Em setembro de 1918, quando a gripe espanhola chegou ao Brasil, Pedro Nava (1903-1984) e Nelson Rodrigues (1912-1980) tinham 15 e 6 anos, respectivamente. Testemunhas oculares da tragédia, os dois registraram, cada qual à sua maneira, os estragos causados pela peste que, só no Rio de Janeiro, infectou 600 mil pessoas (dois terços da população) e matou 14 mil.
“Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas. Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível já não era o número de casualidades, mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos”, escreveu o médico mineiro em Chão de Ferro (Companhia das Letras), o terceiro volume de suas memórias.
“Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios: na varanda, na janela, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na ‘espanhola’, não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, como se fossem não mortos, mas bêbados. Ninguém os chorava, ninguém”, relatou o dramaturgo pernambucano na crônica Quem Não Morreu na Espanhola?, publicada no jornal Correio da Manhã, de 8 de março de 1967, e eternizada no livro de memórias A Menina Sem Estrela (Nova Fronteira).
No futuro, quem quiser saber um pouco mais sobre a Covid-19 — que, até a presente data, dizimou 6,2 milhões de pessoas ao redor do mundo, 665 mil delas só no Brasil — poderá ler Uma Dor Perfeita (Alfaguara). O livro do escritor Ricardo Lísias, de 47 anos, foi redigido no período de duas semanas, entre março e abril de 2021, quando esteve internado na UTI de um hospital particular paulistano.
Felizmente, ele não precisou ser intubado. Mas viveu dias preocupantes. À época, o número de mortos chegou a 4 mil por dia. “Sinto solidariedade com a dor de quem perdeu alguém próximo”, lamenta. “Para mim, quem zomba de pessoas com falta de ar, desestimula a vacinação e desacredita da medicina é muitas coisas, entre elas, uma pessoa ruim”, diz.
Autor de romances, contos e ensaios, como O Livro dos Mandarins, O Céu dos Suicidas e Divórcio (publicados pela Alfaguara), Lísias começou a rabiscar as linhas de seu mais novo livro ainda no leito do hospital, primeiro na UTI e depois no quarto, com papel e caneta cedidos por uma enfermeira.
Os primeiros dias, recorda, foram os piores: febre alta, sudorese intensa, dor inimaginável. “É importante dizer que eu não pensava na morte, porque a dor era tão grande, tão violenta e desesperadora, que eu não pensava em praticamente nada”, recorda.
Ao longo de 148 páginas, Lísias descreve não só os apuros vividos pelos pacientes da UTI — “À noite, alguns ficavam tensos e choravam alto” —, mas também os perrengues enfrentados por profissionais da saúde, como médicos, enfermeiros e fisioterapeutas — “De vez em quando, vinham me atender com os olhos vermelhos”.
Um ano depois de receber alta, Lísias ainda convive com lapsos de memória e dores musculares, sequelas da Covid-19. Por medida de precaução, ainda usa máscara em lugares públicos e evita ao máximo o contato pessoal prolongado.
Por essas e outras, descarta o lançamento presencial de Uma Dor Perfeita. Em breve, o escritor voltará ao hospital onde passou os 12 piores dias de sua vida. Não, o escritor não foi reinfectado. Sua filha vai nascer lá. “Vai ser no mínimo emocionante”, afirma Lísias, contando os minutos para o grande dia.
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Entrevista com o autor
VEJA SAÚDE: Qual foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça quando testou positivo para Covid?
Ricardo Lísias: Eu fiquei mais ou menos uma semana com Covid sem sintomas, talvez apenas uma febre moderada. Nesse período, a saturação continuou normal. Minha esposa, por outro lado, tinha sintomas como perda de olfato, cansaço e febre um pouco mais alta. Achei que eu próprio não teria nada além disso.
Então, uma noite, eu senti muito mal-estar, minha saturação caiu muito e chegou a 86. Um médico me atendeu pelo WhatsApp e me falou uma frase decisiva: “Você tem que ir ao pronto-socorro imediatamente. Agora mesmo. Não tome banho. Não perca tempo: vá agora”. Então eu fui.
Na entrada do hospital, passei muito mal, perdi o ar e a força nas pernas. Não conseguia mais andar direito. Eu só tinha levado os documentos e o celular. Diante disso, quando descobri que tinha Covid, meu primeiro pensamento foi: não vou ter nada. E, no hospital, alguns dias depois, fui enviado imediatamente para a UTI.
Qual teria sido o momento mais difícil de sua internação? Em algum momento, teve medo de morrer?
Sim, fiquei internado na UTI – Covid do Hospital São Luiz, unidade Itaim, em São Paulo, justamente em um período de alta do número de óbitos no Brasil. Para mim, o período mais complicado foi a primeira semana, quando eu piorei muito, senti muita dor nas pernas e precisei de um cuidado muito intenso.
É importante dizer que eu não pensava na morte porque a dor era tão grande, tão violenta e desesperadora, que eu não pensava em praticamente nada. A minha lembrança sobre essa primeira semana é muito difusa. Então, minhas sensações estão todas em uma nuvem de enorme dor. Inclusive, a questão do medo.
Com uma dor tão grande e com a febre elevada a ponto de eu suar sem parar, molhando muito os lençóis, as outras sensações ficam muito diminuídas. Posteriormente, quando já estava no processo de recuperação, senti medo, por exemplo, de não conseguir retomar normalmente o contato com o meu filho, o que, aliás, de fato, demorou um pouco.
Como era a convivência com os profissionais da saúde e com os demais pacientes?
Com exceção da dor, talvez o que mais tenha me marcado seja a situação humana dos outros pacientes e dos profissionais ao meu redor. À noite, alguns pacientes ficavam tensos e choravam alto. Um dia, quando eu já estava na fase de recuperação, na segunda semana da UTI, entrou ao meu lado uma mulher chorando.
Ela repetia alto: “Quem está com o meu filho? Onde está o meu filho? Quem está cuidando do meu filho?”, repetiu isso por algum tempo e, depois, parou. Fiquei muito angustiado. Eu também tenho forte a lembrança dos médicos, enfermeiros e fisioterapeutas muito estressados. Alguns dias eram muito estressantes para eles e, de vez em quando, vinham me atender com os olhos vermelhos.
No quarto, quando eu já tinha deixado a UTI e estava na semi-intensiva, uma fisioterapeuta veio fazer exercícios comigo mas precisou parar um pouco pois estava com os olhos lacrimejando. Vi enfermeiros chorando também.
Ouvi a conversa de um homem que iria ser entubado e, antes, pediu para o fisioterapeuta dar um abraço nele. Essa dimensão do problema, que passou ao largo de muita gente, era muito intensa e dura. Não me estranha que, depois da internação, muitos pacientes estejam com depressão.
Fala-se pouco, mas imagino que muitos médicos, fisioterapeutas e enfermeiros também estejam. Fui internado em um hospital com ótima estrutura. Mal posso imaginar os hospitais com menos recursos. Não convivi com os outros pacientes. A personagem que no livro eu chamei de “Velha Cloroquina” foi a única que me irritou, pela forma como ela tratava os profissionais de saúde.
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A convivência com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas foi, no geral, muito boa. Eu tinha em mente que devia dar um desconto por causa da tensão, mas ela não contaminava muito o atendimento. Eu fiquei impressionado com a enfermeira que me atendeu primeiro, quando tive um colapso um pouco depois de entrar no hospital. Ela me pareceu uma pessoa muito boa e me disse a frase que coloquei no livro: “Não precisa ficar nervoso. Aqui, a gente faz o melhor possível”.
Gostaria de saber o nome dela para agradecer. Alguns médicos conversavam mais. Um me falou que tinha lido toda a obra do Proust. Outro, mais jovem, também conversava sobre futebol. Os enfermeiros estavam visivelmente sobrecarregados, ainda assim pareciam fazer tudo com muita precisão.
As personagens que chamei no livro de “fabricante de TCC” e “meu ministro da saúde” eram importantes, pois deixavam o ambiente menos tenso. A única pessoa de que me lembro o nome é a médica que ficou responsável por mim e me deu a alta, Fernanda Dinallo.
Era séria e atenciosa. Profissionais com o astral alto, tranquilos e muito seguros ajudam na recuperação, sem falar na educação. Esse foi mais um dos privilégios que eu tive.
Como e quando você teve a ideia de transformar sua luta contra a Covid-19 em tema de livro?
Na UTI – Covid em que estive internado, os pacientes podiam ficar com o telefone celular, até porque, por razões evidentes, as visitas não eram permitidas. Todo o nosso contato com o mundo externo se dava dessa forma. Eu mantive contato apenas com a minha família e com uns poucos amigos muito próximos, entre eles meu editor, Marcelo Ferroni.
Nos dias da dor, não pensei em nada. No entanto, logo depois, meu editor sugeriu que eu podia escrever algo. Eu estava me reestruturando e achei a ideia boa. Então, uma enfermeira me arrumou algumas folhas, canetas e uma pasta que servia de apoio. Comecei a escrever ainda na UTI.
Quando fui transferido para o quarto, estruturei um primeiro rascunho do livro. No dia em que tive alta, já fui para casa com todo o livro estruturado, bastava desenvolver. Fiz alguns meses de fisioterapia, logo depois da alta. Esses meses foram tomados ainda pela redação e, depois, pela revisão do livro.
Antes de entregar os originais, o que sentiu ao reler as páginas de Uma Dor Perfeita? Tristeza, revolta, compaixão?
Acho que a pandemia acabou revelando muita coisa do Brasil: uma nação que, no geral, não sabe reagir, por exemplo. O comportamento de quem está no poder federal foi em um crescendo de sabotagem: o presidente aos poucos aumentava sua reação negativa a tudo que poderia ajudar a diminuir o impacto negativo do vírus. Ele tinha obviamente que ter sido contido desde o início.
Aconteceu o contrário: ele conseguia afastar tudo que o impedia de causar cada vez mais mal para o nosso país. Ninguém conseguiu contê-lo! Tenho muitos sentimentos que não necessariamente se alternam: estão somados. Sinto revolta, de fato, por ninguém ter conseguido fazer com que o presidente parasse de estimular a morte – ele é uma pessoa mórbida.
Sinto vergonha por ter tido o privilégio de receber um tratamento de tão boa qualidade. Toda vez que penso que todo mundo devia ter tido acesso ao que tive, meu mal-estar aumenta. Sinto solidariedade com a dor de quem perdeu alguém próximo. Sinto medo de o nosso país não conseguir se libertar de tanta ruindade acumulada. Para mim, quem zomba de pessoas com falta de ar, desestimula a vacinação e desacredita da medicina é muitas coisas, entre elas, uma pessoa ruim.
Como você está hoje? A Covid-19 deixou alguma sequela?
Depois da alta, ainda fiz alguns meses de fisioterapia. Logo que saí do hospital, eu ainda tinha alguma falta de ar, sobretudo em ocasiões de maior esforço. Isso passou. Não tive depressão nem nada parecido, mas é bastante provável que o trabalho com o livro tenha me ajudado nesse caso.
No entanto, tenho até hoje alguns lapsos de memória: eu estou dando aula, por exemplo, e de repente não me recordo o nome de um escritor ou de um livro. Isso não acontecia antes da minha internação. Também sinto dores musculares localizadas. Fiquei, por exemplo, com uma dor constante no braço esquerdo por quase um mês. Não são dores fortes, mas aparecem de repente e sem nenhuma razão. De resto, até onde vi, não tive sequelas cardíacas ou de qualquer outra natureza.
Depois de quase seis meses de investigação, a CPI da Covid indiciou 66 pessoas e duas empresas. Acredita que, algum dia, os responsáveis pagarão pelos crimes que cometeram?
Espero que sim, mas confesso que não tenho tanta certeza. Apenas o fato de nesse momento o atual presidente da República, depois de tudo o que ele fez, ter chances eleitorais concretas de ser reeleito já me deixa perplexo. Eu me lembro de alguns dias antes de ter sido internado me deparar com a notícia de que profissionais da saúde estavam sendo agredidos no metrô por apoiadores do presidente.
Esse tipo de sentimento de ódio me parece um dos piores legados da pandemia. Como alguém pode ter raiva de uma enfermeira e agredi-la no metrô apenas porque ela é uma profissional da saúde e está cuidando dos pacientes de uma doença? Não sei como vamos conseguir reconstruir as relações sociais após tudo isso e acredito que a reparação na justiça do que essas pessoas fizeram pode ser um passo inicial.
Memórias de uma pandemia do leito de um hospital Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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