal motivo estava na sobrecarga de trabalho multiplicada pela tensão de cuidar da segurança de milhões de passageiros. “O trabalho se tornava cada vez mais difícil, com mais aviões circulando e menos controladores para monitorar as rotas”, explica a professora da The Open University, do Reino Unido. “A chegada de novas tecnologias também mostrava que a profissão estava passando por mudanças.”

Além deles, médicos e enfermeiros são figuras cativas dessa zona de risco. Um estudo do Conselho Federal de Medicina (CFM) aponta que 23,1% dos médicos brasileiros têm algum grau da síndrome do burnout. Nos EUA, uma pesquisa feita pela consultoria RNNetwork com 600 enfermeiras, em 2017, mostrou que metade delas pensava em mudar de profissão e 25% sentiam-se exaustas.

Professores, operadores de telemarketing, jornalistas e bancários também são submetidos regularmente a situações de estresse. “São profissionais que costumam trabalhar sob intensa pressão, mas têm pouca autonomia sobre as próprias tarefas e baixo reconhecimento”, afirma Lucia Malagris, professora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A realidade da segurança pública no Brasil também não é nada fácil. Um questionário do Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília (UnB) mediu o esgotamento de 350 policiais militares. Os entrevistados se queixaram da falta de efetivo, que leva a atrasos nos atendimentos e os obriga a priorizar investigações em detrimento de outras.

Resultado: 37% deles revelaram exaustão emocional, 60% se disseram decepcionados com o trabalho e 40% mostraram sintomas de despersonalização, em que deixam de se preocupar com o outro.

Inseguros e ambiciosos completam o quadro dos perfis mais vulneráveis à síndrome de burnout. No caso dos ambiciosos, o excesso de confiança pode se revelar um tiro pela culatra. “São pessoas que aprenderam que sempre há espaço para produzir e competir mais. Quando o sucesso não vem, a frustração é pesada demais”, explica Malagris.

Para muitos, o burnout acaba sendo inevitável. O problema pode ser diagnosticado por um teste chamado MBI (Maslasch Burnout Inventory). O questionário, criado em 1981 nos Estados Unidos, verifica se a pessoa está ou não em esgotamento – e avalia, também, a sua gravidade. Ainda que a síndrome não tenha cura, profissionais e empresas devem se esforçar para preveni-la. E, quando ela surgir, o tratamento é o único caminho.

CORPO E MENTE EM CHAMAS

Como o estresse laboral leva a pessoa ao esgotamento.

ALTOS NÍVEIS de estresse causam alterações no corpo e no cérebro, desregulando hormônios essenciais para o bom funcionamento do organismo.

A PESSOA que está sob tensão pode ter liberação excessiva de adrenalina e cortisol – o hormônio do estresse.

O PROBLEMA É que uma rotina fatigante leva o organismo a manter a liberação de cortisol em alta. Assim, aumenta a pressão sanguínea, causando taquicardia.

AS ALTERAÇÕES provocam outros transtornos, como insônia e redução da imunidade, facilitando a entrada de infecções e doenças.

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