A prostituta japonesa Sada Abe (1905-1971) permaneceu deitada por quatro horas, com uma intensa sensação de leveza e tranquilidade, ao lado de seu parceiro sexual, o dono de restaurante Kichizō Ishida. Já seu amante não sentia nada. Ele estava morto. Tinha acabado de ser assassinado por Abe enquanto dormia. Estrangulado.
Essa é uma história real e aconteceu em maio de 1936. Os dois tinham um apetite sexual interminável: passavam semanas só transando e bebendo saquê o dia inteiro. Gostavam também de algumas perversões. Uma delas era a asfixia erótica, um estrangulamento intencional que, em algumas pessoas, aumenta o prazer do sexo em consequência da restrição da passagem de oxigênio para o cérebro – a mesma brincadeira perigosa que matou o vocalista da banda INXS, Michael Hutchence, e que é considerada um distúrbio mental pela Associação Americana de Psiquiatria.
Enciumada, porque Ishida se mantinha casado ao longo do seu relacionamento extraconjugal com ela, Abe aproveitou uma noite em que o amante dormia profundamente – à base de 30 comprimidos de sedativos – para uma última asfixia, dessa vez letal. Estrangulou o parceiro até a morte com uma faixa de pano e, horas depois, cortou seu pênis e testículos com um punhal afiado, guardando-os cuidadosamente numa capa de revista. Queria ter essas lembranças de seu amado para sempre, e fugiu do local com os “souvenirs” no kimono.
Mas não deu certo. Sada Abe foi presa, condenada por assassinato e mutilação de cadáver, e seu crime ficou famoso, inspirando obras literárias e um dos filmes mais controversos da história do cinema: O Império dos Sentidos, do diretor japonês Nagisa Ôshima, artista que completaria 90 anos neste 31 de março (o cineasta morreu em 2013).
Lançado em 1976, o filme escandalizou o mundo com muitas cenas de sexo explícito hardcore, reproduzindo o romance pervertido de Abe e Ishida. Mas mais do que isso: os atores transaram de verdade diante das câmeras, nada era simulado, e isso numa obra de real qualidade artística – foi, por exemplo, o longa-metragem recordista de exibições no prestigioso Festival de Cannes: passou 13 vezes numa única edição do evento.
Bom, o que não faltava era novidade para o público adepto do cinema de arte. O Império dos Sentidos foi o primeiro filme de um cineasta conhecido, e fora do circuito pornô, a mostrar um pênis ereto e sequências de sexo oral.
Em uma cena marcante, um ovo cozido é colocado dentro da vagina da protagonista, para depois ser “botado” e colocado na boca de seu amante. Em outra sequência, há uma orgia em que várias prostitutas dominam uma jovem e a violentam com um consolo em forma de pássaro.
Para se ter uma ideia da ousadia de Ôshima, até hoje filmes realmente pornográficos no Japão não exibem genitálias, pixelando ou borrando vaginas e falos nas cenas. Não à toa, O Império dos Sentidos foi censurado em sua terra natal e em muitos outros países. No mínimo, passavam uma versão com cortes. Os distribuidores não queriam expor seu público ao rala e rola e nem a diálogos como este:
O amante: “Eu tenho de fazer xixi. Tudo bem por você?
Sada: “Não precisa sair para isso. Faça aqui mesmo”.
O amante: “Aqui onde?”.
Sada: “Dentro de mim. Bem gostoso e quentinho”.
Sobrou para a atriz
Claro, tanta liberdade artística e sexual não passaria impune. Nagisa Ôshima foi processado por obscenidade no Japão quando publicou em livro o roteiro do filme. E a repercussão do longa também reforçou a tradição machista que vigora ainda no país.
Eiko Matsuda, a atriz que interpretou Sada Abe, foi hostilizada publicamente pelas sequências de sexo. Sofreu tanto bullying que acabou se mudando para a França e abandonou a carreira no cinema, já que simplesmente não conseguia mais convites para atuar. Já o ator Tatsuya Fuji, seu parceiro de cena, não teve problemas em exibir o corpo: continuou recebendo papéis e atua até os dias de hoje – seu último filme é de 2019.
Apesar dos problemas com a censura, O Império dos Sentidos fez sucesso de crítica e marcou a história da arte ao trazer elementos dos filmes pornográficos para o cinema de primeira linha. Em seu longa seguinte, porém, Nagisa Ôshima resolveu pegar mais leve: dirigiu Furyo: Em Nome da Honra (1983), que traz David Bowie no papel de um prisioneiro de guerra nas mãos do exército japonês durante a Segunda Guerra Mundial.
E aí tudo bem para os censores… Guerra pode, sexo não.
“O Império dos Sentidos”: arte ou pornografia? Os dois! Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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